Retrato de mulher numa vila
Terceira viagem
[1911]
Numa tarde chuvosa de Primavera, à hora do crepúsculo, quando à distância as árvores do bosque flutuavam nas sombras e na neblina, Sindbad recebeu uma carta. Em cima do sobrescrito, as letras minúsculas e pontiagudas pareciam as unhas de um canário; no interior, escondia-se uma cartolina branca com cantos dourados, daquelas que as condessas ou as jovens costureiras pobres costumam utilizar para a sua correspondência. As unhas do canário diziam o seguinte: «Querido Sindbad, agora que o senhor está quase a fazer trinta anos, receba as felicitações e os melhores votos de Lenke.»
Sindbad virou a carta duas ou três vezes e olhou para o carimbo de correios, onde viu o nome de uma vila da Alta Hungria; examinou a assinatura e, como não era um homem esquecido, de repente lembrou-se de tudo. Há dez anos, durante a sua juventude, Lenke fora um dos seus amores mais puros e sagrados. Era uma rapariga de olhos e cabelo pretos, com um hálito perfumado. Mas lembrava-se principalmente da sua pequena mão, metida no bolso do seu sobretudo, que agarrava durante os seus passeios nocturnos. Na escuridão do bolso, os dedos de Sindbad brincavam com os dedos finos e delicados de Lenke. Antes de a acompanhar a casa, beijava-a na boca atrás de uma igreja antiga, de onde se via o cemitério com as suas lápides envoltas em névoa. Na parede da velha igreja, havia o túmulo embutido de um velho castelão, e a sua figura com barba e armadura também fora talhada em pedra, da cabeça aos pés, na porta que dava para a cripta. A humidade pingava constantemente do telhado de ardósia coberto de musgo. Ao anoitecer, as pedras frias e húmidas ressoavam debaixo dos seus pés, enquanto davam uma volta pela igreja e, aproveitando a penumbra, trocavam alguns beijos longos e silenciosos junto ao cemitério. Mais tarde, Sindbad deixou a pequena vila de Lenke para navegar para outros horizontes. Havia apenas, de vez em quando, uma pequena carta a anunciar-lhe que Lenke ainda estava viva e continuava a trabalhar de forma diligente no posto de correios, mas nunca mais tinha ido passear junto à igreja. Numa noite, ao dormitar num comboio, Sindbad ouviu um passageiro a relatar numa voz cantante que Lenke tinha deixado a sua vila para se casar com um médico da Alta Hungria. Sindbad dormia, cansado, e no meio sono, ao som do ruído das rodas do comboio, ouvia repetidamente: Lenke casou-se... Lenke, Lenke... Mas como estava muito fatigado, e já se tinha esquecido da igreja e dos seus arredores, não acordou completamente. Na manhã seguinte, julgou que tudo não tinha passado de um sonho.
Então, dez anos mais tarde, essa tal Lenke tinha escrito a Sindbad, mostrando que ainda não se esquecera do seu amor de juventude, talvez do seu primeiro amor – coisa que, no caso das mulheres, é difícil comprovar –, e pensava bastante nele, visto que se lembrara do seu aniversário.
Naquela época, Sindbad, o marinheiro, ainda gostava muito de viajar. Portanto, nessa mesma noite ou na seguinte – mas não mais tarde –, apanhou o comboio, deitou-se no banco da carruagem e dormiu tranquilamente até à meia-noite, a caminho da longínqua cidade desconhecida onde vivia Lenke.
Acordou à meia-noite e observou, esticando-se e bocejando, a noite primaveril pela janela do comboio que atravessava o campo a toda a velocidade. As montanhas altas e castanhas alinhavam-se na penumbra; a noite era clara, dado que lá no alto, algures muito longe dali, a Lua escondia-se atrás de nuvens delgadas. Perante os olhos de Sindbad, fugiam árvores enormes, cujas copas pareciam flutuar num grande vapor branco. Casinhas dos guardas da estação, semelhantes a barquinhos de papel nas águas agitadas da noite, passavam na escuridão. A corrente arrebatava a uma velocidade vertiginosa os arbustos anões e as cercas.
Mais tarde, nas profundezas da noite, surgiu um rio sinuoso que corria junto à linha ferroviária. Às vezes, via-se apenas a sua sombra preta, semelhante a um cão pastor que caminhasse lentamente na estrada nocturna. Nas curvas, onde o rio surgia da sombra, círculos prateados e escamas brancas balanceavam-se em cima da água, para depois desaparecerem rapidamente na grande distância. Uma ponte preta e esguia, semelhante a um insecto com patas compridas, erguia-se na água. Os apitos roucos da locomotiva misturavam-se com o som das rodas a crepitar. Em voz baixa, o revisor avisou Sindbad de que se estavam a aproximar da estação.
No carro que o levava da estação até à estalagem, Sindbad pouco viu da cidade. Casas baixas, alinhadas numa rua comprida como velhinhas silenciosas sentadas na última fila da igreja, dormiam profundamente. Na esquina, ficava uma loja com portões de ferro preto e, por cima, balançava-se uma placa com um turco a fumar cachimbo. O carro dava grandes solavancos em cima do pavimento e o vento fresco da noite soprava de algures. O sono desapareceu dos olhos de Sindbad, que se perguntou:
— Mas por que razão vim para esta cidade?
*
Acordou ao fim da manhã e a seguir foi passear na praça onde, nesse mesmo dia, decorria a feira semanal. Eslovacos com coletes de feltro, aldeãs de botas e saias plissadas com lenços na cabeça, iam e vinham à sua frente. As passadeiras estavam cobertas de lama, a água pingava dos telhados e, no centro da praça, uma torre com telhado roxo cintilava como se tivesse sido lavada recentemente. Os ponteiros dourados resplandeciam sobre o mostrador branco do relógio.
Numa esquina, no rés-do-chão de uma casa amarela, havia uma mercearia chamada Leão Dourado e na sua parede encaixava-se a montra do fotógrafo da cidade.
Sindbad gostava sempre de observar as montras dos fotógrafos. Nos arredores da cidade, parava muitas vezes em frente aos retratos de desconhecidos e tentava ler nos rostos, nos olhos e nas testas das pessoas.
O fotógrafo da pequena cidade tinha disposto os retratos em forma de coroa. Num extremo, alinhavam-se as fotografias dos homens. Quantos rostos interessantes, divertidos e típicos! Só na região de Alta Hungria era possível encontrar tipos tão interessantes: testas soberbas, narizes aquilinos e arrogantes, olhares desdenhosos destes homens vestidos com típicos trajes húngaros ornamentados com cordões. A seguir, os mesmos rostos, mas com os homens vestidos com traje tradicional húngaro, de smoking ou com casaco de caçador. Porém, os rostos pareciam mais meigos, amáveis e alegres. Via casacos enfeitados com uma flor e gravatas com um nó impecável. Aqueles que usavam anéis, alfinetes ou botões de punho, tentavam mostrá-los (do bolso de um colete até sobressaia uma caixa de charutos prateada). Era evidente que o fotógrafo não tirava as fotografias ao acaso ou para matar o tempo, pelo contrário, tirava-as em ocasiões especiais e significativas da vida, quando se tratava de oferecer uma recordação a alguém – talvez a uma noiva, a uma actriz em início de carreira ou a uma menina semelhante a uma fada. Ao menos, dava a sensação de que os jovens cavalheiros sorriam nas fotografias com a esperança de que as mulheres, durante muito tempo, inclusivamente numa idade mais avançada, contemplassem os seus retratos, suspirando por eles e fantasiando a seu respeito. Na montra do fotógrafo da pequena cidade, podia ver-se os funcionários da região a usar chapéus de caça- dor, doutores com óculos e advogados em redingotes solenes. Aquele senhor com bigode encerado e cabelo ondulado com risco ao meio, com as luvas de pele na mão e com um lenço de seda no colete de fraque, aposto que deve ser o professor de dança da cidade... Depois de ter observado as fotografias dos homens nesta secção de retratos, Sindbad chegou ao grupo das mulheres. (No meio da instalação, bebés risonhos de fralda, pequenitos descalços, carinhas sorridentes que pareciam botões de rosa. No centro da coroa, um senhor careca com ar sério, cheio de condecorações, que devia ser o presidente da Câmara ou então o próprio fotógrafo.)
Os retratos das mulheres ofereciam um espectáculo alegre e instrutivo. Na montra – exceptuando algumas senhoras idosas do clube feminino – os rostos que chamaram a atenção de Sindbad eram bonitos e agradáveis. Via mulheres vestidas de roupa branca com guarda-sóis bordados (alguns abertos e agarrados de lado por cima dos ombros), chapéus de Verão também bordados, jóias e correntes de cintura. As meninas apareciam sem chapéu, como se o seu uso fosse apenas o privilégio das senhoras que frequentavam o ateliê do fotógrafo. Eis aqui duas amigas (se não o fossem, não estariam assim tão juntinhas): uma segurava um livro de orações, enquanto a outra tinha um lírio-do-vale. Estavam à beira-mar ou numa praia, se calhar na praia de Ostende, e olhavam para Sindbad com um sorriso subtil e sonhador. Atrás, via-se o mar com um barco a balançar... Este tipo de cenário aparecia em quase todos os retratos femininos. «Porque é que as mulheres adoram o mar?» – perguntou-se Sindbad. As duas amigas continuariam, sem dúvida, a gostar uma da outra, caso con- trário, teriam mandado retirar as suas fotografias da montra da loja. Sindbad desejava também que elas continuassem com a sua amizade ainda durante muito tempo. A seguir, vinha uma senhora de vestido com um padrão de xadrez, apoiada numa secretária; era tão esbelta e altiva, que parecia uma domadora de cavalos. Depois, umas adolescentes sorridentes, com narizes arrebitados. Mais abaixo, uma senhora pensativa e com ar de solteirona, que, se Sindbad não estivesse enganado, tinha posto maquilhagem a mais. A seguir, uma mulher que mostrava os dentes, provavelmente uma professora da cidade, com braços cruzados atrás das costas, e, ao seu lado, uma menina a segurar uma pomba, envergando o disfarce do seu último baile de Carnaval.
Nesse momento, Sindbad reparou que no meio da montra com muitas fotografias de mulheres alguém olhava triste e silenciosamente para ele com um sorriso melancólico. Tinha uma jaqueta de seda preta e na mão um leque igualmente preto e todo bordado. As madeixas do seu cabelo muito escuro salientavam-se na testa e, na cadeira onde estava sentada, um pouco inclinada para atrás, via-se bem a sua pesada saia de seda. A elegância aureolava a figura desta mulher de cabelo preto e Sindbad apreciou o facto de, no plano de fundo, não aparecer o mar com o barco... Quem olhava para Sindbad da montra do fotógrafo nessa manhã de Primavera era Lenke, com ar cansado, um pouco lânguido e um rosto provavelmente bastante maquilhado.
O fotógrafo, em cujo ateliê pouco depois Sindbad entrou para tirar um retrato, explicou-lhe que a senhora de vestido preto era a mulher do doutor Márton Szolyvai, o médico de província.
O passarinho saiu a voar do tubo preto da máquina fotográfica, e o fotógrafo agradeceu a Sindbad por recorrer aos seus serviços.
O médico de província residia na periferia da cidade, numa rua um pouco estranha, onde se estendia uma grande berma, cheia de árvores e de arbustos. Viam-se jardins, cujas árvores de fruto floresciam no esplendor primaveril. Cerejeiras e ameixoeiras maravilhosamente vestidas erguiam-se no meio de um deles, enquanto uma brisa agitava os ramos floridos, em cima dos quais pequenas fadas brancas estavam instaladas nesta época. Atrás de uma vedação encarnada, na vizinhança de um álamo, havia uma casa de telhado verde que tinha afixado no exterior uma placa preta e branca com o nome do médico. Sindbad puxou a corda da campainha com cuidado, que tilintava a um ritmo rápido, como quando os aguaceiros primaveris caem sobre um lago tranquilo.
Um cãozinho branco com pêlo encaracolado apareceu à porta. Recebeu o visitante de forma alegre, amigável, e até saltou duas vezes. Depois, chegou um jovem de botas, desalinhado, ruivo, com sardas, e virou energicamente a chave na fechadura.
— O Sr. Dr. está?
— Ainda não, mas deve estar a chegar. Se quiser, pode aguardar.
Sindbad respirou aliviado. Pensara e planeara o seguinte: o médico não estaria em casa, e assim poderia falar com a mulher. O cascalho do jardim crepitava debaixo dos seus pés. Ordem e limpeza reinavam por todo o lado. Havia um banco com costas debaixo do álamo grande, e, em frente dele, uma mesa com as pernas enterradas, tal como costumam aparecer nos romances. Na porta de vidro, o puxador de cobre brilhava, nas janelas viam-se cortinas bordadas brancas e cor-de-rosa. Sindbad passou silenciosamente à frente da casa e das janelas, uma das cortinas mexeu-se (ele não viu, mas intuía-o).
Na parede da sala de espera, um grande relógio redondo, cujos ponteiros compridos e pretos pareciam bigodes retorcidos e encerados, fazia tiquetaque. Sindbad, sem o mínimo barulho, sentou-se numa cadeira.
— Está à procura do meu marido? — perguntou uma voz grave e agradável por detrás de uma cortina de feltro denso que fazia de porta. E perante Sindbad, apareceu Lenke com um quimono japonês, com o cabelo liso trançado em forma de coroa e um anel de esmeralda numa das suas mãos brancas.
— Procura o meu marido? — voltou a perguntar, enquanto avançava silenciosamente. O anel de esmeralda, semelhante a uma estrela, aproximava-se em direcção a Sindbad, que permanecia sentado, em silêncio, apertando os lábios e olhando para a mulher perplexa.
Entretanto, Lenke, sem dizer nada, já estava à sua frente, tão perto, que Sindbad conseguia ver as linhas de pó-de-arroz acabado de aplicar no rosto, assim como as pequenas rugas que partiam do ângulo exterior dos olhos, sinais de envelhecimento, finas como os seus cabelos.
— Que estranho... a sua cara parece-me familiar — sussurrou Lenke.
O homem levantou-se e acenou com a cabeça.
— Sim, sou eu. Sindbad, a pessoa pela qual a senhora esperava.
A mulher recuou desconfiada.
— Asseguro-lhe que não o esperava — disse rapidamente, e a seguir respirou fundo. — Não sabia se ainda estaria vivo. Como chegou até aqui? Meu Deus, a vida é feita de coincidências estranhas! Nunca mais pensei em si. Porque haveria de o fazer? Ainda assim, quando a campainha tocou, de certa forma lembrei-me de si. Até o meu cão soltou um latido, como se tivesse dito: Sindbad.
— O cãozinho! — disse Sindbad, e sorriu discretamente.
Lenke apoiava o braço nas costas da cadeira e lançou furtivamente um olhar para o espelho, levantando o braço muito branco que a manga do quimono só tapava até ao cotovelo e alisando o cabelo com a mão que tinha o anel de esmeralda. Sindbad lembrou-se de uma actriz da província que uma vez estivera na mesma pose à sua frente, antes de começar a ouvi-la... curioso, pensou Sindbad, é possível que Lenke tenha aprendido este gesto do braço no teatro desta pequena cidade.
— Como está o senhor? Porque é que veio ver o meu marido? — perguntou a mulher, já com um tom mais tranquilo, juntando as mãos e pondo-as depois novamente em cima das costas da cadeira.
— Tenho insónias... e não trouxe morfina para esta viagem. Esse é o motivo da minha visita.
— E veio parar precisamente aqui? Há tantos médicos no centro da cidade! O meu marido é apenas um «médico de província», só os camponeses e os aldeões pobres vêm cá ter. Mas, graças a Deus, conseguimos sustentar-nos. Somos só os dois, e eu já não tenho pretensões. O senhor sabe como eu sou; quando era adolescente, usava sempre o chapéu da estação anterior.
— Sim, lembro-me...
— Somos bastante felizes, deitamo-nos cedo e dormimos profundamente. Nesta zona reina o silêncio, só os cães ladram à noite.
— Antes gostava de teatro e de bailes...
— Da parte da manhã, estou ocupada com as tarefas domésticas; da parte da tarde, costumo descansar, ler um pouco, nunca fico entediada. Nas noites de Verão, sento-me debaixo do álamo e escuto o sussurrar das folhas. O meu galã mais fiel é o álamo do nosso jardim.
— Houve uma altura em que gostava de bailes e de oficiais vestidos com uniformes dourados que dançavam esplendidamente.
— Nem me ocorre pensar que certas pessoas vivem de uma maneira diferente da nossa. Usar vestidos caros, viajar de automóvel, apreciar jóias, não é o meu género. Acredito que as luzes cintilantes das grandes cidades e os luxos sejam bonitos, mas só aqui, nesta casa tranquila, é que se pode forjar sonhos e pensamentos. Nos teatros ouve-se música boa, mas no dia seguinte sentimo-nos cansados. Nos salões de baile, os pares dançam a voar ao som da orquestra, mas hoje em dia há tantas danças novas, que não se comparam nem com as valsas, nem com as mazurcas. Então, por que razão havia de querer andar nos bailes?
Sindbad observava o rosto de Lenke e permanecia calado. O seu olhar deslizava lentamente pelo cabelo, pelos olhos e pelo pescoço branco para depois repousar sobre as pequenas sabrinas bonitas que ela escondia debaixo da sua saia. Entretanto, Lenke olhava para o seu anel com a pedra verde como se aquilo fosse um olho e, entre suspi- ros, sussurrou em voz baixa:
— Deus é testemunha de que sou feliz.
Sindbad levantou-se e estendeu a mão.
— Já se vai embora? Não quer esperar pelo meu marido? Sindbad acariciava docemente as mãos da mulher.
— Eu só vim por sua causa. Ao ler a carta que me escreveu no meu aniversário, supus que me quisesse dizer alguma coisa... então vim cá e agora já sei o que se passou durante estes dez anos. Seja como for, esta vida é melhor para si. Se tivesse casado comigo, seria diferente, porque eu amo a vida de outra maneira. Os sussurros de uma grande árvore não me contentam muito; quanto a sonhar e a pensar, também só gosto de o fazer com moderação.
— Vai-se já embora?... Eu...
— Então?
— Nada. Pensava apenas que tinha curiosidade em conhecer o meu marido... ou que me diria algo de consolador, de tranquilizante, antes de partir definitivamente e de eu nunca mais o voltar a ver. Numa certa altura, acreditei muito em si, quando estava triste havia algo na sua voz que me apaziguava e me fazia feliz.
Sindbad acariciava lentamente a palma seca e quente da mulher... — Então, durante a noite tem um sono profundo, não é verdade?
A mulher baixou a cabeça.
— Para poder dormir tomo muitos comprimidos. Mas tudo o resto que lhe contei é verdade.
— E os teatros, os bailes, os vestidos bonitos, as jóias brilhantes?...
— Tenho apenas este único anel verde. Se calhar, por ser o único é que gosto tanto dele. Para que me serviria vestir roupas bonitas da última moda? Não há um único homem na cidade inteira com quem possa ter uma conversa interessante. Antigamente, artistas, escritores e homens importantes faziam-me a corte... o senhor sabe bem disso...
— Era a rainha do baile dos artistas.
A testa da senhora corou e os seus olhos começaram a brilhar estranhamente. De repente, sentou-se na cadeira e disse num tom triste:
— Está a ver, por isso é que quis falar consigo. Queria ouvir notícias daquele mundo desaparecido que agora só existe nos meus sonhos. Diga-me, o que é que se faz em Budapeste? Ainda há alguém que pense em mim?
— Eu, muitas vezes... sempre... — respondeu Sindbad, inclinando-se em direcção ao ouvido da mulher, baixando o tom de voz.
Lenke fechou os olhos e suspirou.
— Fez-se esperar dez anos, Sindbad. Tantas vezes o vi nos meus sonhos, tantas vezes aguardei por si julgando que podia voltar a vê-lo. Quando íamos a Budapeste, o que raras vezes aconteceu, procurava-o sempre nos teatros, nos locais de diversão, nos restaurantes... Mas nunca, nunca o vi. Se tivesse pensado em mim ou se tivesse sonhado comigo, teria vindo... o senhor é pouco fiável, sempre foi.
Sindbad estava prestes a fazer uma promessa, quando a pequena porta do jardim guinchou e no caminho pedroso apareceu a grande figura do velho médico, com um gorro e uma gabardina.
— O meu marido!... — sobressaltou-se Lenke. — Espero voltar a vê-lo Sindbad. Ainda não vai partir, pois não?
Sindbad acenou com a cabeça e Lenke saiu da sala a toda a pressa através da cortina de feltro.
— Que diabo vai querer esse homem de mim? — perguntou o médico de província a resmungar, como sempre, debaixo do seu bigode espesso e molhado.
Nessa mesma noite, Sindbad deixou a cidade. Guardou a receita do médico na carteira e, no comboio, pensou muitas vezes em Lenke, na pequena casa com jardim e no homem com bigode torcido e encerado. Nesses momentos, sentiu o perfume estranho e o cheiro intenso que emanava do pescoço da mulher. Sindbad nem sempre gostava de aromas com uma fragância intensa.
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