A manhã surgiu cinzenta, mas o Santuário de Fátima depressa se tornou colorido pelas roupas dos peregrinos que ocupavam os seus lugares nos devidos círculos distanciados. Às 8h50, as oito portas do recinto encerraram: estava novamente atingido o limite máximo de pessoas. Do lado de fora, muitos foram aqueles que procuraram um espaço para ouvir as celebrações — mas em menor quantidade do que na noite passada.
Depois da oração do terço, que se iniciou às 9h00, a imagem de Nossa Senhora de Fátima — que ostenta a coroa com a bala que atingiu João Paulo II há precisamente 40 anos, no atentando em Roma — seguiu em procissão para o altar principal. Durante a deslocação, palmas foram ouvidas pontualmente, aquando a sua passagem junto dos peregrinos.
O início da celebração começou com “uma surpresa”: o Papa Francisco deixou algumas palavras aos peregrinos, através de um vídeo projetado no recinto.
“Este é o momento de pedir à Mãe pelo mundo inteiro (…) e por cada um de nós, pelas vossas famílias, pela vossa terra natal, por Portugal”, disse Francisco.
Depois de saudar os fiéis “de uma maneira especial” e agradecer a sua presença no Santuário, o Papa estendeu o apelo a “todos os que estão a sofrer com esta pandemia de covid-19, por tantos os que perderam o seu trabalho, os seus entes queridos”, alertando para “tanta pobreza e miséria que esta pandemia está a gerar”.
“Este é o momento para a oração”, salientou e exortou os fiéis a nunca se esquecerem da Virgem de Fátima.
Dirigindo uma bênção aos peregrinos, o Papa pediu ainda para que rezem por ele. Terminado o vídeo, foram novamente ouvidas palmas no recinto.
Fátima, “alavanca da nossa humanidade”
Na homilia, as palavras do cardeal D. José Tolentino Mendonça voltaram a centrar-se na pandemia e em tudo o que dela se pode retirar, também olhando para o exemplo da Igreja e na necessidade de um “novo começo”.
“Jesus transforma a experiência da crise mais extrema numa ocasião para relançar a vida, para restaurar a sua frágil arquitetura, para propor um novo começo. Jesus não se conforma ao fatalismo. Pelo contrário, na hora suprema da crise, Ele continua a empurrar a história para a frente, continua a ativar futuros, a inscrever o futuro de Deus no atribulado presente histórico dos homens, a devolver esperança a quantos se sentem cansados e oprimidos, a tomar sobre Si – com que compaixão! – todas as feridas, a buscar e reintegrar o que estava declarado como perdido”, começou por dizer.
“Olhando para a cruz poderíamos pensar que Jesus estava brutalmente confinado. E estava. Mas o verdadeiro desconfinamento é aquele que o amor opera em nós. O amor é o mais verdadeiro, o mais profético, o mais necessário desconfinamento”, acrescentou.
Assim, segundo o cardeal, “Jesus transforma – e ensina a transformar – as crises em laboratórios de esperança”, referiu, retomando também aqui o tema da esperança, abordado na homilia da noite passada.
“Numa hora de encruzilhada da histórica como esta que vivemos, não podemos fazer coincidir o relançamento da esperança unicamente com o cuidado pela expressão material da vida. Sem dúvida que é urgente garantir o pão e esse trabalho exigente – fundamentalmente de reconstrução económica - deve unir e mobilizar as nossas sociedades. Mas as nossas sociedades precisam também de um relançamento espiritual. Sem o pão não vivemos, mas não vivemos só de pão. Os maiores momentos de crise foram superados infundindo uma alma nova, propondo caminhos de transformação interior e de reconstrução espiritual da nossa vida comum”, disse.
“É essa a mensagem de Fátima, naquele longínquo 1917, com o mundo mergulhado na primeira guerra química da história e uma das que maior mortandade infligiu. O que é que a Virgem pediu à humanidade, através dos pastorinhos? Oração, penitência e conversão, isto é, meios concretos de reconstrução interior”, apontou.
Por isso, olhando para o futuro depois da pandemia, o cardeal não hesita em dizer que a reconstrução “depende do modo como encararmos a fraternidade”.
"É isso que afirma o Papa Francisco na Encíclica ‘Fratelli Tutti’ que se propõe como bússola à Igreja e ao mundo para relançarmos a nossa viagem comum. E exorta o Santo Padre: ‘Sonhemos como uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos desta mesma terra que nos alberga a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos’”, citou.
Além disso, D. José Tolentino Mendonça defendeu hoje que um mundo afetado pela pandemia “precisa de novas visões”, considerando ainda que “o mundo fatigado por esta travessia pandémica que ainda dura” exige “vigilância e responsabilidade, não tem apenas fome e sede de normalidade”.
“Precisa de novas visões, de outras gramáticas, precisa que arrisquemos ter sonhos”, frisou. Neste âmbito, o cardeal dirigiu-se especialmente aos jovens portugueses que vão acolher o Papa Francisco, em 2023, na Jornada Mundial da Juventude (JMJ), em Lisboa.
“Eu quero dizer a partir de Fátima: em vez de ter medo, tenham sonhos. Descubram que Deus é aliado dos vossos sonhos mais belos. Ousem sonhar um mundo melhor. Sintam que o futuro depende da qualidade e da consistência dos vossos sonhos”, disse.
No final da sua intervenção, o cardeal dirigiu-se aos peregrinos. “Quero dizer-vos que me sinto não apenas próximo de todos, mas verdadeiramente me considero um de vós. A mensagem de Fátima vista de fora parece formatada e austera. E muitos, olhando à superfície o santuário, veem apenas a dramática expressão de tantas lágrimas, demandas e promessas. Mas os peregrinos de Fátima experimentam que é muito mais do que isso. Aquilo que experimentamos é que chegamos aqui inquietos, vazios, divididos, irreconciliados ou sedentos, que chegamos aqui aos trambolhões como o filho pródigo, e que Maria realiza em nós - com que misericórdia, com que inesquecível doçura - o mandato de amor que recebeu de Jesus: «Mulher, eis aí o teu filho», «eis aí os teus filhos»”, afirmou.
“A Fátima, nós peregrinos, chegamos sempre de mãos vazias. Mas de Fátima levamos, acordado dentro de nós, um sonho. Fátima ensina, assim, como se ilumina um mundo que está às escuras. Seja o pequeno mundo do nosso coração, seja o coração do vasto mundo”, concluiu, agradecendo por fim a Maria, por fazer de Fátima “uma alavanca da nossa humanidade. Um laboratório sem portas nem muros, sempre aberto para a esperança!”.
No final da celebração, após as palavras de despedida do bispo de Leiria-Fátima, D. António Marto, a habitual procissão do adeus seguiu caminho debaixo de chuva. Por todo o recinto, os chapéus abertos contrastavam com os lenços brancos que foram agitados pelas mãos de milhares. No fim, o toque do sino marcou o que já se sabia: está terminada uma das principais celebrações que marcaram o regresso de peregrinos à Cova da Iria, neste que é o dia em que aqui se recorda a primeira aparição de Nossa Senhora, em 1917.
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