No ano passado, foram sinalizadas no Hospital Fernando Fonseca (HFF) 525 crianças e jovens vítimas de maus-tratos, das quais 184 tinham sido vítimas de violência, revelou hoje a pediatra Helena Almeida, responsável pelo Núcleo Hospitalar de Apoio a Crianças e Jovens em Risco (NHACJR) do hospital, conhecido como Amadora-Sintra.
Entre os registos de agressão, 51 foram crimes de violência doméstica, acrescentou a especialista, durante o III Congresso Europeu Sobre Uma Justiça Amiga das Crianças, que está a decorrer na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.
Entre 2020 e 2021, o NHACJR registou um aumento de 335 para 525 sinalizações de maus-tratos: Os casos de violência, por exemplo, duplicaram (de 98 para 184 casos), tal como a violência doméstica, que subiu de 28 para 51 casos nos dois últimos anos.
Segundo a pediatra “todas as crianças e jovens sinalizados no hospital deveriam ser seguidos pelos serviços de saúde mental, mas não são”.
As vítimas de violência só têm seguimento no hospital quando revelam “sintomas relevantes”, como automutilações, crises de ansiedade ou desejos suicidas, disse Helena Almeida à Lusa.
Nos casos de abuso sexual, o hospital identificou 40 menores, dos quais “apenas 31 tiveram seguimento com uma consulta específica no hospital, em consultas de psicologia no NHACJR”, disse, acrescentando que os restantes terão sido acompanhados por privados.
Dos “166 casos de negligência, nenhum teve qualquer seguimento”, afirmou.
Para Helena Almeida este é o resultado da “enorme escassez de apoios da saúde mental”.
A este problema, o psicólogo clínico António Castanho juntou o do “tempo de espera abissal por uma consulta”, que chega a atingir meses, quando “as consultas de saúde mental deveriam ser semanais”.
A importância deste apoio é exemplificada por António Castanho com base na sua experiência de trabalho diária, já que “entre 40% e 50% dos adultos” que acompanha nas suas consultas “foram vítimas da violência doméstica enquanto crianças”, contou.
A grande maioria dos maus-tratos (90%) é denunciada pelas vítimas, familiares ou conhecidos que se dirigem aos serviços de saúde, sendo raros os casos descobertos por profissionais de saúde.
Helena Almeida deu como exemplo as mulheres que aparecem no hospital “quatro e cinco vezes com acidentes mal explicados”, lamentando que ser frequente médicos e enfermeiros não sinalizarem esses casos.
Para Dália Costa, professora da Universidade de Lisboa, “as pessoas têm dificuldade em transformar um processo social num processo judicial. Os profissionais dizem que não o querem fazer sozinhos. As pessoas não querem fazer a denuncia”.
Os agentes policiais “sentem isso no dia-a-dia”, acrescentou Aurora Dantier, do Comando Metropolitano de Lisboa da PSP.
“Quando há uma situação de violência doméstica em casa ninguém se quer meter. Quando vamos notificar um vizinho diz-nos que não viu nada, não ouviu nada, que nem conhece as pessoas”, disse Aurora Dantier.
O confinamento e o encerramento físico das creches e escolas devido à pandemia de covid-19 deixaram as autoridades ainda mais preocupadas com os casos de maus-tratos, porque é das escolas que chegam grande parte das denúncias, sublinharam hoje os responsáveis, aplaudindo o trabalho feito pelos profissionais de educação.
“Há muitas vítimas invisíveis, mas as crianças são as mais invisíveis e, nestes dois últimos anos, vocês nem queiram saber. Durante a pandemia, estas crianças desapareceram. Se já eram invisíveis, agora desapareceram”, alertou Aurora Dantier.
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