É o presidente de câmara mais antigo do país, pelo menos sem interrupções. Começou em Alcoutim, onde esteve 20 anos, e está há oito em Castro Marim, vai para o último mandato. Se tudo correr como espera, fará 32 anos como autarca. Depois, a reforma.

Francisco Amaral diz que é presidente de câmara "por mero acidente". Era médico de família e "nos anos 90 um médico de família era um médico frustrado. Um doente aparecia com sintoma gripal, febre e tosse, e tinha e lhe receitar obrigatoriamente um antibiótico, não um antipirético, como seria de esperar. Porque a pessoa saía dali e ficava à espera que alguém do monte fosse um dia a uma farmácia para aviar a receita. As pessoas iam à consulta a pé, de burro, a cavalo ou de bicicleta e tinham uma certa idade, eram mal alimentadas e as condições de habitabilidade deixavam a desejar. De maneira que a gripe dava origem a uma pneumonia. Sei lá quantos doentes meus terão morrido à espera que alguém lhes fosse comprar um antibiótico", conta.

Disse basta, concorreu a eleições e ganhou. Resolveu vários problemas de uma assentada. Criou a primeira unidade móvel do país, que andava de terra em terra a medir a tensão, o colesterol e a glicemia, mas não só. Fez das primeiras campanhas de vacinação em massa contra a gripe, ainda antes de os governos as adotarem a nível nacional. Foi o primeiro município a operar doentes às cataratas, alguns já invisuais. De tal maneira que foi abertura de telejornal, com a ministra da Saúde de então [Manuela Arcanjo] a pedir a perda de mandato por considerar que o autarca estava a meter-se numa área que não era a sua: financiou cerca de 70 operações no Hospital de Faro a doentes "que esperavam há quatro, cinco, seis anos por uma operação".

Hoje diz que "valeu a pena". Francisco Amaral nunca perdeu uma eleição, mas já teve arrelias. Sobretudo no último mandato, que obrigou à realização de eleições intercalares, coisa que até então só tinha acontecido uma vez em Portugal, em na Câmara Municipal do Fundão.

É que em 2017 a batalha autárquica foi renhida, e o PSD (em coligação com o CDS) venceu ao PS por apenas 32 votos. Isto levou a que a oposição se unisse, retirasse os poderes a Francisco Amaral e o obrigasse a reunir todas as semanas longas horas. "Já tive dois enfartes desde que aqui cheguei à conta do terrorismo psicológico que exerceram sobre mim, com comunicados anónimos, perfis falsos no Facebook em que me chamavam tudo - até adivinho quem esteja por trás disto, uma pessoa do meu partido, imagine. Os dois primeiros anos do mandato que está a acabar foram demasiado maus para ser verdade. O PS juntou-se com um partido independente, retiraram-me os poderes todos e obrigaram-me a ter reuniões semanais de quatro, cinco, seis, sete horas, autênticos massacres em que não se adiantava nada. As reuniões de câmara semanais tinham o auditório de 200 lugares cheio e eram transmitidas através do YouTube - tomara muitos artistas da canção terem as visualizações que nós tínhamos. Um espetáculo degradante", recorda.

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Ao fim de dois anos Francisco Amaral pede a demissão. São convocadas novas eleições e o resultado foi inequívoco, com o PSD a vencer por 59,82% (1.953 votos) e a lista socialista, liderada por Célia Brito, a reunir 34,46% (1.125 votos). 

Afirma que gosta de trabalhar em equipa, embora saiba que há autarcas que "são uns ditadorzecos". Com o seu chefe de gabinete, Dinis Faísca, ex-padre, psicólogo e agora candidato à câmara de Tavira, que trabalha na sala do presidente, tem um programa de cessação tabágica gratuito. Já deixaram de fumar 520 pessoas. "Ser autarca é quase uma profissão de fé", diz Francisco Amaral. E esta é a história que conta ao SAPO24.

Como está Castro Marim depois do incêndio deste Verão, em agosto? Já são conhecidos os prejuízos?

Vivi por dentro este incêndio. Arderam cerca de 6.800 hectares e houve 18 pastores que ficaram sem comida para os seus rebanhos, o que levou o município a adquirir rações e palha logo no dia a seguir. Ardeu uma casa e diversas instalações, muitos proprietários ficaram sem a sua fonte de rendimento, sem oliveiras, sem amendoeiras, sem alfarrobeiras, inclusivamente casais jovens, que viviam desse rendimento. De maneira que a situação é deveras preocupante. Claro que o município já está no terreno a averiguar os prejuízos, já passámos essa mensagem ao Ministério da Agricultura, que mais tarde virá confirmar estes prejuízos. Mas estou em crer que se houver algumas ajudas por parte do Ministério da Agricultura, como de costume, só daqui a um ano ou dois é que essas ajudas hão de chegar. Nós estamos a preparar algumas ajudas urgentes imediatas para, de algum modo, tentar que as pessoas voltem a cultivar os seus terrenos. Temos ideia que arderam muitas mangueiras, motores de rega, muitas colmeias. Portanto, vamos tentar ajudar já estas pessoas a retomar a sua atividade, a sua fonte de rendimento. Foi um prejuízo enorme.

Já esteve alguém do governo, do Ministério da Agricultura, no local?

Ainda não. No final do incêndio houve uma conferência de imprensa em que esteve a secretária de Estado da Administração Interna, com um discurso de que não gostei nada. Manifestava a sua felicidade, estávamos todos de parabéns porque só teriam ardido 6.500 hectares, quando podiam ter ardido muito mais. De facto, penso que a senhora estava um pouco desfasada da realidade, porque a população sentiu muito este incêndio, sofreu muito e ainda está a sofrer. Não é caso para nos vangloriarmos nem ficarmos muito felizes, o incêndio lesou deveras os interesses desta gente. 

Sabemos que boa parte dos incêndios tem origem criminosa. Como olha para a legislação neste caso em particular?

Infelizmente não é só neste caso. Em Portugal, a justiça em geral deixa muito a desejar. Aliás, quando se chega à conclusão que quando se rouba tem de se roubar muito, que é para poder pagar a bons advogados bons e safar a pele, é princípio do fim de uma sociedade civilizada. Como sabe, houve gente a passar férias em Itália, mas não acontece nada a esta rapaziada. Não estou a dizer nada de novo, toda a gente se apercebe deste filme. É a justiça que temos em Portugal.

"Estou a pensar em arranjar um programa para financiar as próteses dentárias, porque é desumano um velhote não poder comer um bife. Os velhotes levam a vida inteira a comer sopas porque não conseguem mastigar"

É médico. Já lhe entraram pelo gabinete dentro a pedir uma consulta?

Diariamente. Tanto recebo investidores, como pessoas a falar do projeto da sua casa ou da sua empresa, como recebo doentes. Repare, o serviço nacional de saúde deixa muito a desejar. Uma consulta médica de especialidade no Hospital de Faro - ortopedia, ginecologia, neurocirurgia - demora meses, anos. Uma intervenção cirúrgica a uma hérnia discal demora anos. Tratar uma artrose demora anos. Os médicos do Hospital de Faro são uns heróis; devia haver mais de 20 ortopedistas, há cinco ou seis. Uma consulta de oftalmologia leva tempos, para fazer uma operação às cataratas são anos. As coisas não funcionam bem.

Continua a ter uma ligação com o Hospital de Faro?

Nunca me divorciei do Hospital de Faro, onde fiz o meu estágio. Vou lá todas as quintas-feiras, estou em contacto permanente, tento desbloquear certas situações. Agora, todos os dias vêm cá pessoas com problemas de saúde porque ninguém os resolve. Às vezes consigo ajudar, outras vezes não. As câmaras, muitas vezes, substituem-se ao governo em muita coisa. Se a câmara não transportasse as pessoas para a consulta externa do hospital ou para fazer o exame auxiliar de diagnóstico, por exemplo, as pessoas não iam. Porque não há transportes públicos. Estamos diariamente a substituir-nos ao poder central.

Pode dar outros exemplos?

Desde que estou em Castro Marim nunca tive maioria na Assembleia Municipal. Este mandato queria ter, para poder rever o Regulamento da Ação Social, que está um pouco obsoleto. Estou a pensar na forma de arranjar maneira de financiar algumas operações, algumas consultas, porque o serviço nacional de saúde não dá resposta. Repare, vai à serra algarvia, pede àqueles velhotes todos para abrirem a boca e os poucos dentes que têm estão cariados. Estou a pensar em arranjar um programa para financiar as próteses dentárias, porque é desumano um velhote não poder comer um bife. Os velhotes levam a vida inteira a comer sopas porque não conseguem mastigar. E o serviço nacional de saúde não dá resposta, então, o município vai encontrar uma solução. Desde que cheguei, há oito anos, criei a primeira Unidade de Saúde Móvel com médico e com enfermeiro que todos os dias percorre os montes do concelho. De algum modo estamos a aliviar as consultas dos centros de saúde, estamos a aliviar o Hospital de Faro. Médico e enfermeiro são contratados pela câmara, que faz parcerias com as IPSS [Instituições Particulares de Solidariedade Social], com as Misericórdias, e as coisas funcionam. Alguns são médicos já reformados que exerceram aqui as suas funções e são conhecedores de todas estas patologias.

créditos: PSD
"Se os governos quisessem mesmo combater a desertificação, perguntavam a um autarcarzinho que já aqui anda há muito anos, como eu"

Ouvimos muitas vezes que o governo abre concursos para contratar médicos para o Algarve e eles ficam vazios. É assim? Porquê?

Repare, está mais que visto que o rácio de médicos por habitante em Portugal é superior ao de outros países. O que acontece é que os médicos são mal-tratados no Estado, por isso há uma carência de ortopedistas, de oftalmologistas, porque ganham mais num fim-de-semana numa clínica privada, num hospital privado do que um mês inteiro no público. O governo pode abrir os concursos todos que não tem médicos, porque não os acarinha, não os apoia, não lhes dá as compensações que devia dar. E assim continua. Mas penso que existem médicos de família em número suficiente, pelo menos em Castro Marim. O que há é uma enormíssima falta de especialistas.

Perguntas à queima-roupa a Francisco Amaral

O que fazem ou faziam os seus pais?

O meu pai era diretor escolar de Faro e a minha mãe era ajudante de farmácia - era a dona de uma farmácia e, por sua vez, ajudante.

Quem são os seus amigos?

Os meus amigos são aqueles que gostam de mim e de quem eu gosto.

Quem foi o pior primeiro-ministro de todos os tempos?

Engenheiro Sócrates, afundou este país.

Qual o seu maior medo?

Medo é uma palavra que não existe no meu dicionário.

Qual o seu maior defeito?

É estar disponível para tudo e para todos. E não me preocupar com a minha saúde. 

Quem é a pessoa que mais admira?

O Papa Francisco.

Qual a sua maior qualidade?

Pachorra, pachorra.

Qual a maior extravagância que já fez?

É pegar no barco, meter gasolina e ir à pesca para longe. Faço esta extravagância algumas vezes.

Qual a pior profissão do mundo?

Se calhar é trabalhar no esgoto. Valorizo muito os funcionários da câmara que trabalham nos lixos e no esgoto...

Se fosse um animal, que animal seria?

Cão.

Quem não merece uma segunda oportunidade?

Acho que toda a gente merece uma segunda oportunidade.

Em que ocasiões mente?

Minto muitas vezes no Hospital de Faro, quando vou ver os doentes e vejo que a coisa está muito feia, digo: "Eh pá, você vai ficar melhor, isso vai-se vencer, vamos conseguir" e tal, tal. Quase todas as quintas-feiras eu faço uma mentirinha.

Quem foi o melhor presidente de sempre da Câmara Municipal de Castro Marim?

Talvez tivesse sido José Guilhermino Anacleto [1976-1997, PS].

Se fosse uma personagem de ficção, que personagem seria?

Se fosse uma personagem de ficção? Agora é que me fintou. [Pensa] O Peter Pan. 

Que traço de perfil obrigatório tem de ter alguém para trabalhar consigo?

Tem de ser honesto, ser disponível, sério e... Estar sempre disponível.

Qual o seu filme de eleição?

"E Tudo o Vento Levou" [Victor Fleming].

O que a faz perder a cabeça?

A hipocrisia e o cinismo de algumas pessoas.

O que a deixa feliz?

Os meus netos.

Um adjetivo para Rosa Nunes, candidata do PS?

Tem uma missão bastante difícil.

Como gostaria de ser lembrado?

Como o Chico.

Com quem nunca faria uma aliança?

Com pessoas sem caráter. 

Descreva a última vez que se irritou.

Olhe, irritei-me agora com este incêndio que houve quando ouvi a senhor secretária de Estado da Proteção Civil dizer que estamos todos de parabéns, isto correu bastante bem, só arderam xis hectares e podiam ter ardido muitos mais, estou muito feliz e tal, tal. Isto irritou-me muito, porque não foi nada disto que se passou.

Tem uma comida de conforto ou de consolo? Qual?

Em minha casa eu é que cozinho, cozinho melhor do que a minha mulher. Aliás, planto tudo biológico na minha estufa, na minha horta. Faço um ratatouille bastante bem-feito e faço as minhas sopas - agora tenho lá umas abóboras, faço sopa de abóbora espetacular. 

Se for eleito presidente da Câmara Municipal de Castro Marim, qual a sua primeira medida?

Já lhe falei de algumas, há que fazer mais habitação, pôr águas potável por esses montes fora, substituir a rede de água e esgotos, dar a volta ao regulamento de Acção Social para o tornar mais abrangente, mais amigo de quem precisa e menos burocrático.

A que político nunca compraria um carro em segunda mão?

A António Costa.

Se pudesse ser congelado e acordar daqui a 100 anos, o que quereria saber?

Queria saber o que tinha acontecido aos meus netos, penso que ainda seriam vivos. Gostaria de os ver. Há bem pouco tempo faleceu o motorista aqui da câmara, o meu motorista, e, sinceramente... No meu discurso de apresentação vou dedicar-lhe a minha vitoria, porque, de facto, é uma pessoa que... Uma boa pessoa.

Como olha para as Administrações Regionais de Saúde e o papel que desempenham?

No caso particular da ARS Algarve penso que há ali muita politiquice. Acho que os setores do Estado deviam estar acima da partidarite, deviam trabalhar de mãos dadas com os municípios. Por acaso, o presidente da ARS gosta de mim, mas isso é outra questão. O que nos interessa é o bem-estar das pessoas, é que o povo tenha saúde. Que não tem. Agora há os ACES [Agrupamento de Centros de Saúde], porque de vez em quanto inventam-se umas modernices. Fui eleito pelos presidentes de câmara para representar os concelhos de Alcoutim, Castro Marim, Vila Real de Santo António e Tavira junto da saúde. Mas, se quer que lhe diga, não sou tido nem achado, não sou ouvido e a ARS continua a fazer como sempre fez. Aliás, ainda recentemente aconteceu uma coisa horrível, em plena pandemia despediram o delegado de saúde de Castro Marim, uma pessoa competentíssima, trabalhadora, motivada, interessada. Despediram-no ainda hoje não sei porquê, se calhar porque tinha um bom relacionamento com o presidente de câmara, que não é socialista. Isto é um absurdo, não faz sentido nenhum, é perseguição descarada às pessoas que não são do partido do governo. Lamento que este governo ande com as câmaras socialistas quase ao colo. Raramente um membro do governo vem a Castro Marim, mas vai quase semanalmente a Alcoutim, Tavira, Olhão. Isto é feio. O governo deve ser superior a estas guerrinhas de partidos, deve ter sentido de Estado.

A situação foi sempre assim no Algarve ou tem vindo a mudar?

É preciso ver que não há um Algarve, há o Algarve litoral e o Algarve serra. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. O Algarve da serra é mais simples, mais humilde, mais afável, mais acolhedor, mais simpático. O Algarve do litoral já é mais tipo Lisboa ou Porto. Se quer que lhe diga, desde que estou na câmara, há 28 anos, que oiço falar em ordenamento do território. Mas tem-se desordenado o território de uma madeira assustadora. Cada vez mais os portugueses estão-se a afunilar nas áreas metropolitanas de Lisboa, Porto e litoral centro algarvio. O interior do país está cada vez mais deserto, a serra algarvia em particular. Depois, de vez em quando inventa-se uma para combater a desertificação, lá arranjam uns nomes muito pomposos, o Observatório Nacional da Desertificação e a Comissão Nacional de Coordenação do Combate à Desertificação. Mas é só para inglês ver. Se os governos quisessem mesmo combater a desertificação, perguntavam a um autarcarzinho que já aqui anda há muito anos, como eu. E então eu explicava ao senhor primeiro-ministro como é que se combate a desertificação.

"Um casal jovem tem mais facilidade em comprar um apartamento em Albufeira ou em Faro do que em construir uma casinha na serra, no quintal da avó"

E como é que se combate a desertificação?

Olhe, não é com as parangonas que ele anda aí a anunciar agora. Uma das coisas que eu aconselharia ao senhor primeiro-ministro é a pegar em alguns milhões da bazuca e colocar rede de telefones e de Internet no país todo. Uma parte do interior do país não tem rede. Ninguém convence um casal jovem a fixar-se no interior do país, na serra algarvia, se não tiver rede de telemóveis ou de Internet. Depois, há que pôr água potável nesse interior todo, nessa serra toda. Água potável em casa é uma condição básica. Além disso, há que facilitar a construção - temos de nos deixar de inventar os tais instrumentos de ordenação do território, que não ordenam nada, pelo contrário, só diabolizam. Qualquer casal jovem que se queira fixar na serra tem a Reserva Ecológica e a Rede Natura e agora ainda inventaram outra (à conta dos incêndios de 2017), que é a Comissão Municipal da Defesa da Floresta contra os Incêndios, que é para obstaculizar ainda mais, para dificultar ainda mais. É tudo um absurdo. Os governos todos entram em pânico nos meses de Verão porque a abertura dos telejornais são os incêndios, por isso este governo fabricou em cima do joelho uma lei que dificulta ainda mais as coisas. Um casal jovem tem mais facilidade em comprar um apartamento em Albufeira ou em Faro do que em construir uma casinha na serra, no quintal da avó.

Falou na questão da rede. Vimos durante a pandemia muitas histórias de professores que andavam com tudo na bagageira do carro à procura de sinal para poderem dar uma aula. E alunos também.

Mais uma vez a resposta está em não haver só um Algarve. No Algarve serra há uma iliteracia muito grande e também uma população mais envelhecida. Castro Marim tem a sorte de ser litoral, temos das mais belas praias, Praia Verde, Altura...

E a Reserva do Sapal de Castro Marim. 

Sim. Temos uma comunidade intermunicipal, que antes se chamava Associação de Municípios - só mudou o nome, sabe que neste país o que muda é o nome. Reunimos todos os meses, conversamos e, quando é necessário, tomamos posições em conjunto. Tem-se feito alguma coisa na Reserva do Sapal e na Ria Formosa, e agora parece que vamos ter mais competências. Todos os governos se dizem muito descentralizados, regionalistas, e cada vez tiram mais competências aos municípios. É só conversa. O Rio Guadiana, que tem um potencial enorme, não gera um tostão de riqueza desde Vila Real de Santo António até Mértola à conta do fundamentalismo ambiental. Qualquer rio na Europa gera riqueza.

O governo está neste momento a fazer a transferência de poderes do Estado central para os municípios. Como vê esta descentralização?

Penso que esta descentralização é um pouco irresponsável porque é feita à revelia dos municípios e com obrigatoriedade de aceitar competência a partir de determinada data. Além de que é feita sem o pacote financeiro, desgarrada de tudo. Muitos municípios não estão preparados para agarrar essas competências.

Quais são as áreas que o preocupam mais?

Na educação, por exemplo, não faz sentido ficarmos com a escola, que está em péssimo estado de construção. Se calhar vamos ter de construir uma escola nova. O mesmo em relação ao Centro de Saúde de Castro Marim. Mas o município não tem competências como empreiteiro. Gostava que a transferência de poderes fosse uma transferência da gestão, porque todos os dias somos confrontados com utentes que vêm ter connosco para lhes resolvermos problemas. Faz sentido ficarmos com poder na área da saúde, mas não é para gerir os edifícios. Além de que hoje já há legislação sobre a matéria, mas que não é aplicada. Os ACES deviam ouvir o presidente da comunidade intermunicipal, mas não sou tido nem achado. São as capelinhas, seja na educação, seja na saúde. 

"Tenho a sorte de ter uma boa vice-presidente, que é economista, e no Algarve pouca gente percebe tanto de fundos comunitários como ela"

Em dez anos Castro Maria perdeu cerca de 500 habitantes, numa população que ronda os 6.400 residentes, de acordo com o Censos 2021. Porque saem as pessoas?

No caso particular de Castro Marim, penso que porque ainda há necessidades básicas. Quando saí de Alcoutim, Alcoutim também tinha uma centena de povoações dispersas, mas já havia água canalizada em todas elas. Aqui há 57 povoações que não têm sequer água potável. Têm fontanários, que não são de água potável, no Verão nem isso. Quando cheguei, todos os municípios do país tinham aproveitado os fundos comunitários para renovar redes de água e esgotos, menos Castro Marim. É mais uma batalha que estamos a travar agora. Todos os municípios tinham um parque empresarial, Castro Marim não. Todos os concelhos tinham um parque de autocaravanas, Castro Marim não. Em muitas áreas estamos a começar quase do zero, havia lacunas muito grandes e estamos a ver se conseguimos dar a volta a isto. Por exemplo, o parque empresarial de Vila Real de Santo António está esgotadíssimo. Como tal, já apareceram aqui uma dúzia de potenciais empresários, mas não lhes consegui dar um lote.

Castro Marim tem projetos para apresentar no âmbito do PRR? Quais?

Repare, uma das lacunas que também existe em Castro Marim é a habitação. No Verão, a necessidade de habitação quadruplica ou quintuplica, e há muita especulação imobiliária, os valores de arrendamento são altíssimos. Portanto, no próximo mandato há que construir casas para as famílias, esse é um cavalo de batalha a que temos de deitar mão. De resto, as limitações do PRR são mais que muitas, as regras feitas em Lisboa, negociadas com a Comissão Europeia, não se adaptam à realidade do país. No caso do saneamento básico, que precisamos, só municípios com mais de 10 mil habitantes. Mas tenho a sorte de ter uma boa vice-presidente, que é economista, e no Algarve pouca gente percebe tanto de fundos comunitários como ela.

Como foi nascer e trabalhar em Alcoutim, sobretudo para alguém que regressou depois de ter estado em Faro, de ter estudado em Lisboa?

Vivi em Alcoutim até aos cinco anos. Aos seis anos fui para Faro, onde o meu pai era director escolar. Foi lá que vivi a minha infância e juventude. O meu pai morreu quando eu ia para a faculdade e a minha mãe disse-me que tinha de esquecer o curso, não havia dinheiro. Mas eu, que sempre gostei de coisas difíceis, nos dois primeiros anos de faculdade fui para a apanha da maçã e da pêra em França, nos meses de Setembro e Outubro, e ganhei dinheiro para viver o resto do ano em Lisboa e para estudar. No terceiro ano, eu e mais dois ou três fomos explorar o bar da faculdade. Fiz milhares de bitoques, tirei milhares de bicas, fiz centenas de sandes de queijo. Acabei o curso e fui para o Hospital de Faro fazer o estágio, onde estive dois ou três anos, e regressei a Alcoutim. O meu sonho era ser médico de família em Alcoutim, e estive lá 12 anos como médico de família. Ao fim desse tempo meti-me nesta aventura de autarca e lixei a minha carreira profissional. Ainda sonho em voltar a ser médico a tempo inteiro. 

"Castro Marim já foi considerada a melhor câmara em termos de gestão e continua nos lugares cimeiros"

Este será o seu último mandato ou ainda pensa em candidatar-se a outra câmara da região?

Já chega, já chega. Costumo dizer que não preciso de férias, aliás, acho que nunca tive férias. De vez em quando tiro uma tarde para ir à pesca ou para ir à caça ou para ir à minha horta, com o meu cão labrador, que se chama Xanax - tenho cinco cães, a minha mulher é veterinária, dá conta daquela bicharada toda. O sonho da minha vida é reformar-me de vez da vida autárquica, andar duas ou três manhãs por semana numa unidade móvel a medir a "atenção" aos velhotes e, depois, ir à caça, à pesca ou à horta para relaxar. 

Que pastas gosta de ter para si na câmara municipal?

Saúde, claro, Ação Social e Proteção Civil. Como disse, tenho a sorte de ter uma boa vice-presidente, formada em Economia, e é ela que gere os dinheiros da câmara, ela é que percebe de números. Castro Marim já foi considerada a melhor câmara em termos de gestão e continua nos lugares cimeiros.

Diz que cozinha bem e tem uma horta biológica. Como olha para estas medidas de não ter determinados alimentos nas escolas, por exemplo?

Acho que há aí muito fundamentalismo. Não é assim que se conseguem as coisas. Realmente, tem de se educar os miúdos, educar nas escolas, para terem uma boa alimentação, uma alimentação saudável, não fumarem, não consumirem álcool. Mas isso é educar, não é ditar, isso faz-me lembrar os talibãs. Então agora não se pode comer uma sandes de não sei o quê? Acho fundamentalismo a mais. Deve-se educar, ensinar, explicar. Não é cortar. Aliás, quem se vai safar são os cafés e restaurantes à volta das escolas, os miúdos vão continuar a comer essas porcarias todas. Temos de desenvolver este país de uma maneira equilibrada, harmoniosa, sem fundamentalismos, sejam do ordenamento do território, ambientais ou outros.