Em causa estão as declarações das duas testemunhas na 31.ª sessão do julgamento, no Tribunal Central Criminal de Lisboa, a propósito do encontro entre o antigo CEO do fundo de investimento Doyen, Nélio Lucas, e o seu colaborador Pedro Henriques com o arguido Aníbal Pinto na área de serviço da autoestrada A5, em Oeiras, no dia 22 de outubro de 2015.

Durante a manhã, Hugo Monteiro contou que o inspetor-chefe Rogério Bravo o chamou para uma operação “onde poderia ocorrer uma detenção em flagrante delito”, caso “houvesse entrega de algum objeto por um dos alvos aos outros alvos” ou se fosse dada ordem nesse sentido, sublinhando que o objetivo era “controlar o espaço e assegurar a segurança dos intervenientes” no interior do espaço de restauração da área de serviço.

Paralelamente, o inspetor da PJ – que se sentou com a colega numa das mesas, enquanto Rogério Bravo e José Amador estavam no exterior do espaço - adiantou que a proximidade lhe “permitiu ouvir a conversa” e assinalou que “aquilo que foi discutido foram os contornos de um negócio”, em que Aníbal Pinto se apresentou como intermediário para um negócio de “cerca de meio milhão ou um milhão de euros” em que “ambas as partes poderiam sair beneficiadas”. Hugo Monteiro frisou ainda não ter gravado o encontro.

Já ao início da tarde, a inspetora da PJ Aida Freitas disse que “o objetivo era assistir a um encontro que iria acontecer entre determinadas pessoas e tentar ouvir o que se iria passar”, mas admitiu não ter ouvido “rigorosamente nada” da conversa entre Nélio Lucas, Pedro Henriques e Aníbal Pinto, acrescentando não ter lido o Relato de Diligência Externa (RDE) que foi elaborado e no qual eram referidos aspetos da conversa entre os intervenientes.

“Assinei o RDE, mas não li o que assinei. Falo de mim, não estava a uma distância natural para ouvir. Foi uma negligência minha, não devia ter assinado sem ler, mas assinei. Contra mim falo e mea culpa faço, mas não posso dizer que ouvi. No dia seguinte, deram-me o auto para assinar. Quem elaborou o RDE foi o José Amador”, afirmou, alegando “falta de tempo” e resumindo: “Muitas vezes assinamos coisas sem ler”.

As declarações surpreenderam o coletivo de juízes, com a presidente, Margarida Alves, a insurgir-se contra o teor do depoimento de Aida Freitas.

“Isto é mais grave ainda: dizer que assina o RDE de uma pessoa que elabora e não esteve na diligência. Nós analisamos as provas que nos são trazidas pelas autoridades”, atirou, secundada posteriormente pela juíza assistente Ana Paula Conceição: “Nós fazemos julgamentos com fé e confiança de que aquilo que os agentes da PJ escrevem nos RDE correspondem à verdade. Eu não vou assinar um acórdão sem ler o que lá está”.

Ato contínuo, deixou um aviso à direção da Polícia Judiciária, uma vez que o diretor Luís Neves ainda está entre a lista de testemunhas a ser ouvidas nos próximos meses: “Já que o diretor da Polícia Judiciária vem cá, será uma coisa para nós chamarmos à atenção, porque, pelos vistos, é o que se passa na instituição”.

A inspetora da PJ garantiu ainda que só leu o RDE em 2020 e reconheceu que “se tivesse lido na altura não teria assinado”, além de revelar que transmitiu isso ao inspetor José Amador, que coordenou a investigação do processo ‘Football Leaks’, bem como ao inspetor-chefe Rogério Bravo e ao coordenador Carlos Cabreiro, mas não ao diretor da instituição.

O julgamento, que contou ainda com a continuação da audição da testemunha José Luís Cristóvão, coordenador informático da Procuradoria-Geral da República, prossegue na quinta-feira, a partir das 09:30, com a audição da testemunha Bálint Bozo.

Rui Pinto, de 32 anos, responde por um total de 90 crimes: 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo, visando entidades como o Sporting, a Doyen, a sociedade de advogados PLMJ, a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e a Procuradoria-Geral da República (PGR), e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por extorsão, na forma tentada. Este último crime diz respeito à Doyen e foi o que levou também à pronúncia do advogado Aníbal Pinto.

O criador do Football Leaks encontra-se em liberdade desde 07 de agosto, “devido à sua colaboração” com a Polícia Judiciária (PJ) e ao seu “sentido crítico”, mas está, por questões de segurança, inserido no programa de proteção de testemunhas em local não revelado e sob proteção policial.