Chegada a época natalícia, não é apenas o nosso campo de visão que é brindado com os mais diversos jogos de luzes, enfeites, promoções e ações publicitárias, num ataque total. Como bem sabemos, nesta época os olhos veem, e derivado a isso também o coração sente. Mas não são apenas eles a ser alvo deste ataque total aos sentidos; panóplias de centros comerciais e altifalantes cuidadosamente montados nas ruas vão debitando decibéis atrás de decibéis festivos, de 'All I Want For Christmas Is You', de Mariah Carey, passando pelo hino cristão 'Gloria In Excelsis Deo' (alvo de diversas versões, a mais famosa de Vivaldi), até à quase obrigatória 'Last Christmas', dos Wham!. Ano após ano, todas as canções de natal conhecidas pela humanidade são escutadas, uma e outra vez, num loop aparentemente infinito até ao dia de reis.

Todas, menos uma. 'Baby, It's Cold Outside', tema escrito em 1944 por Frank Loesser e popularizado pelo filme “A Rainha das Sereias” (1949, tendo ganho um Óscar para Melhor Canção), provavelmente não terá direito a figurar este ano nas playlists de natal. E porquê? Porque os seus versos, outrora aparentemente inócuos, foram agora alvo de reapreciação, e acusados de serem “coercivos” e “errados” - tudo porque a personagem masculina ali presente se recusa a aceitar um “não” como resposta da feminina, pretendendo que esta passe a noite em sua casa.

O tiro de partida para a exclusão de 'Baby, It's Cold Outside' foi dado por uma rádio do Ohio, nos Estados Unidos, depois das queixas de vários ouvintes. No seu blogue, o radialista responsável escreveu que “o mundo em que vivemos hoje em dia é extremamente sensível, e as pessoas ofendem-se facilmente; mas, num mundo em que o movimento #MeToo deu finalmente às mulheres a voz que elas mereciam, esta canção não tem lugar”.

O movimento #MeToo - “#EuTambém”, traduzido literalmente – começou a tomar forma logo após o produtor de cinema Harvey Weinstein ter sido acusado por dezenas de mulheres, incluindo várias atrizes de renome, de assédio, má conduta sexual e até violação, tendo-se tornado viral nas redes sociais em 2017. E foi a partir daí – e sempre em nome das mulheres que são ou foram já vítimas de assédio – que se começou a infiltrar em todos os cantos e recantos da sociedade em geral, da política ao desporto, do trabalho às artes.

É neste último campo que os seus efeitos mais têm sido notados. Para alguns, o #MeToo não passa de uma forma de censura, uma “caça às bruxas” moderna alimentada por “ódio aos homens”, como o definiu a atriz francesa Catherine Deneuve, que equiparou o movimento a “puritanismo”. Para outros, é uma forma de chamar à justiça (ou pelo menos tentar) centenas de homens que julgavam ter imunidade em relação aos seus comportamentos mais abjetos.

A arte não sofre tanto como sofreram as mulheres que, em algum ponto das suas vidas, foram vítimas de assédios ou abusos. Mas está a ser alvo de ataques. 'Baby, It's Cold Outside' é apenas um exemplo; diversas outras obras do passado têm sido revistas à luz do pensamento do século XXI e, para todos os efeitos, censuradas numa sociedade que não parece saber como lidar com o que outrora foi aceitável. Talvez se trate de “evolução” - ou talvez se esteja a cair em terrenos perigosos. A discussão é sempre acesa, nunca encontrando uma área cinzenta onde possa navegar sem perigo.

Uma das mais famosas - e que, na verdade, tem existido desde sempre, embora por motivos diferentes – centra-se em torno de “Lolita”, clássico da literatura norte-americana escrito pelo russo Vladimir Nabokov em 1955. Para uns, “Lolita” é o romance do século XX por excelência, a melhor história de amor escrita nesse período (como o descreveu a revista Vanity Fair); para outros, não passa de um delírio pedófilo, uma história sobre uma criança que é abusada sexualmente, prenhe de misoginia em cada linha (como alega Sarah Herbold, crítica literária e professora da Universidade da Califórnia). No ano da sua edição, era “apenas” pornográfico e obsceno... Mas não é a única obra literária que é ou já foi encarada sob perspetivas diferentes: “Por Favor, Não Matem a Cotovia”, de Harper Lee, e “O Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, foram por mais do que uma vez acusados de serem livros “racistas”, e retirados dos currículos escolares de algumas escolas. Em causa estão as suas descrições de negros, próprias para a época em que se inserem, mas chocantes se vistas com as mentalidades de hoje.

O racismo e o sexismo são problemas distintos, mas por vezes poderão chocar entre si; não são poucos os que acusam a música rap, por exemplo, de ser altamente misógina, ao passo que outros a defendem como uma forma de expressão cultural de um povo historicamente oprimido. E isso pode gerar, ainda mais nos dias que correm, conflitos. Ainda este ano, e inspirada pelo #MeToo, a plataforma de streaming Spotify foi obrigada a voltar atrás após retirar das suas playlists próprias todo o catálogo do cantor R. Kelly e do falecido rapper XXXTentacion. O primeiro tem tido uma carreira marcada por várias acusações de abusos sexuais, incluindo de menores; o segundo foi acusado de agredir a sua namorada, grávida à altura.

Dois casos distintos de violência contra mulheres que tiveram o mesmo desfecho: a música voltou ao Spotify após o rapper Kendrick Lamar ter ameaçado retirar a sua própria música da plataforma, e após outras tantas acusações de racismo, já que tanto Kelly como XXXTentacion são negros. Mas também há quem reavalie as suas próprias obras, como Lana Del Rey, que atuará em Portugal na próxima edição do festival Super Bock Super Rock: a cantora decidiu “reformar” um dos seus temas, 'Cola', sobre um affair imaginário com Harvey Weinstein. Outro caso mais recente envolve os irlandeses Pogues e uma outra popular canção de natal, 'Fairytale in New York': a utilização da palavra faggot, termo pejorativo para com homossexuais, num dos versos levou o DJ de uma rádio irlandesa a pedir para que a canção fosse censurada – o que acabou por não acontecer. “Se censuramos palavrões, porque não censuramos também esta palavra?”, questionou Eoghan McDermott.

O cinema, área onde o #MeToo nasceu, é talvez a mais afetada – fala-se, até, num “efeito Weinstein”. O ator Kevin Spacey constituiu um dos casos mais sonantes dos últimos tempos: as suas cenas em “Todo o Dinheiro do Mundo”, filme de 2017, foram cortadas e regravadas, desta feita já com Christopher Plummer no elenco, após Spacey ter sido acusado por vários rapazes e homens de assédio sexual. Da mesma forma, muitos pedem para que os filmes de Woody Allen sejam boicotados, já que o veterano realizador é acusado, pela ex-mulher Mia Farrow, de ter abusado sexualmente da sua filha adotiva, Dylan Farrow, quando esta tinha apenas sete anos. O comediante Bill Cosby é para já um dos poucos condenados pela justiça, depois de ter sido acusado de drogar e violar diversas mulheres; os seus programas de televisão, incluindo o icónico “The Cosby Show”, deixaram de ser retransmitidos por diversas estações. E, também dentro do campo da homofobia, o comediante Kevin Hart decidiu não apresentar a próxima cerimónia dos Óscares da Academia, menos de 24 horas após ter sido escolhido; em causa estão alguns tweets de caráter ofensivo para com a comunidade homossexual que fez há... oito anos.

Apenas alguns exemplos entre muitos – e não será de todo errado pensar que a lista poderá engrossar, ao longo dos próximos tempos. Olhemos apenas para canções tradicionais de natal: 'Back Door Santa', de Clarence Carter, poderia ser encarada como uma canção sobre um pederasta em busca de crianças («I keep some change in my pocket, in case the children are home / I give 'em a few pennies so that we can be alone»); 'Santa Claus Is Comin' to Town', de George Hall, sobre um stalker («He sees you when you're sleeping / He knows when you're awake»); e, elevando o pensamento ao extremo, 'White Christmas' pode muito bem ser um sonho neo-nazi. O #MeToo veio para ficar e, com ele, a reavaliação histórica do passado.