Teve o seu primeiro posto de embaixador na Guiné-Bissau - que ontem foi a votos numa segunda volta das eleições presidenciais - onde já tinha estado trinta anos antes, a combater na Guerra do Ultramar. Desta vez, as coisas não foram mais pacíficas, mas o conflito era entre Ansumane Mané e Nino Vieira. Foram onze meses caóticos, que terminaram com a retirada de cerca de dois mil portugueses, sem proteção militar e com bombas a cair por todos os lados. De Portugal, cada um dava uma ordem diferente.

Francisco Henriques da Silva, licenciado em História, começou a carreira diplomática nos Estados Unidos, onde nasceu o filho, em New Bedford, na costa Leste, e onde foi abrir um consulado. Seguiu para Paris, onde esteve durante a transição de Giscard d'Estaing para François Mitterrand, e regressou a Lisboa. Depois veio o Canadá e mais tarde a Comissão Europeia, onde foi assessor do comissário João de Deus Pinheiro.

É então que surge a Guiné-Bissau, Abidjan, na Costa do Marfim, e Nova Deli, na Índia. De volta a Lisboa, fica como diretor-geral dos Assuntos Multilaterais no Ministério dos Negócios Estrangeiros até ser enviado para o México e terminar a carreira na Hungria. Viveu num total de nove países, passou por 70, e todos deixaram histórias para contar.

é aquilo a que no Ministério [dos Negócios Estrangeiros] se chama a carreira Revlon ou Elizabeth Arden, que é a carreira bonita [ri], em que se vai para cidades agradáveis, como Londres, Paris, Madrid e por aí fora

Como é viver em nove países, ainda por cima com culturas tão distintas?

A primeira parte da minha carreira foi passada em países ocidentais - é aquilo a que no Ministério [dos Negócios Estrangeiros] se chama a carreira Revlon ou Elizabeth Arden, que é a carreira bonita [ri], em que se vai para cidades agradáveis, como Londres, Paris, Madrid e por aí fora - enfim, este não foi exatamente o meu percurso, mas foi parecido. Depois, quando fui para o posto de embaixador, apanhei primeiro a Guiné-Bissau, e foi bastante duro, com a guerra civil, a seguir a Costa do Marfim, com golpes de Estado, e mais tarde a Índia, que se envolve numa sarrafusca com o Paquistão, como era habitual, e estavam quase à beira de um conflito nuclear.

Foi azar ou castigo?

No Ministério já olhavam para mim de soslaio: "Onde é que este irá parar a seguir, que é para eu me manter longe...". Depois disso fui para o México, tudo normal, e para a Hungria, normal também.

Como é ir como embaixador para um país, a Guiné-Bissau, onde trinta anos antes se esteve a combater?

É uma experiência única, penso que é inédito. Sobretudo porque apanhei combate da primeira vez e voltei a apanhar combate da segunda. Mas são duas situações muito diferentes. Da primeira vez estamos acompanhados; temos um pelotão, uma companhia, a nossa tropa. Da segunda vez estamos isolados, entregues a nós. E há um conflito, que já não é só no mato, mas dentro da cidade, em que duas facções andam a bombardear-se de um lado para o outro, há refugiados, há problemas de saúde, há problemas de alimentação, há problemas de água e há evacuações... É uma situação muitíssimo mais complexa e a pessoa não tem com o que se defender.

Era oficial de infantaria com a especialidade de minas, armadilhas e explosivos, de maneira que tinha de me ocupar dessas coisas - e não era com as indumentárias quase marcianas que se vê nos filmes, era de corpinho bem-feito e com uma faquinha

Antes de continuar por aí, gostaria que me descrevesse como foi a primeira vez, quando era ainda miúdo e foi combater na Guiné Portuguesa?

Eu era alferes miliciano. Fui para a Guiné em 1968, quando lá cheguei o general Spínola era o governador. E saí em 1970. Estive em três localidades: Co, o chamado "chão" mancanha, uma das etnias, e foi aí que tivemos o primeiro aquartelamento. O segundo, onde estivemos um mês e meio, foi em Mansabá, no centro norte, e depois em Olossato, que fica no centro da Guiné, na mata, que era junto a uma das bases do PAIGC [Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde]. Claro que esta primeira comissão envolve perigos de vida, eu estava a comandar tropas... Era oficial de infantaria com a especialidade de minas, armadilhas e explosivos, de maneira que tinha de me ocupar dessas coisas - e não era com as indumentárias quase marcianas que se vê nos filmes, era de corpinho bem-feito e com uma faquinha. No fundo, era tudo ao molho e fé em Deus, como se costuma dizer. As comissões eram difíceis, não só pela situação de guerra - era uma guerra de fraca intensidade, mas com mortos, feridos, emboscadas, minas - como pelas condições de vida, que eram más: a alimentação era má, os cuidados de saúde eram deficientes, as instalações onde vivíamos eram desconfortáveis. Poder-se-á dizer que na altura não se vivia muito melhor no Portugal dos pequenitos, mas não estávamos em perigo de vida nem em situação de poder pisar uma mina e perder uma perna ou ter fome no meio do nada.

Afirmou que da segunda vez não tinha com o que se defender. Era embaixador, tinha o apoio do governo português, ou não?

Da segunda vez [1997 a 1999] foi diferente, porque era uma coisa que já estávamos a prever que ia acontecer. Descrevo isso no livro "Crónicas dos (Des)Feitos da Guiné": já se previa. Só que na altura os governantes prestaram pouca atenção a isso. Eu avisei, quando estamos em posto informamos: atenção, há aqui problemas entre facções militares adversas, vão-se pegar, daqui vai resultar um problema complicado, preparem-se. Já se usava fax e telex e começava a usar-se o telefone satélite. Portanto, comunicávamos, fazíamos os nossos relatos, que eram imediatamente recebidos aqui [Portugal]. Cá eram filtrados e levados ao ministro dos [Negócios] Estrangeiros, ao primeiro-ministro, ao ministro da Defesa e, de acordo com a importância, podiam até ir a outros ministros e, eventualmente, ao presidente da República.

O primeiro-ministro de então era António Guterres...

Era. Mas, quando a situação se complica, o problema é que começa cada um a dar ordens para seu lado, e quem está no local é que se vê a braços com a situação. A diz uma coisa, B diz que é preciso entregar ajuda humanitária, C diz que é quem manda e, no meio da confusão, é preciso fazer sair os portugueses do país. As autoridades portuguesas não estavam precavidas para uma coisa daquelas.

créditos: Rodrigo Mendes | MadreMedia

Como não, se tinha colocado o governo ao corrente do que se estava a passar?

O ministro dos [Negócios] Estrangeiros [Jaime Gama] tinha ideia do que se estava a passar, os outros nem tanto. Como sabe, há muitos assuntos que passam pelo governo. Imagine que neste momento há um problema com os portugueses em Marrocos, a verdade é que nós estamos aqui a pensar no que se passou na Assembleia da República na semana passada, se vão ou não subir os impostos, se houve um desastre qualquer em Famalicão...

Mas há alguém que sabe que há um problema em Marrocos e alguém já o transmitiu.

Há, e se de repente surge o problema em grande escala, aí é que o governo resolve atuar. Fui informando diariamente sobre o que se estava a passar: Ansumane Mané, que foi chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas de Nino Vieira [presidente da Guiné-Bissau] - e tinham sido companheiros de luta, Ansumane foi guarda-costas de Nino Vieira durante a luta do PAIGC, levou-o às costas quando este foi ferido, andaram em canoas... - zangou-se. Ansumane é de uma etnia diferente da de Nino Vieira e até de um país diferente, era da Gâmbia (mas lá os países não contam muito, o que interessa muito no contexto africano são as ligações tribais).

Ansumane Mané, que foi destituído do cargo de chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas...

O que se passou foi que a certa altura há um problema de tráfico de armas para os rebeldes de Casamansa, um movimento do sul do Senegal que pretendia independentizar-se em relação a Dakar. Começaram com acções de guerrilha, e o que os militares guineenses fizeram foi vender armamento. A certa altura há um assalto aos paióis, os cadeados aparecem forçados, o material de guerra é roubado e, em consequência disso, Nino Vieira demite o chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas, o amigo Ansumane Mané. Além disso, há um problema de fundo castrense: os militares que andam a combater na mata já não servem para andar de Kalashnikov a dar tiros. A situação é de paz e esses militares devem ser reintegrados na sociedade. Ora, se isto causa um problema em sociedades como a nossa e levanta um conjunto de questões, imagine como é num sítio sem meios, sem assistência social, nada.

E é esta massa enorme de antigos combatentes, que vai juntar-se a Ansumane Mané e a outros descontentes das Forças Armadas, o pano de fundo para o tráfico de armas para Casamansa

A velha questão da reintegração dos antigos combatentes na sociedade...

Os antigos combatentes sentem-se ostracizados, marginalizados pelo poder político da altura, que diz que o que as Forças Armadas precisam agora é de competências técnicas, de saber de computadores, de radares, de mísseis, e não de tipos que andem de Kalashnikov na mata. Por outro lado, os jovens oficiais formados, uns na União Soviética, outros em Portugal, outros no Brasil, outros em França, acreditam que são a nova geração e que não vão precisar da outra gente. E é esta massa enorme de antigos combatentes, que vai juntar-se a Ansumane Mané e a outros descontentes das Forças Armadas, o pano de fundo para o tráfico de armas para Casamansa.

E revoltam-se contra Nino.

Revoltam-se contra o Nino. Além disso, há um problema político na sociedade da Guiné-Bissau: consideram que o regime não é democrático. De facto, verifiquei isso in loco, aceitavam-se as regras da democracia, mas não todas. Uma vez falei com Nino Vieira sobre a separação de poderes, que é uma questão essencial, e diz ele: "Se 'fulano' fala mal de mim na Assembleia, mando prender". Não pode, dizia eu, ele é deputado, pode dizer o que quiser. É como a história de André Ventura [deputado censurado pelo presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, por usar a palavra vergonha], não pode ser... "Mas eu tenho o poder, eu é que sou o presidente eleito", insistia ele. Está bem, mas isso não significa que possa fazer tudo. São conceitos muito difíceis, se a nós às vezes custa deixar passar, imagine ali.

Portanto, como disse, não aconteceu tudo de repente, o clima de conflito foi-se intensificando, até se tornar insustentável.

Nino preparava-se para uma viagem ao nível da Organização da Unidade Africana, ia a caminho do aeroporto, a equipa de protocolo e mais uns guardas segue à frente, embarcavam uma hora depois, quando são atacados, e matam o chefe de protocolo. É um levantamento militar, dá-se a tentativa de golpe de Estado. Nino reage fortemente e, esta é a asneira fundamental, vê que a maior parte dos oficiais não lhe obedece, apenas um pequeno grupo cumpre as suas ordens, e decide chamar a tropa do Senegal e da Guiné Conacri, ao abrigo de acordos um pouco mal cozinhados e escuros, que vieram imediatamente. Isto cria na população um sentimento geral de revolta, são tropas estrangeiras que ali estão. Por estranho que pareça, foi aí que senti pela primeira vez que havia um sentimento nacionalista ou patriota por parte da população, apesar das etnias todas. A partir daí é o descalabro: os rebeldes tomam conta da base aérea e dos centros das Forças Armadas e bombardeiam a cidade, ninguém consegue sair, estamos encurralados. Os militares tomam conta da cidade e há escaramuças por todo o lado.

"General, há um problema complicadíssimo, não temos homens. (...) E, já agora, ocuparam a sua ponta [quinta] e roubaram-lhe dois porcos"

Nessa altura ainda conseguia comunicar com Portugal? Porque sei que em dado momento foram cortadas as ligações telefónicas.

Há uma cena engraçadíssima: havia um clube de caça, que era de um português, que tinha um telefone satélite. A dada altura o chefe do Estado-Maior do Exército vai lá e pede para falar com Nino Vieira, porque não havia linhas telefónicas. E ele [o português] ouviu a conversa, que era uma coisa deste género: "General, há um problema complicadíssimo, não temos homens. Em Bafatá - a segunda maior cidade da Guiné-Bissau - temos cerca de 50 homens, o resto está tudo disperso ou aderiu aos rebeldes, não temos água, não temos munições nem armamento, não há cadeia de comando. E, já agora, ocuparam a sua ponta [quinta] e roubaram-lhe dois porcos". "O quê, atreveram-se a roubar dois porcos ao presidente da República?!" Está a ver...

créditos: Rodrigo Mendes | MadreMedia

Lembra-se da última comunicação que fez? Qual era a sua missão, tirar de lá os portugueses?

Essa era a parte mais complicada. Mantive-me sempre em contacto e, felizmente, estavam no local dois homens da Portugal Telecom, que me cederam um telefone satélite, que eu não tinha, e sem isso ficava completamente incomunicável. Foi um milagre. Disseram-me: "Está aqui um telefone satélite, funciona assim, aqui tem e nós vamos embora na primeira evacuação". E assim foi, e foi assim que consegui manter o contacto. Foi de facto uma coisa absolutamente homérica. Depois, a questão era: como vamos retirar os portugueses?

Quantos portugueses havia na Guiné-Bissau nessa altura?

Tínhamos feito uma conta por alto e calculámos 1400 portugueses. Mas rapidamente percebemos que o número era muito superior, cerca de 2000. Porque havia muitos portugueses de cor, com passaporte português e que também queriam ser retirados, mas não fazíamos ideia de quantos, porque não se manifestavam. Então foi a confusão total. A certa altura, há um navio mercante da Portline, o Ponta de Sagres, em Cabo Verde, e o comandante diz que pode rumar até nós e fazer a retirada das pessoas que se encontravam em Bissau, não muito mais - mais tarde foi condecorado com a Ordem Militar da Torre e Espada pela sua coragem.

Como é feita a evacuação em condições de guerra?

Quando sei isso, comunico a Lisboa e digo que vamos aproveitar um período de trégua para fazer a evacuação, que é feita sem qualquer proteção militar, é a grande loucura. Isto é, há um barco que chega a uma cidade hostil e que vai atracar para receber refugiados que vão para o porto pelo seu pé, no meio de tiros - é assim como ir a pé pela Rua Augusta até ao Cais das Colunas.

Quem controlava?

O controlo é completamente aleatório. As pessoas partiam de três ou quatro pontos da cidade, da embaixada onde estávamos, da Catedral, do Hotel 24 de Setembro, em direcção ao cais. Disseram-nos que o período de tréguas seria em determinado tempo, o que, em maré alta, nos permitia fazer o embarque. Só que, como não havia comunicações, a evacuação, que devia começar às nove da manhã, começou as quatro da tarde.

Com que consequências?

Os rebeldes, sabendo que o período de tréguas tinha acabado, começam a bombardear o cais de Bissau com Katyushas, que lançam foguetes com 35 Kg de TNT, que deitam este edifício [Fórum Picoas, local da entrevista] abaixo, e com morteiros 120, que furam um bunker. Felizmente, aquilo caiu na água, porque estavam centenas de pessoas no cais para embarcar.

Temeu pela vida?

Medo, nestas coisas... A questão psicológica é muito curiosa, depende dos seres humanos. Vi militares de carreira, não vou citar nomes, que estavam nervosíssimos quando foram retirados: "Criou uma mãe um filho para isto", "nunca mais cá ponho os pés"... A minha mulher, que é mulher e nunca tinha passado por uma situação daquelas, teve de dizer: "O senhor tome um comprimido e acalme-se". Às vezes, aqueles que pensamos que são uns valentões são os primeiros a fugir, enquanto outros, uns lingrinhas ou mães de filhos, são os que aguentam mais. No cais, as pessoas queriam embarcar, mas foi o caos total. Até que lá seguiram para Dakar.

Teve de ficar em Bissau, mas a sua mulher, ficou ou seguiu no navio?

Eu voltei para a embaixada, fui eu que conduzi o carro do cais até lá, quase como nos filmes, em que as bombas vão caindo e eu tenho de me ir desviando. A minha mulher também ficou: "Não me vou embora", dizia ela. Foi até muito mais corajosa do que eu, que de vez em quando ficava petrificado, apreensivo quanto à minha situação e à dela. "Mas tu queres ficar aqui?!" "Gosto muito de Pavarotti", dizia ela, e punha o rádio em altos berros, "não oiço bombardeamento nenhum". E era assim [ri].

Essa foi a primeira evacuação, sem proteção militar, mas ouve outras, não ficou tudo resolvido nesse dia.

A seguir houve outras evacuações, sete no total. Chegaram navios franceses, navios portugueses e a Marinha [Portuguesa] enviou duas fragatas, a Corte-Real e a Vasco da Gama. O que acontece, nesta como em todas as guerras, é que há pessoas que não querem sair, mesmo com risco de vida. Têm ali a sua vida, a sua casa, a sua fábrica, o seu escritório, o emprego, a família... "A minha mulher e os meus filhos que vão, eu fico". Mas uma cidade fica reduzida a 100 pessoas.

E também deve haver os que querem ir e não têm como, por diversos motivos. Aconteceu?

Há cenas inacreditáveis. Na primeira evacuação, chega a altura em que tenho de dar a ordem da praxe, como nos filmes: "Mulheres e crianças primeiro, depois idosos e a seguir homens". A dada altura aparece um senhor, diretor do Totta, de lenço na cabeça, uma saia, para entrar como mulher. Tive de lhe dizer: "O senhor vá para o fim da fila, aqui não entra". É assim, há de tudo, tudo o que possamos imaginar.

E os que ficaram, os que estavam em missão diplomática?

Foi muito complicado. Na embaixada ficou um grupo pequeno, até porque tinha muito poucos funcionários. A guerra continua e a casa ao lado da residência oficial, onde vivia o secretário, é atingida. Tinha sido cedida ao adido da Cooperação, que estava lá a tomar o pequeno-almoço e saiu meia hora antes do ataque. Caiu-lhe uma Katyusha em cima, ficou tudo destruído, o sítio onde tinha estado a tomar o pequeno-almoço desapareceu. Depois os rebeldes pediram desculpa, não nos queriam atingir, mas como estávamos na linha de fogo... O Palácio Presidencial estava a 400 metros. Voaram aparelhos de ar condicionado, uma coisa pesada, a 50 metros de distância.

créditos: Rodrigo Mendes | MadreMedia

Imagino que a situação tenha gerado alguma acrimónia. Como ficam as suas relações com o governo?

Isso é verdade. Não mencionei nomes, mas lê-se perfeitamente nas entrelinhas. Há uma altura em que faço uma descrição e digo que aquilo pareciam galinhas decapitadas a passear pelo quintal e a esguichar sangue por todos os lados. Lembro-me de o ministro da Defesa, Veiga Simão - coitado, já morreu - querer à viva força que se fizesse alguma coisa em relação à ajuda humanitária que estava a chegar aos Bijagós, estávamos nós a ser bombardeados. "O que vai fazer?", perguntava ele. Tive de responder: "Desculpe, senhor ministro, estou a apanhar com bombas em cima. O que quer que lhe diga?! Está preocupado com a ajuda humanitária que está a chegar às ilhas? Sei lá da ajuda humanitária..." E nisto dou uma palmada com toda a força no tampo da mesa e ouve-se um estrondo: "Olhe, caiu agora mesmo uma aqui ao meu lado". Tive de fazer aquele golpe de teatro para ele perceber. São cenas que vivi. Depois de tudo, no fundo, pensava que de alguma forma me poderiam compensar. Mas não: "Agora vai para a Costa do Marfim".

Onde as coisas também não estavam pacíficas. Como reagiu?

Houve uma altura em que falei com o ministro. Vim passar o Natal, um navio da Marinha levou-me para Cabo Verde, de Cabo Verde apanhei o avião para Lisboa, e estive a conversar com o ministro e disse-lhe: "Isto é uma situação única, nenhum colega meu foi sujeito a uma situação destas. É insuportável, não posso estar ali todo este tempo nestas condições, de maneira que agradeço que faça alguma coisa". "Ah, mas está lá há pouco tempo". De facto, estava lá há um ano e tal, mas em condições singulares, uma situação muito complicada e completamente desprotegido. Ficou de pensar no assunto, mas acredito que não tenha gostado. Talvez pensassem que estava a fugir, quando aquilo é na verdade esgotante. Para ter uma ideia, devido à falta de vitaminas e de proteínas, o meu cabelo e o da minha mulher caía aos punhados. Não havia em Bissau uma manga, um ananás, uma banana, os rebeldes foram às árvores e apanharam tudo. A cidade estava sitiada, pilharam tudo, tínhamos de comer uns enlatados vagos que para ali estavam e acabou, era isto.

Alguém foi substituí-lo?

Foi, foi. No mês final da guerra foi para lá António Dias, que já faleceu, e que aguentou a parte final. Ao fim de um mês, Nino Vieira acabou por se render, e a partir daí aquilo entrou em normalidade, entre aspas, porque a Guiné-Bissau nunca teve normalidade nenhuma: matam-se uns aos outros, fazem golpes de Estado sucessivos...

Na Guiné é que estava o problema maior. A Guiné possuía armamento já muito sofisticado, além disso, sucede que nos últimos anos Amilcar Cabral consegue alguns trunfos diplomáticos muito importantes

Voltando atrás, à Guerra do Ultramar, alguns ex-combatentes dizem que a guerra em Angola e Moçambique estava ganha e que o grande problema era a Guiné. Concorda?

Angola não tinha praticamente guerra, tinha muito pouca, uma coisa pontual aqui e ali. Moçambique era diferente, porque o território é muito extenso; nas regiões centro e sul não havia praticamente nada, mas a norte existiam alguns problemas e a área era vasta. De qualquer maneira, estava controlado. Na Guiné é que estava o problema maior. A Guiné possuía armamento já muito sofisticado, além disso, sucede que nos últimos anos Amilcar Cabral consegue alguns trunfos diplomáticos muito importantes: é recebido pelo Papa e depois declara a independência da Guiné-Bissau, mesmo sob a ocupação portuguesa, e consegue ser reconhecido pela ONU. Podíamos aumentar a luta no terreno? Podíamos. Quanto mais tempo? Não sei. Seria sempre um grande sacrifício e, por um território tão pequeno, valeria a pena? Hoje sabe-se que Marcello Caetano deu ordem para haver negociações secretas - secretíssimas - com o PAIGC. As primeiras negociações têm lugar em março de 1974, em Londres, com o cônsul-geral em Milão, depois embaixador, Villas Boas, que escreveu isso num livro de memórias. É destacado para essa missão e vai a Londres falar com Victor Saúde Maria, ministro das Relações Exteriores do PAIGC, depois primeiro-ministro da Guiné-Bissau. O segundo encontro estava marcado para maio de 1974, mas já não se realizou porque veio o 25 de Abril. Se as negociações iriam avante é outra história, Villas Boas conta que a dada altura lhe dizem que ele não está credenciado para negociar com eles [Guiné-Bissau].

Aproveitamos ou desaproveitamos a relação de Portugal com África?

Atualmente a relação com África é muito difícil. A presença da China em toda a parte, em Angola, em Moçambique, é uma evidência. No âmbito da CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa] começamos a perder pontos, porque o cimento que nos unia era a língua, mas com a entrada da Guiné Equatorial, que nem português fala, um capricho de Angola (mais ninguém queria), está a diluir-se. Os angolanos são muito susceptíveis ao discurso chinês, de maneira que é complicado. Ainda no que toca à CPLP, o desinteresse do Brasil, neste momento, pesa muito. A política externa brasileira tem muito peso, e quando não estão interessados, não estão interessados mesmo. E eles é que mandam, são mais de 200 milhões. E depois, os anos da crise em Portugal deram muito conta disso, perdemos muita embalagem, foi difícil e humilhante, tornou-se impossível manter estas relações.

Matou alguém na guerra?

Que eu saiba, não. Mas vi morrer, das duas vezes. Vi coisas incríveis.

A diplomacia mudou muito de então para cá?

É uma carreira profissional muito tradicional. Mas os desafios que se colocam hoje são outros. Sucede que no passado os embaixadores tinham plenos poderes - que eu já não tive -, mas hoje são os primeiros-ministros que se encontram em Bruxelas, que vão às conferências da ONU, da NATO, falam uns com os outros por telefone, na Internet... É evidente que o embaixador ou diplomata reporta e informa sobre o que se passa no local, como fiz na Guiné, mas a margem de manobra é dos governantes. É preciso atuar muito no campo económico e, por vezes, não há orientações precisas.

Esse foi um problema que teve na Guiné. Aconteceu em mais alguma missão?

Certa vez, quando estava na Índia, o governador de Goa entregou-me uma lista de onze projetos de investimento. Um era um projeto tripartido Portugal/Goa/Qatar, para o fornecimento de gás natural a toda a costa de Malabar, inclusive a Bombaim. O Qatar fornecia o gás natural, Goa era a base e Portugal dava a expertise, o know-how. Outro projecto era o metro de superfície em Pangim. Outros eram um investimento na indústria hoteleira, investimentos em infra-estruturas e na rede viária, sobretudo no sul de Goa, desenvolver praias e tudo o mais, fazer um call centre gigantesco, para servir também o mundo lusófono... Mandei isso tudo para a entidade responsável, não cito o nome, que se encarregava desse tipo de coisas.

Está a falar do AICEP?

Sim. Recebi uma resposta passado um mês ou dois meses, com um ou dois parágrafos, a dizer: "Sim senhor, os projetos são muito interessantes, mas neste momento não há interesse em pôr nenhum deles em marcha".

Isso foi em que ano?

2002. A partir daí... E expliquei até, no caso concreto do gasoduto, que os italianos e franceses estavam ansiosos por meter as mãos naquilo. Em março vou lançar um livro sobre a Índia, talvez o posto que mais me entusiasmou, o mais desafiante. A Índia é um país a que Portugal devia prestar mais atenção.

Há pouco esteve lá o primeiro-ministro António Costa com uma grande delegação.

Estive com o embaixador da Índia há duas semanas; tudo isto é um bocadinho fogo de vista, não se concretiza.

Não tenho sentimentos particulares em relação a António Guterres. Está bem, está na ONU, as pessoas ficam muito satisfeitas por ser português, mas depende do desempenho dele

Falou da inoperância de António Guterres no governo, quando esteve na Guiné-Bissau. Como o vê agora, enquanto secretário-geral das Nações Unidas?

Não tenho sentimentos particulares em relação a António Guterres. Está bem, está na ONU, as pessoas ficam muito satisfeitas por ser português, mas depende do desempenho dele. E está numa situação muito complicada, porque o secretário-geral não tem poder, quem manda são os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança: Estados Unidos, Rússia, França, Grã-Bretanha e China. O secretário-geral é uma espécie de governanta que está ali a tomar conta da casa, faz umas declarações, mas poder real tem pouco. Além disso, não tem dinheiro.

Onde estava quando Blair, Bush, Aznar e Barroso decidiram invadir o Iraque por causa das armas de destruição maciça que, afinal, não existiam?

Estava em Lisboa, era diretor-geral dos Assuntos Multilaterais. Lembro-me disso. Há aqui uma questão que se levantava - e isso vai constar num livro que vou lançar em 2020. O que se passa é o seguinte: a páginas tantas, o ministro dos Negócios Estrangeiros, [António] Martins da Cruz, de quem eu era amigo pessoal e com quem me dei muito bem, diz-me: "Tens de elaborar um relatório, tão circunstanciado quanto possível, relativamente à questão do Iraque, das armas de destruição maciça", etc. Pus-me à coca e, como vários outros que se puseram à coca também, as informações que tinha eram as informações que me chegavam pelos circuitos das embaixadas: vamos lendo, vamos falando com os colegas estrangeiros, da União Europeia, da NATO e por aí fora. Quando se perguntava se havia armas, a resposta era que sim, que havia. O SIEDM [Serviço de Informações Estratégicas de Defesa e Militares] também confirmava, até ao ponto que queria, depois também não deixavam mais longe. E esta era a ideia básica, que sim, que o Iraque tinha armas de destruição maciça, e foi isso que coloquei no relatório. Os ingleses dizem que sim, que há armas, e os seus serviços secretos, o MI6, confirmam. E em que é que se baseia o MI6? O MI6 baseia-se no que dizem os americanos e a CIA. E em que se baseia a CIA? A CIA baseia-se em informações locais. E eu coloco isto no papel: os ingleses dizem isto, baseiam-se nos americanos, os americanos dizem que se baseiam em fontes locais, e este é o panorama. Aparentemente, deve haver armas de destruição maciça, porque não nos costumam enganar e não vão querer meter-se numa embrulhada destas, não havendo.

Mas meteram-se.

Pois. Mas foi o que coloquei no papel, se quer que garanta a 100% que é assim, não posso. Foi o que escrevi no relatório em três ou quatro páginas. Depois falei com franceses e com espanhóis, a história era sempre a mesma: devem ter. Portanto, foi tudo à base de especulações, de suposições. Mas, no fundo, limpávamos as mãos dizendo "supõem-se que, não há certeza", "eles dizem que, mas não posso garantir".

Como ficou vista esta ação pela diplomacia internacional?

Mal. Mas asneiras destas há por todos os lados, não é caso único.

O que acredita que levou Durão Barroso, no caso, a meter-se nisto?

Penso que Portugal, no fundo, fez isto por causa da relação com os ingleses, e depois com os americanos. Há esta velha questão, são os aliados mais antigos, temos um dever de lealdade com eles. Se eles dizem que sim baseado nos primos do outro lado do Atlântico, nós vamos acompanhar a decisão. Foi mais isto que outra coisa. Aliás, Tony Blair nem sequer é um homem da direita assumida, pelo contrário, é um homem da terceira via, trabalhista de terceira via, que é outra coisa... Mais longe do que isto não sei, porque o assunto a certa altura transita para a relação que existia entre Martins da Cruz e Durão Barroso, então primeiro-ministro. Além da minha informação, que era um papel entre muitos, tinham informações dos serviços secretos e aquilo que os parceiros diziam à porta fechada. 

Os ingleses eram quem assegurava na União Europeia uma estratégia atlântica. O que acontecerá a Portugal com a saída do Reino Unido?

A perder ficamos sempre, pelo menos no curto e no médio prazo, no longo prazo é mais difícil prever. Se tiverem êxito na sua saída, é um problema grave. A grande questão aqui é que na União Europeia as coisas assentam essencialmente no tandem França/Alemanha. E muito bem, França/Alemanha sim senhor, abracinhos, beijos na boca, as coisas funcionam com estes dois motores: um motor mais político, que é a França, e um motor mais económico-financeiro, que é a Alemanha. Tem funcionado. O contrapeso para tudo isso, e que nos interessava, é a Grã-Bretanha, que enquanto lá estava era quem ia discordando e obrigava os outros a recuar em algumas matérias. Como estive na Comissão, posso dizer-lhe isto: há três caminhos para o futuro da União Europeia: um é o federalismo, os países vão uns atrás dos outros, alguns a queimar etapas, o que, quanto a mim, é perigoso, na medida em que a história das nações existe, tem expressão e é forte. Podem dizer que Viktor Orbán, Kaczynski ou Marine Le Pen são para afastar, mas não são. Eles estão lá. Vivi em países de Leste e sei que o sentimento nacionalista é muito mais forte lá do que aqui. República Checa, Eslováquia, por aí fora, estive nestes países, que começaram a ter taxas de crescimento muito mais elevadas que as nossas, são industrializados, têm fábricas de automóveis, de tratores, que estavam obsoletas, mas já não estão, e hoje estão a par da Alemanha.

Há o risco de repetir a asneira brutal, que foi admitir a Ucrânia - no tempo de Durão Barroso na Comissão - passá-la para o lado de cá, quando se sabe perfeitamente que o é uma quinta da Rússia

O que falta a Portugal para não conseguir nunca, o que fazemos de errado?

Essa é a pergunta de um milhão de dólares, não sei responder. Mas penso que fazemos muita coisa; muita burocracia, tínhamos de reformar o sistema fiscal, tínhamos de reformar os tribunais, que precisam de funcionar de outra maneira... A segurança jurídica é fundamental, nenhuma empresa vai investir aqui a sério sem isso. No fundo, tinha de haver um pacto entre os dois principais partidos - na Alemanha até fazem parte da mesma coligação - para evitar governos muito à esquerda ou muito à direita, os partidos teriam de se entender sobre as linhas básicas. Assim, não vamos lá. Mas em relação à Europa há outro ponto, o alargamento. Ou vamos aprofundar, ou vamos alargar. Ao mesmo tempo que alguns querem aprofundar pela via federal, querem alargar, o que torna ainda mais difícil o controlo. Há o risco de repetir a asneira brutal, que foi admitir a Ucrânia - no tempo de Durão Barroso na Comissão - passá-la para o lado de cá, quando se sabe perfeitamente que é uma quinta da Rússia. Neste ponto, vão ter de pensar muito bem. E este é o problema do federalismo, quando se vai depressa de mais, as reações não se fazem esperar. Agora, a Inglaterra mostrou claramente o que não quer.

E quais são as outras duas vias de que falava?

A segunda via, defendida por uma maioria, é a da uma Europa intergovernamental, ou seja, entendemo-nos em determinadas matérias, mas não há cedências de soberania, é uma espécie de confederação. Quanto a mim, o terceiro modelo, uma confederação pura e simples, como existe na Suíça ou como existiu nos Estados Unidos da guerra civil, seria a solução: apenas um conjunto restrito de temas vão para a confederação, tudo o mais são os Estados que decidem autonomamente. Temos de pensar que isto dos nacionalismos interessa. Vejo com alguma apreensão o rumo que as coisas estão a levar.

A Inglaterra, como disse, mostrou o que não quer, mas ainda não se sabe o que quer...

Vamos ver como as coisas se passam daqui para a frente no Reino Unido. Boris Johnson vai, naturalmente... Há uma asneira brutal da parte dele, está a pensar que consegue fazer acordos com toda a gente. Não consegue. O Reino Unido vive com o problema do Império, nunca assimilou a história de o ter perdido. Em 1945 ganharam a Segunda Guerra Mundial, mas, na verdade, não ganharam guerra nenhuma, quem ganhou foram os americanos, todos os outros perderam; os russos perderam, os franceses perderam, e de que maneira. A Holanda perde a Indonésia, a França vai perdendo o que tinha e, os ingleses perdem a Índia, em 1947, até desaparecer tudo. Como se diz em português, já não podem com uma gata pelo rabo. Agora os ingleses estão a sofrer da nostalgia do Império. Que vai voltar, isso é uma ilusão. E existe um problema grave, é que quem ganhou estas eleições foi a chamada classe trabalhadora, os blue colar, os colarinhos azuis do norte da Inglaterra, das docas, das fábricas de carvão... Esses é que votaram Boris Johnson. Isto é gente que votava no partido trabalhista, votou sempre, mas desta vez votou Boris Johnson. Isto é um sinal. Estou convencido de que eles vão evoluir para uma espécie de populismo à inglesa, porque ele agora vai ter de conciliar políticas mais à direita com políticas à esquerda, dessas classes de trabalhadores que não têm solução, porque em Inglaterra quem manda é a City de Londres. Os empregos não estão em Liverpool ou em Manchester, estão em Londres, na Bolsa, nas finanças... E ainda há o risco forte de a Escócia poder sair e a Irlanda do Norte também. São riscos muito grandes.

Portugal também tem o trauma do Império?

Sim. No fundo, no fundo, ao longo da nossa história tudo teve a ver com o Império. Os grandes momentos críticos da história de Portugal, a crise de 1383 a 1385, a tomada de Ceuta, os Descobrimentos, a crise dinástica de Filipe II de Espanha, Alcácer-Quibir, a perda do Norte de África, a perda do Brasil, a República em 1915, a estupidez da Primeira Guerra... O Império que acabou em 1974.

É preciso esquecer para avançar?

Imagine um camponês vindo de Trás-os-Montes, que a única vez que foi a Vila Real foi no dia em que foi às sortes para a tropa, nunca tinha ido ao Porto ou a Lisboa. De repente, metem-no num regimento, dão-lhe uma espingarda para dar uns tiros, metem-no num barco e enviam-no para África, que ele não fazia ideia do que era. O choque traumático, do ponto de vista psicológico, é brutal. É por isso que estas pessoas falam umas com as outras, reunem-se em grupos, há tertúlias, almoços. Eu faço parte de três. Por isto. Passaram por uma experiência altamente traumática. No último livro que publiquei, "Guerra na Bolanha", descrevo essas situações todas, coisas que marcaram a pessoa profundamente. E quando chegaram vindos de África, os que cá ficaram ouviam uma ou duas conversas, mas depois não os percebiam, eles ficavam a falar para o boneco. Então, é preferível falar com os antigos companheiros de armas, falamos a mesma linguagem. Há um pormenor curioso: quando vêm de África, fala-se na reintegração na sociedade, mas a integração nunca é completa. Não é. Descrevo o caso de um rapaz que conheci, vivia em Bragança, e o sonho dele era ficar em Lisboa, no Porto ou em Coimbra, não queria voltar para a "parvalheira". Quis ser empregado bancário, mas não se adaptou. Os problemas que vivemos aqui, viveram os americanos no Vietname, é muito parecido. Não sei como se resolve, mas os ex-combatentes queixam-se muito de que o Estado não os protegeu, não tomou em atenção aquilo por que estavam e que se estava a passar. E isso é verdade.

Sobre o que é o seu próximo livro?

Já está escrito e deve sair na primeira semana de fevereiro. Chama-se "Memórias Diplomaticamente Incorrectas" e descreve uns 15 anos de vida, não tudo, e é feito à base de episódios, muitas anedotas pelo meio.

Pode contar um desses episódios?

A certa altura, quando Portugal tinha a presidência da Comissão Europeia, surgiu a necessidade de fazermos um périplo pelo Médio Oriente. A ideia era irmos ao Egipto, daí para os territórios ocupados, Palestina, depois Israel, Jordânia, Síria e Líbano, onde terminávamos a volta de 15 dias. Íamos três pessoas de Portugal, mais uns holandeses, uns ingleses e pessoal da Comissão Europeia. Chegámos à fronteira de Rafa, no Egipto, estava fechada. "Somos uma delegação oficial, não podemos entrar porquê?" "O chefe está a rezar a oração do meio-dia". "E quando é que podemos passar?" "Quando o chefe acabar de rezar". Era óbvio. Depois, foi preciso mudar de um autocarro egípcio para um autocarro palestiniano, uma chocolateira grande, os bancos cheios de pó, uma gente com um ar coitadinho, alguns a cheirar a coisas indefiníveis, todos sentados do meio para trás. Vimos os bancos da frente sem ninguém e foi lá que nos sentámos. O motorista olhou, disse qualquer coisa em árabe, e continuou. De repente, quando chegamos àquilo que seria a linha de fronteira, salta um israelita para dentro do autocarro, aponta uma arma à cabeça do motorista e depois aos passageiros, e começa a berrar em árabe para as pessoas mostrarem os papéis. Mostramos os papelinhos verdes, o laissez-passer, mas o inglês que estava ao meu lado tinha estudado em Beirute e sabia falar árabe perfeitamente, percebeu a conversa toda. Quando o árabe pergunta quem é que nos tinha autorizado à frente, o inglês diz-lhe que ele não pode ameaçar as pessoas com uma arma na mão, que não sabíamos que não nos podíamos sentar e que, além do mais, o árabe dele era péssimo. Foi o acolhimento. Quando vamos para o controlo de passaportes, eu era o último: "Não pode entrar". "Porquê?" "O nome não coincide". Teve de vir o secretário da nossa embaixada explicar que, de facto, o nome era aquele e ele responsabilizava-se, caso contrário teria ficado ali.

O resto da viagem correu normalmente?

Em Jerusalém houve um dia que fomos fazer uma volta turística, ver as mesquitas, o Muro das Lamentações, a Cidade Antiga, a Basílica do Santo Sepulcro, o habitual. A determinada altura, no Muro das Lamentações, sempre cheio de guardas armados, polícias e militares, um guarda vira-se para outro e diz em inglês: "Como é que vocês permitem que estes gentios entrem nos nossos lugares sagrados?" Assim mesmo, para provocar. Numa recepção oficial no Hotel Rei David, aquele que foi pelos ares, um diretor para a Europa perguntou: "O que é que vocês portugueses têm a ver com isto? Porque é que se estão a meter onde não são chamados?" No dia seguinte, numa reunião no Ministério da Defesa, gerou-se uma situação muito delicada: sentados à mesa, a delegação israelita de um lado, nós do outro, a conversa começou a azedar. O chefe da delegação deles, creio que chefe do Estado-Maior do Exército, diz a certa altura: "Vocês europeus estão feitos com os árabes, querem acabar com o Estado de Israel. O meu filho morreu na Guerra do Yom Kippur, era piloto. Sofremos muito nestas guerras para agora vocês estarem a ajudar os árabes e os palestinianos...". Irritado, o chefa da nossa delegação sai-se com esta: "Nos tempos da Guerra de África, vocês também andaram a vender armas aos grupos de guerrilheiros, e alguns portugueses foram mortos com armas ou balas israelitas". O homem ficou furioso, levantou-se, e fomos mandados para um canto, onde havia uns painéis. Começamos a falar entre nós, dissemos ao homem que ele se tinha excedido e, de repente, alguém dá um toque num dos painéis atrás de nós. Por trás, estava cheio de microfones, eles estavam a ouvir tudo.

Recorda-se onde estava no 11 de Setembro?

No 11 de Setembro estava em Nova Iorque. O meu filho vive lá e eu estava em casa dele. E dá-se uma coisa extraordinária: levantei-me cedo por causa da diferença horária, vou ao computador do meu filho ver se há alguma mensagem, e aparece na Internet: "Flash Information: o atentado contra as torres é de presumível autoria terrorista". Pensei: que parvoíce é esta? Isto foi uma coisa que aconteceu há quatro anos - porque tinha havido um atentado numa cave, num parque de estacionamento. Desliguei. Já deviam ser umas oito da manhã quando toca o telefone, era uma sobrinha de Lisboa: "Vocês estão bem?" "Sim, por que motivo não haveríamos de estar?" "Então não sabem o que se está a passar? Vai à janela". O meu filho vive na parte alta de Manhattan, na ponta norte. Foi à janela, que tem vista para lá do Central Parque, e vê umas colunas de fumo... "Ah, um incêndio..." "Não é um incêndio, foi um avião que se estatelou contra o Word Trade Center". Ou seja, o extraordinário é que uma sobrinha de Lisboa me comunica aquilo que estou a viver no local e não sei.