Era uma vez… Não! Eram muitas vezes. Demasiadas vezes. Quatrocentas e cinquenta novas vezes, para sermos mais diretos. Todos os anos há cerca de 450 novos casos de cancro em crianças ou jovens em Portugal.
Um número que é um murro no estômago. Um número que, se for dito devagarinho, não nos deixa fugir e nos faz cair na verdade de que há bebés, crianças e jovens a passarem por uma doença que deita abaixo até os que já sabem cuidar de si. Um número que nos lembra que, por cada caso, há uma mãe, um pai, um irmão, irmã, avós, tios, cuidadores que se sentem perdidos e cujas vidas são alteradas para sempre. São milhares de pessoas afetadas todos os anos em Portugal. Foram milhares no ano passado. São milhares este ano. Vão ser milhares no ano que vem.
Este não é um trabalho sobre o cancro infantil, sobre o sofrimento das crianças, dos jovens e das suas famílias ou sobre questões médicas ou institucionais.
Esta é uma história contada a partir de personagens que têm tanto de imaginário como de real — um bebé-recorde, um balão sem horas, um BMW amarelo, almofadas que dão festas, sementes que fazem “puff” e um livro que nunca dorme.
São seis capítulos sobre um lugar onde todos os dias se multiplicam ligações e memórias de vida em vez de abismos ou solidão, e se soma a necessidade de viver o hoje em pleno à esperança de perder a conta aos anos de vida.
Talvez mais ainda do que a doença, o que pode ser realmente devastador é a forma como esta é vivenciada. Por isso há um grupo de pessoas que se dedica há 25 anos a estas histórias e a lutar por trazer qualidade às vidas que muitas vezes parecem acabar no segundo em que o diagnóstico é recebido.
Para a Acreditar - Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro vale a pena confiar que as más notícias não são o fim de tudo e que é possível viver com “dignidade” depois do momento em que o chão parece desabar debaixo dos pés.
Para que com o chão não desabem também as paredes e o teto, a Acreditar construiu três casas — Lisboa, Coimbra e Porto — onde acolhe as famílias das crianças e jovens com cancro que, vivendo fora destes centros urbanos e longe dos hospitais, precisam de fazer tratamentos.
A primeira Casa, a de Lisboa, abriu as portas há 16 anos, a 1 de abril de 2003, e desde esse dia já recebeu mais de 800 famílias.
Neste especial, contamos a história deste lugar, das pessoas que todos os dias lhe dão vida e das vidas que são a sua razão de ser.
Nesta Casa só há casos de sucesso e histórias cheias de luz e alegria? Não, claro que não. Mas esta série — o seu formato, tom e cor — reflete o espírito de cada pessoa com quem falámos. É uma oportunidade para nos aproximarmos, com ternura e empatia, de um mundo de que dá vontade de fugir.
Um mundo que gira à volta das crianças e dos jovens que estão doentes e que têm direito a viver esse tempo com privacidade e tranquilidade. Por isso mesmo, aqui o mundo dos mais novos chega-nos através do imaginário infantil que conduz as histórias e dos desenhos que dão rosto a cada capítulo.
Os retratos foram desenhados pelas crianças que estão neste momento a viver na casa. Lançámos o desafio com receio de “incomodar” e a ideia acabou por gerar uma onda de entusiasmo e orgulho em todos: as crianças, que pediram que devolvêssemos os desenhos porque os querem afixar; os voluntários e a equipa técnica, que se divertiram com a tarefa; e os adultos, que fizeram a festa a tentar adivinhar a quem correspondia cada retrato.
Ao longo de dois meses falámos com algumas das pessoas que trabalham e vivem naquele prédio a que muitos chamam “lar", da gestora da Casa à senhora responsável pelas limpezas, dos pais de um bebé em tratamento a uma professora voluntária.
Mas muito mais pessoas entram por aquela porta todos os dias: a diretora-geral da Acreditar, a psicóloga, a equipa de comunicação, a assistente da direção… Neste especial conhecemos a Casa pelos olhos e pela voz das pessoas que entrevistámos. Fica o convite de imaginar estas aventuras multiplicadas por muitas outras.
Escolha uma das personagens para começar e embarque nesta viagem.
A todo o gás à boleia do BMW amarelo da Tatiana
A Tatiana tem, para além de um BMW amarelo, uma gargalhada contagiante. Dentro da Casa Acreditar de Lisboa, conduz o seu carro e dá boleia às crianças que lá estão a viver. Mas não é caso para preocupações: a única coisa que este veículo atropela é o tédio e a tristeza dos pequenos hóspedes.
É um bebé-recorde. É o pai, Elias, quem o diz para explicar o percurso alucinante que o filho tem feito desde o nascimento. Quando conhecemos esta família, o bebé tinha apenas um mês de vida e já tinha passado por uma viagem de avião, exames médicos e uma cirurgia. Mas comecemos a jornada pela chegada desta família ao Continente.
Uma viagem no tempo no balão da professora Paula
Quando chega a hora marcada, professora e criança entram num balão. Um balão onde não se ouve o tic-tac dos relógios e onde os números voam divertidos. Paula Nunes dá apoio escolar na Casa Acreditar de Lisboa e traz um novo sentido ao popular provérbio: se as crianças não podem ir à escola, a escola vai até elas.
Ansfriede, uma espécie de regadora de sementes que fazem “puff” e se transformam em livros e casas
Um dia veio a Ansfriede, deitou toneladas de amor numa ideia e… puff! Fez-se a Acreditar! Lembram-se de um anúncio dos anos 90 em que um tornado deitava toneladas de chocolate numa seara e — “puff” — fazia os cereais? Não se trata de uma seara, não foi feita num segundo, não resulta de um fenómeno da natureza, mas a Acreditar é como uma espécie de semente que tem feito vários “puffs” ao longo dos anos.
Quando os Barnabés se juntam, é uma festa de almofadas. Ali, Lucas é “chato” e isso é bom
Há um cantinho na Casa da Acreditar de Lisboa onde as almofadas se juntam e fazem a festa. Neste cantinho, reúnem-se todos os meses crianças e jovens que passaram por uma doença oncológica — os chamados Barnabés. São autênticas “almofadas” para as crianças e famílias que agora começam o caminho dos tratamentos. Quem o diz é Lucas, um Barnabé “chato”. Mas “no bom sentido”.
O Livro Que Nunca Dorme. E os segredos que Isabel lá guarda
Há livros que contam histórias. Outros que nasceram para fazer contas. Há livros brancos, com linhas, quadriculados, de pintar. Há livros presos por um fio e livros por editar. Há livros que todos sabem de cor e outros que nunca sairão da prateleira. Na Casa Acreditar há um Livro Que Nunca Dorme. Esta história é sobre os segredos que a Isabel lá guarda, mas também sobre a emoção que não cabe nas letras que traz dentro.
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