Foi diretor de campanha do candidato à presidência do Benfica João Noronha Lopes, mas no passado esteve envolvido nas campanhas de Barack Obama, primeiro, e de Hillary Clinton, depois.
Desta vez, Gonçalo Castel-Branco não faz parte da máquina de cerca de 20 mil pessoas, entre voluntários e profissionais, de nenhum dos candidatos à Casa Branca, mas mantém-se um observador atento.
Acredita na vitória de Joe Biden, mas admite que tudo pode acontecer. Afinal, é difícil esquecer o volte-face de 2016, quando contra todas as expectativas Donald J. Trump derrotou Hillary Clinton e se tornou no 45.º presidente dos Estados Unidos da América - e um dos mais polémicos de sempre.
Trump e Biden são os candidatos mais velhos de sempre designados pelos dois maiores partidos dos EUA e, a ser eleito, o candidato democrata tornar-se-á no presidente mais velho a ocupar o cargo. A tomada de posse está marcada para 20 de janeiro mas, até lá, muito pode acontecer.
A uma semana da eleição, votaram mais de 70 milhões de eleitores, o equivalente a mais de 50% do total de votos nas eleições de 2016. Alguns especialistas prevêem um número recorde de 150 milhões de votos, a taxa de participação mais alta desde 1908 [William Howard Taft, republicano, contra William Jennings Bryan, democrata].
Para quem acha que o resultado de dia 3 de novembro são favas contadas, eis o que pode ainda acontecer.
Pensei: "Bato à porta, digo que quero servir cafés e hão de deixar-me servir cafés". E fiz exactamente isso
Como é que um português acaba a fazer campanha para as presidenciais nos Estados Unidos?
Comecei desde muito cedo a acompanhar política americana e sempre quis participar numa campanha eleitoral. Em 2008, porque tinha uma filha muito pequena, não podia ir para os Estados Unidos, mas comecei a trabalhar na campanha de Barack Obama a partir de Portugal, através de uma ferramenta que disponibilizam e que nos dá automaticamente o nome e número do eleitor para quem se está a ligar e que define o argumentário tem de se utilizar com essa pessoa. Quando, em 2012, chegou de novo a altura das eleições, decidi que queria ir para os Estados Unidos em vez de ficar a trabalhar remotamente na campanha e falei com um amigo que conhecia alguém que conhecia alguém. Mas as portas não se abriram. Fartei-me de esperar e, quando estávamos a três dias da convenção partidária, decidi comprar um bilhete de avião, aparecer na convenção, onde sempre quis ir, e a seguir ir para Chicago. Pensei: "Bato à porta, digo que quero servir cafés e hão de deixar-me servir cafés". E fiz exactamente isso.
Resultou. Foi fácil?
A verdade é que aconteceu um conjunto de coisas daquelas que só são possíveis nos Estados Unidos, e em 48 horas passei de alguém que não conhecia uma única pessoa a alguém que tem uma rede absolutamente absurda de contactos, do género estar a jantar com a mulher do mayor [presidente da câmara] de Washington, ter um lugar na campanha e uma casa de borla na rua da Casa Branca, conhecer senadores, congressistas e fazer lóbi. Como se costuma dizer, metade do sucesso é aparecer. A partir daí as coisas aconteceram e, já com uma rede montada, sempre que quero fazer campanhas lá é outra coisa.
O que é importante numa campanha para as presidenciais nos Estados Unidos, são coisas muito diferentes das de cá?
Na realidade as coisas são e não são diferentes. As mesmas coisas que são importantes lá, são importantes aqui, simplesmente eles são muito mais profissionais do que nós a fazê-lo.
Em Portugal, 99% das campanhas dedicam-se à mensagem e depois logo se vê quem aparece para votar
E o que é importante numa campanha?
Em primeiro lugar, identificar as pessoas que querem votar no meu candidato e as pessoas que querem votar no opositor. Em segundo lugar, identificar aqueles que ainda não decidiram em quem vão votar, os chamados swing voters [eleitores indecisos] e, a partir daí, fazer um trabalho integrado de contar uma história sobre quem é o meu candidato, o que vai fazer pelo eleitor e o que o torna diferente do candidato do lado. Depois, conseguir nesse tempo convencer os eleitores e fazer com que eles apareçam para votar no dia. No fundo, uma campanha eleitoral tem estes dois mundos: o da persuasão e o voter turnout [participação do eleitor], conseguir que o eleitor vá votar, que é aquilo que as campanhas profissionais fazem muito bem. Normalmente, nos Estados Unidos o dinheiro é gasto 50/50 nestas duas coisas - os democratas gastam um pouco mais que os republicanos em turnout. Em Portugal, 99% das campanhas dedicam-se à mensagem e depois logo se vê quem aparece para votar. Ninguém se dedica sequer às técnicas e à ciência específica do get out the vote [esforço para aumentar e garantir a participação do eleitor]. Além disso, cada campanha é uma campanha, ou seja, na realidade não existe uma eleição americana, existe um conjunto de 50 micro-eleições (não são 50, porque há estados e territórios que não votam) geridas localmente - quem gere a eleição no Tennessee é o state attorney general [procurador-geral] do Tennessee, é ele que define as regras. E as regras são diferentes de eleição para eleição e de estado para estado. Cada eleição gera um resultado e esse resultado é acumulado num total nacional.
Em Portugal, um candidato pode fazer uma campanha inteira - e faz - sem nunca endereçar os problemas de um velhote de Alter do Chão. (...) Ao perceber isto, os founding fathers [pais fundadores] dos Estados Unidos decidiram criar um sistema para equilibrar as coisas
Mas não é eleito o candidato que recebe mais votos, tudo depende do Colégio Eleitoral.
O Colégio Eleitoral confunde muito as pessoas em Portugal - e, obviamente, torna as eleições norte-americanas um esquema específico. Pode parecer muito estranho, mas a explicação é fácil: qual foi a última vez que os portugueses ouviram um primeiro-ministro em campanha falar sobre problemas rurais? Em Portugal, um candidato pode fazer uma campanha inteira - e faz - sem nunca endereçar os problemas de um velhote de Alter do Chão. Sabemos que um dos movimentos naturais da civilização é do campo para a cidade, por isso há cada vez mais pessoas a deixar o interior. Ao perceber isto, os founding fathers [pais fundadores] dos Estados Unidos decidiram criar um sistema para equilibrar as coisas, de maneira a tornar impossível um presidente ser eleito a falar só com a malta das cidades. O resultado final é um pouco esquisito, um voto no Montana vale três vezes mais do que um voto na Califórnia, e a Califórnia é a sexta maior economia do mundo. Sim, é estranho, e, quando acontece como no caso de Hillary [Clinton], que teve mais 2,8 milhões de votos e ainda assim perdeu a eleição, pode causar um amargo de boca, mas as razões pelas quais é assim fazem algum sentido.
Em Portugal queixamo-nos da falta de representatividade de alguns círculos eleitorais...
Exactamente. O que faz com que o processo de desertificação do interior nunca seja revertido, porque se o meu governo não precisa de se preocupar com isso, então não se vai preocupar com isso, vai preocupar-se com a bolha, com Lisboa, com o Bairro Alto.
Nesse sentido, quais deviam ser as preocupações de Trump?
Digamos que, tradicionalmente, Trump não se preocupa com o que tem de fazer, preocupa-se com o que quer fazer. Não tem sequer disciplina para ter um pensamento maior que este - e isto é uma avaliação técnica, não é uma avaliação de gosto. Trump não é disciplinado, tanto está a enviar tweets de manhã e a comportar-se como um tonto, como está a ler impecavelmente um teleponto à hora de almoço e à noite está a virar costas a um entrevistador. Não tem disciplina possível.
Neste momento, para ter qualquer hipótese de ganhar, Trump tem de segurar o voto hispânico em alguns estados chave, nomeadamente na Flórida
Ainda há alguma maneira de Trump ganhar as eleições?
Neste momento, para ter qualquer hipótese de ganhar, Trump tem de segurar o voto hispânico em alguns estados chave, nomeadamente na Flórida - onde este voto se comporta de forma um pouco diferente do resto do país, é mais cubano, de segunda geração, quase todo definido pela relação com Cuba - e no Texas. Isto não quer dizer que Flórida e Texas definam a eleição, mas se ele perder nestes estados não tem como ganhar. Além disso, tem de conseguir um turnout afro-americano do mesmo nível que teve a Hillary, ou seja, baixo (se os níveis forem acima de Hillary ou entre Hillary e Obama, não tem hipótese). Depois, tem um problema com as mulheres, que não me parece que vá conseguir resolver. O grande preditor do voto Trump é a educação: pessoas com curso superior ou equivalente votam Partido Democrata, pessoas sem curso superior votam mais Partido Republicano. Dois terços dos homens brancos sem curso superior votam Trump, enquanto 90% das minorias com curso superior votam Biden, assim como mulheres sem curso superior votam mais Trump, com curso superior votam mais Biden.
Nesta altura é possível afirmar com segurança que Trump já perdeu?
Se as eleições de 2016 provaram alguma coisa, foi que não há maneira de saber. Uma eleição nos Estados Unidos é complexa: estamos a falar de 320 milhões de habitantes, dos quais 200 milhões têm idade para votar e 120 milhões votam realmente. Desses, 40 milhões votam regularmente Democrata, 40 milhões votam regularmente Republicano. O que significa que há uma janela de 30 milhões a 40 milhões de eleitores que definem uma eleição de 320 milhões. Normalmente, por causa do tal equilíbrio do Colégio Eleitoral, as eleições modernas são muito renhidas, o que quer dizer que numa eleição como a de 2020 é muito mais provável ganhar com uma margem apertada do que com uma margem de dez pontos, que é invulgar. Neste momento, matematicamente, é mais provável ser Joe Biden a esmagar a margem e ganhar o Senado, a Câmara dos Representantes e a Casa Branca, mas já aconteceu no passado os números estarem errados.
Quando está a dez, onze pontos já começa a ser difícil uma supresa, teria de haver muita coisa a correr mal
Qual é a margem considerada segura, aquela em que olhamos para as sondagens e é possível dizer que a vitória está garantida?
Um democrata que esteja com cinco pontos de avanço nas sondagens está empatado tecnicamente. Ou seja, os primeiros cinco pontos do Partido Democrata são o tal reequilíbrio do Colégio Eleitoral. Ou seja, quando as sondagens dão a Biden seis pontos de avanço no total aglomerado, não vale a pena ver individualmente, isso quer dizer que os primeiros cinco são para reequilibrar e sobra ali um ponto. Como a margem de erro é geralmente de um ponto ou um ponto e meio, isso significa um empate técnico, em que tudo pode acontecer. Quando a diferença está nos dez ou onze pontos, então aí já teria de acontecer uma tempestade perfeita para Joe Biden perder. Ou os números teriam de estar errados em estados muito específicos, como Michigan e, provavelmente, Flórida e Texas, Nevada e Geórgia - sendo que o sun belt [região sul e sudoeste] vai ser mais importante para definir o senado (se os democratas ganharem Geórgia e Flórida, à partida ganham o senado), enquanto o rust belt [noroeste], a zona industrial, vota mais Trump. Ou seja, quando a diferença está a cinco, seis, sete pontos, parece que é muito, mas não é. Quando está a dez, onze pontos já começa a ser difícil uma supresa, teria de haver muita coisa a correr mal.
O que pode acontecer é uma diferença entre aqueles que tencionavam votar e os que realmente votaram. Que pode ser grande, nomeadamente num ano de pandemia. Esta é, para mim, a chave desta eleição
O que pode levar as sondagens a estarem erradas?
Existe uma coisa que é a teoria do shy voter, a pessoa que não diz nunca em quem vai votar na realidade. Esta teoria não tem qualquer base científica - e, por exemplo no caso de Trump, se há coisa que os seus eleitores têm demonstrado ao longo do tempo é serem muito vocais e muito pouco tímidos. Se acontecer um revés, vai haver muitos comentadores na divisão portuguesa a dizer: "Pois, eram os shy voters". É mentira. O que pode acontecer é uma diferença entre aqueles que tencionavam votar e os que realmente votaram. Que pode ser grande, nomeadamente num ano de pandemia. Esta é, para mim, a chave desta eleição. Ou seja, num ano típico, as pessoas que costumam ir votar votam, as pessoas que não costumam ir votar podem ou não votar, mas são números mais ou menos previsíveis, num e noutro caso. Um ano de Covid-19 pura e simplesmente não tem precedente, pelo que é impossível prever como é que cada uma destas faixas se vai comportar.
Sabemos que uma larga maioria dos eleitores disse que votaria por correspondência...
Sim, sabemos que mais de 80% dos eleitores americanos dizem que querem votar por correio. Sabemos também, facto, que não existe uma maneira técnica para isto correr bem. Estamos a falar de 100 milhões de votos a chegar por correio, não há estrutura possível para suportar uma coisa destas, este é o ponto número um. Ponto dois: sabemos que as regras para o voto por correio são diferentes de estado para estado - há estados em que os votos têm de chegar até determinada hora de determinado dia para contar, há estados em que qualquer voto, chegue quando chegar, mesmo que duas semanas depois das eleições, conta. Por isso, a equipa de Trump e ele próprio têm estado premeditadamente a lançar suspeitas sobre os votos por correspondência, e acredito que vão tentar tudo para impedir e anular votos, como aconteceu, aliás, em 2000, com a recontagem na Flórida. Isto porque sabemos que há mais democratas do que republicanos a votar por correio - por razões óbvias: os republicanos são mais velhos e têm menos educação superior, preferem o processo clássico de ir à urna, e muitos não acreditam no Covid-19, mais um trabalho que Trump tem estado a fazer. Depois, sabemos que há a chamada the blue wave, a onda democrata, que nos diz que, mesmo num ano sem Covid, a contagem que acaba na noite eleitoral normalmente beneficia os republicanos, porque quanto mais tempo se estiverem a contar votos, mais a vantagem dos democratas cresce.
Foi isso, aliás, que aconteceu em 2016.
A noite de 4 de novembro de 2016 dava 150 mil votos de vantagem a Trump no voto popular. Uma semana depois, a contagem final dá 2,8 milhões de votos de vantagem a Hillary. Por isso Trump vai tentar tudo e mais alguma coisa para impedir que os votos continuem a ser contados ou para pôr em causa a legitimidade dos votos que chegam cada vez mais tarde. Quanto mais eficiente ele for, maior a probabilidade de ganhar.
Não estou a fazer futurologia quando afirmo que o plano é por em causa a legitimidade do voto por correspondência, não dar aos correios meios para agilizar e facilitar o processo
A nova juíza do Supremo Tribunal, Amy Coney Barrett, pode ter uma influência determinante no resultado final?
Pode. Em termos pragmáticos, a eleição de 2000, George W. Bush contra Al Gore, foi decidida pelo Supremo Tribunal, que mandou parar a contagem de votos. Todos os dados apontam para que se a contagem tivesse continuado até ao fim, provavelmente teriam ganho os democratas. Não estou a fazer futurologia quando afirmo que o plano é por em causa a legitimidade do voto por correspondência, não dar aos correios meios para agilizar e facilitar o processo, pelo contrário (Trump retirou investimento para garantir que a coisa atrofiava, uma situação que, entretanto, foi revertida). Quer criar confusão e aproveitar-se dessa confusão para na noite das eleições poder dizer: "Estão a ver o caos em que isto está? Isto vai pôr em causa a legitimidade do processo democrático, temos de ser responsáveis e parar a contagem agora". Foi o que aconteceu há 20 anos. Basta entrar numa série de processo legais, nomeadamente em zonas chave, para que essas contagens parem e vão para tribunal. O caminho natural é o secretário do estado em causa decidir parar ou não a contagem. Depois o processo vai para o supremo tribunal local e daí para o Supremo Tribunal nacional, que toma uma decisão final. Ou seja, se Trump ficar nas mãos do Supremo Tribunal, está convencido de que o Supremo tribunal vai decidir como no processo de Bush, e é provável que tenha razão.
No entanto, o caso de 2000 não fez jurisprudência.
Não. Curiosamente, foi a única vez na história dos Estados Unidos que o Supremo Tribunal tomou uma decisão, mas deixou escrito que essa decisão não gerava precedente, só se aplicando àquele caso concreto.
Trump está há quatro anos na Casa Branca. O que se pode dizer do seu mandato?
Aqui só posso dar a minha opinião política, não técnica. Penso que Trump é a pessoa menos preparada que já se sentou naquela cadeira. Andrew Jackson [1829-1837] também não foi grande flor, mas este é o menos preparado; em temperamento, em qualidades, em valores. Trump causou danos ao cargo que ocupa que demorará anos a recuperar, quer do ponto de vista do internacional, quer do ponto de vista da crença das pessoas nos processos e nas instituições. Há aqui uma narrativa maior, perigosíssima, que ajudou Trump a chegar lá, mas ele acaba por acelerar isso. Para mim, este é o problema número um, seja Trump ou outro qualquer na mesma linha - não seria diferente se André Ventura ganhasse cá (ainda assim penso que Ventura é capaz de ser bem mais inteligente do que Trump). Em segundo lugar, Trump acabou por fazer aquilo que é mais importante na política americana, que é colocar juízes no Supremo Tribunal.
A prestação de contas, os checks and balances, ficam comprometidos?
O sistema está desenhado de forma a que haja um equilíbrio de poderes, esses tais checks and balances. Por exemplo, o senado impediu o presidente Barack Obama de fazer muita coisa. Graças ao sistema, os danos causados por um presidente, seja ele qual for, são mais ou menos contidos. A escolha de um juiz para o Supremo Tribunal, no modelo que existe hoje de lifetime appointment [cargo vitalício] e no actual sistema de pesos - o Supremo Tribunal vive nos últimos cem anos acima da política americana - é o ponto mais importante. Se um presidente coloca lá dois ou três juízes, que é o que está a acontecer, com a pouca idade que têm, está a condicionar a vida americana nos próximos 30, 40 ou 50 anos. Esses danos são irreparáveis. Por último, penso que o cargo de presidente dos Estados Unidos tem um poder simbólico, como acontece no Brasil com Bolsonaro, e que mesmo que estas pessoas não façam nada do ponto de vista legislativo, elas legitimam pensamentos, maneiras de estar a que as novas gerações assistem e que empoderam comportamentos muitas vezes até constitucionalmente ilegais, como o discurso de ódio, o racismo, a homofobia, a banalização da ciência e da inteligência. Não é preciso ir mais longe do que a pandemia para ver como os Estados Unidos estão a sofrer com o seu comportamento e entender o que acontece quando se deslegitima a ciência, o racional e a autoridade. É isto que acontece: quase 9 milhões de infetados e mais de 225 mil mortos.
Para a China seria melhor uma vitória de Trump ou de Biden?
Não sei dizer. A China joga xadrez, não joga damas, move-se mais por interesses económicos. O que sei é que em 2016 a Rússia preferiu que ganhasse Trump, porque sobre isso há dados concretos. E preferiu por uma razão específica: sabia que Trump ia desestabilizar o sistema e fazer tudo aquilo que eu disse antes. E uma América fraca é bom para o inimigo.
Penso que a guerra civil é um cenário realista. É improvável, mas realista
Têm sido apresentados diversos cenários caso Trump saia derrotado destas eleições, nomeadamente o de uma guerra civil. É um cenário realista?
Penso que a guerra civil é um cenário realista. É improvável, mas realista. Se olharmos para guerras passadas, percebemos que não é preciso nada muito grave para fazer espoletar uma guerra. Pelo contrário, a esmagadora maioria das guerras acontece por uma sequência de pequenas coisas. O meu retrato sobre o que pode acontecer é este: Trump perde por uma margem que na recta final pode ser grande, mas que nas primeiras 24 a 48 horas não é assim tanta. Consegue fazer aquilo que já mostrou que é capaz de fazer: causar desestabilização nas urnas e provocar o caos ou fabricar caos e lançar suspeitas ilustradas por casos muito particulares: um vídeo de gente a deitar fora lixo que parece boletins de voto, alimentar a paranóia junto das pessoas que acreditam nele. Vai conseguir envolver os tribunais, param as contagens, recomeçam contagens, até que o Supremo Tribunal diz: é preciso acabar com esta palhaçada, acabou a contagem.
E se Trump diz que está a haver um golpe de Estado e pede aos militares para defenderem a Casa Branca? Os militares não têm escolha e a partir do momento em que há militares divididos há uma guerra civil. É difícil acontecer? Sim. É impossível? Não
Que foi o que aconteceu em 2000.
Até ser declarado um vencedor, há turbulência nas ruas, a malta que sente que está a ser prejudicada e que já está com o pavio muito curto, como se viu nos últimos meses, revolta-se, há violência policial, morre alguém... Isto é alimentar a coisa, atirar gasolina na fogueira, criar uma bola de fogo. Vamos imaginar que no fim ganham os democratas. Chega a altura e Trump diz: "Não saio". Porque não concorda, porque foi roubado, porque é tudo uma vergonha e quem acredita nele que se junte e não deixe a coisa acontecer. Em primeiro lugar, não há um instrumento legal para tirar da presidência uma pessoa que não quer sair. Em segundo lugar, vamos imaginar que se tenta fazer isso à força, nem sei quem seria. O chefe máximo dos militares é o presidente. E eles obedecem-lhe cegamente, sob pena de traição, condenada com a morte. E se Trump diz que está a haver um golpe de Estado e pede aos militares para defenderem a Casa Branca? Os militares não têm escolha e a partir do momento em que há militares divididos há uma guerra civil. É difícil acontecer? Sim. É impossível? Não. Nunca na nossa geração estivemos tão próximos de uma guerra, mas penso que não vai acontecer.
Quanto tempo demorará a ser declarado um vencedor, vamos saber logo no dia 3 de novembro?
Historicamente a contagem de votos é suficiente para declarar um vencedor no dia das eleições, nessas 24 horas. Para chegar a um número definitivo demora normalmente mais quatro ou cinco dias. Só que habitualmente votam por correio 20 milhões e desta vez são esperados 100 milhões. A minha resposta é que esta eleição não estará resolvida durante o mês de novembro. Faço anos no dia 26, e se até lá houver um presidente, ficarei chocado - isso seria uma vitória dos sistemas eleitorais.
Saindo da Casa Branca, Trump vai voltar para um universo que é o dele, o da televisão, claramente
Saído da presidência, quem será Donald Trump passados alguns meses?
Acredito que Trump nunca vai sair a dizer que perdeu bem. Vamos continuar a assistir a um Trump a fazer exactamente o mesmo espectáculo que até aqui, só que fora da Casa Branca. Mas vamos ter um Trump a dizer que foi roubado até ao fim dos tempos. E, se olharmos para a máquina Trump, há duas grandes driving forces [forças motriz]: número um, dinheiro, nomeadamente dinheiro para pagar dívidas, porque ele está afogado em dívidas, sempre esteve, e, número dois, ego. Portanto, isto começou como um reality show e vai acabar com um reality show. Saindo da Casa Branca, Trump vai voltar para um universo que é o dele, o da televisão, claramente.
Então ele [Robert Mueller] fez uma coisa muito importante na audição, disse que não iria julgar o presidente em funções, mas acrescentou, for the record, que o FBI se reservava o direito de, no futuro, depois de Trump deixar o cargo, o acusar a ele e a outras pessoas à sua volta
E nessa altura, a justiça irá atrás dele, Trump será julgado pelas diversas acusações de que tem vindo a ser alvo?
A minha opinião pessoal é que sim, mas ninguém sabe. O que sei é que quando houve a investigação sobre a interferência russa nas eleições, conduzida pelo procurador especial Robert Mueller, ex-director do FBI, foram feitas coisas importantes. Em primeiro lugar, o procurador concluiu que houve interferência russa, em segundo lugar, concluiu que houve pelo menos uma tentativa de coordenação entre pessoas chave da campanha de Trump e os russos. Ficou provado que a interferência teve impacto eleitoral, embora Robert Mueller se tenha recusado a quantificá-lo. Tudo isto são factos. Se pensarmos que a eleição foi definida por 58 mil votos em três estados, a probabilidade de a interferência não ter funcionado é zero. Mas, na altura, havia uma dúvida constitucional sobre se há, sequer, maneira de julgar um presidente. Então ele fez uma coisa muito importante na audição, disse que não iria julgar o presidente em funções, mas acrescentou, for the record, que o FBI se reservava o direito de, no futuro, depois de Trump deixar o cargo, o acusar a ele e a outras pessoas à sua volta. Acredito que vai acontecer, honestamente - neste caso Trump é muito parecido com Luís Felipe Vieira, a probabilidade de ser acusado e julgado no dia em que sair do cargo é enorme. O que também sei - em relação ao presidente dos Estados Unidos ou ao futebol - é que nestes casos há uma impunidade enquanto se está no cargo que me parece muito pouco salutar em democracia. Não sou eu que vou dizer se alguém é ou não culpado, mas que há uma perceção de impunidade para quem está de fora, isso há.
Joe Biden não está exactamente na sua melhor forma física, além de não ser considerado um político brilhante. Os democratas não tinham uma alternativa?
Tivemos muitos candidatos a chegarem-se à frente, mas penso que os democratas ficaram um pouco queimados com a tentativa feita por Hillary Clinton. Perceberam que, para o bem e para o mal, os Estados Unidos ainda são um país muito misógino, nomeadamente quando têm a competir contra um tipo como Trump. Está para provar que uma mulher consegue ser eleita presidente dos Estados Unidos.
Também estava para provar que negro conseguisse ser eleito, até à chegada de Barack Obama.
Na realidade nada dizia o contrário, porque a única vez que isso aconteceu, ele ganhou.
Mas fazia parte do imaginário cinematográfico, como agora faz uma mulher.
Sim, é verdade. A "sabedoria popular" dizia que era muito difícil um negro chamado Hussein ser eleito. Mas, obviamente, a convicção geral não é à prova de tudo, e, goste-se ou não de Obama, ele é um líder único numa geração, excelente orador, com uma narrativa... É um JFK (acho que até melhor que um JFK). Acredito que seremos os dois enterrados antes de voltarmos a ver um Obama na presidência dos Estados Unidos da América, e com muita pena digo isto. Os democratas escolheram ser pragmáticos - lá está, política profissional - olhar para os números e ver onde perderam em 2016. Perceberam que era demasiado arriscado escolher uma mulher e que sem o voto afro-americano e hispânico não ganham eleições.
Penso que Kamala vai ser a primeira presidente mulher dos Estados Unidos
E foram buscar para vice Kamala Harris, uma espécie de dois em um.
Penso que há mais novidade em Kamala Harris, Joe Biden viveu sob o olhar do público durante muitos anos, o desgaste é maior, não há nada que possa dizer ou fazer que surpreenda. E isso existe em Kamala. Tradicionalmente os vice-presidentes não fazem grande coisa por uma eleição além de segurar o estado de onde vêm, neste caso, a Califórnia, que já estava segura. Penso que Kamala vai ser a primeira presidente mulher dos Estados Unidos, não por ser a melhor mulher que já esteve predisposta a concorrer, mas porque neste momento, e se olharmos para a informação que temos, a probabilidade de Biden e Kamala ganharem é enorme. Por outro lado, a probabilidade de Biden voltar a candidatar-se daqui a quatro anos é duvidosa. A menos que faça um mandato fenomenal, o eleitorado dificilmente volta a votar nele. Além disso, há dados sobre este tema que mostram que a presidência é um exercício altamente violento em que as pessoas envelhecem ao dobro ou triplo da velocidade normal. Dito isto, é importante não esquecer que, a ganhar, Biden vai herdar um mundo a meio de uma pandemia, de uma crise económica e de tudo o que já existia.
É possível que Kamala venha a ocupar o lugar de Biden?
Sim. Desejo todo o bem a Biden, mas a probabilidade de ele não chegar ao fim do mandato por questões de saúde existe. Penso que é muito provável que não aguente os quatro anos ou não se recandidate. De uma maneira ou de outra, Kamala Harris ficará tremendamente bem posicionada para ser a primeira mulher presidente americana.
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