"Capital da cortesia
Não se teme de oferecer
Quem for a Grândola um dia
Muita coisa há-de trazer"
José Afonso nasceu em Aveiro, a 2 de agosto de 1929. O pai era magistrado, e por isso a sua infância e juventude foi repartida entre Aveiro, Angola, Moçambique, Belmonte e Coimbra. Como professor do ensino secundário, a partir de 1956, juntam-se outras cidades na sua história: Mangualde, Aljustrel, Lagos, Faro e Alcobaça.
É em Faro que recebe o convite, que lhe é entregue em mãos por um conhecido seu dos tempos de Coimbra, Hélder Costa, para ir a Grândola, onde acaba inspirado pelo espírito e pelos valores da sociedade musical da vila alentejana. O concerto, que enche a sala, acontece a 17 de maio de 1964, por ocasião do 52.º aniversário da fundação da Sociedade Música Fraternidade Operária Grandolense (SMFOG). "Zeca" sente-se honrado, como faz questão de o dizer numa carta com data de 15 de abril (ver imagem), onde sublinha ainda a presença, no mesmo espetáculo, do “grande artista” Carlos Paredes, que não conhece à data.
Porém, em nova carta, dois dias depois (ver imagem), José Afonso diz que “pessoalmente” interessa-lhe “que não seja dado um carácter de exibição no estilo ‘variedades’ à apresentação” das suas canções e deseja “que tudo decorra no clima de solidariedade que a vossa agremiação se propõe incentivar”.
Isto porque no cartaz do evento (ver imagem), era dito que “Dr. José Afonso” revelava-se “um inovador” que, através “das suas belas e estranhas baladas, perpassa todo o sentido poético-trágico da sensibilidade do nosso povo”. “Pela primeira vez, através deste cantor-poeta de temática iminentemente popular, a canção portuguesa encontra um caminho certo”, lê-se no cartaz da ida de “Zeca” à SMFOG.
José Afonso viaja para a vila alentejana na companhia da sua segunda mulher, Zélia, onde é recebido por José da Conceição. O anfitrião mostra-lhe vila, conta-lhe a história da sociedade, apelidada de “Música Velha” — o nome da banda filarmónica —, dos seus estatutos à forma como tira os seus proventos das contribuições vindas da população. Aquele domingo, em que terá reunido cerca de 200 pessoas para assistir ao espetáculo, é contado por “Grândola Vila Morena, a canção da Liberdade”, de Mercedes Guerreiro e Jean Lemaître.
"Todo o seu repertório é cantado, até mesmo o célebre 'Os Vampiros', com cheiro a pólvora. O público está tão compacto que, desta vez, a PIDE não ousa intervir. Mas vingar-se-á dias mais tarde, ao confiscar a gravação do concerto durante uma rusga realizada no domicílio de um militante local."
Também poucos dias depois do concerto, a 21 de maio, José da Conceição recebe uma carta, escrita à mão, com tinta verde conta-se, de José Afonso. Nela, em nota de agradecimento, “Zeca” oferece um poema de três estrofes aos sócios do “Música Velha” — e não à vila, como pontualmente é referido. Esse poema, “Grândola, Vila Morena”, viria a ser lido a 31 de maio aos presentes na associação, e por ocasião da estreia do grupo de teatro da sociedade.
Do poema até à gravação iriam sete anos; até ser a senha da Revolução mais três. Ainda em 1964, "Zeca" parte com Zélia, para Moçambique. Volta a Portugal em 1967, sendo colocado no Liceu Nacional de Setúbal, mas vindo a ser afastado sucessivamente do ensino, por razões políticas, passou a dedicar-se mais à música.
"À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola a tua vontade"
Desde 1968 que "Zeca" tem "a obrigação" de editar um álbum por ano. Influenciado por outras sonoridades e por nomes como Caetano Veloso e Gilberto Gil, que conhecera em Londres, José Afonso "não quer ser um músico pop", mas quer diversificar a sua base instrumental. A escolha de José Mário Branco para a direção artística do seu próximo álbum responde a um certo encantamento de José Afonso pelo seu trabalho — os dois já se haviam conhecido, em 1970, na capital francesa.
Para a gravação de “Cantigas do Maio”, José Mário reservou durante duas semanas (final de outubro e início de novembro de 1971) o Strawberry Studio. Situado num castelo do século XVIII, a trinta quilómetros de Paris, o Chateau d'Hérouville gozava de equipamento e técnicos sem par à data. Arnaldo Trindade, fundador da editora discográfica Orfeu, considera-o “o mais famoso estúdio da Europa à altura”. Por lá iriam passar no ano seguinte Elton John ou os Pink Floyd, entre outros nomes. “Só para uso do estúdio pagámos mil contos”, recorda ao SAPO24 o editor de José Afonso.
José Mário já conhecia os 'cantos da casa'. Em fevereiro desse ano tinha gravado o seu LP "long Playing Record", em português disco de longa duração) "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades", o primeiro álbum da leva de registos em português gravados no estúdio parisiense.
Para além dos dois Josés, outros dois nomes compõem o “bando dos quatro” que se reuniria em Paris: Francisco Fanhais e Carlos Correia. Este último, também conhecido por “Bóris”, virtuoso guitarrista de um grupo de rock, já tinha substituído Rui Pato na gravação de “Traz Outro Amigo Também”, em Londres, um ano antes. Pato, que acompanhou José Afonso boa parte dos anos 60, estava impedido de sair de Portugal.
De Setúbal, onde viva por essa altura, José Afonso parte então para Paris com um conjunto de temas que fariam parte do LP “Cantigas do Maio”. “Grândola, Vila Morena” é uma delas, mas já não como no poema dedicado à sociedade musical da vila alentejana. Isto porque, até ser gravada, a canção teve quatro versões conhecidas, a primeira apenas com três quadras: “Grândola, vila morena / Terra da Fraternidade / O povo é quem mais ordena / Dentro de ti, ó cidade // Em cada esquina um amigo / Em cada rosto igualdade / Grândola, vila morena / Terra da fraternidade // Capital da cortesia / Não se teme de oferecer / Quem for a Grândola um dia / Muita coisa há-de trazer”.
A última quadra desaparece na segunda versão, editada no livro “Cantares de José Afonso”, em 1967. Em sua substituição, numa nova versão desta obra, em 1971, é acrescentada uma terceira quadra: “À sombra de uma azinheira / Que já não sabia a idade / Jurei ter por companheira / Grândola, a tua vontade”.
Hugo Castro e Ricardo Andrade, investigadores do Instituto de Etnomusicologia (INET) da Universidade Nova de Lisboa, e neste momento a redigir um livro sobre a obra a fonográfica José Mário Branco, contam, com base em relatos do cantautor, que o tema quando chegou às suas mãos era uma balada, numa versão cantada à viola.
Uma coisa é certa, afirmam os etnomusicólogos: “a Grândola enquanto canção que apela ao canto coletivo nasce pela mão de José Mário Branco”. Em Hérouville, "Zé" Mário aconselha "Zeca" a repetir cada quadra por ordem inversa dos versos. A segunda repete ao contrário da primeira: “Grândola, Vila Morena / Terra da fraternidade / O povo é quem mais ordena / Dentro de ti, ó cidade // Dentro de ti, ó cidade / O povo é quem mais ordena / Terra da fraternidade / Grândola, Vila Morena”.
José Mário Branco vai buscar inspiração aos grupos corais alentejanos. José Afonso canta sozinho as quadras ímpares, as pares ficam da responsabilidade do coro — ele próprio, José Mário, Fanhais e Bóris.
“Então eu que, embora nascido e crescido no Porto, fora desde muito jovem marcado por várias estadias na aldeia de Peroguarda (Baixo Alentejo), propus ao Zeca que déssemos a essa canção a estrutura tradicional do cante alentejano: a sequência do ponto (solista inicial), do alto (introdutor de uma segunda voz mais aguda) e do coro masculino grave. Além disso convinha alterar a estrutura da letra acrescentando a inversão das quadras tão típica desta forma coral”. O testemunho dado por José Mário Branco é publicado pelo Observatório da Canção de Protesto, em 2019.
Mas dessas férias em adolescente José Mário acrescenta a “Grândola, Vila Morena” outra memória auditiva: o som da exaustão dos camponeses no regresso de mais um dia de trabalho. Em grupo, abraçados, marcando o movimento com os pés e cantando ao ritmo dos passos.
"Influenciado por uma das imagens mais fortes que eu guardo de Peroguarda — a imagem dos homens abraçados, regressando da monda ao fim da tarde, cantando no regresso a casa —, também propus que se ouvissem os passos deles, no macadame da estrada, ao ritmo da canção", acrescenta José Mário Branco nesse testemunho de 2019.
"Colocava-se o problema de como seriam gravados", recorda Francisco Fanhais, 79 anos, ao SAPO24. Impedido de exercer o sacerdócio, Fanhais parte para França em 1971. O seu único álbum em nome próprio, “Canções da Cidade Nova”, é editado um ano antes com selo do Zip-Zip. São também seus os passos que ouvimos em "Grândola, Vila Morena", tema com quem o "padre-cantor" partilha a data de nascimento (17 de maio, ainda que com vinte anos de diferença). "Costumo dizer, por brincadeira, que fazemos anos no mesmo dia", conta em jeito de nota pessoal.
Voltando à gravação, recorda Fanhais, a solução estava no exterior de Hérouville. Só que "junto ao sítio escolhido, fora do estúdio, havia uma estrada onde frequentemente passavam carros. Para não 'sujar' a gravação, a única hipótese era gravar de madrugada. E assim foi".
Pelas "três da manhã", Francisco já não sabe precisar qual o dia, mas seria novembro, saem do castelo em direção à gravilha. Os quatro mais um engenheiro de som, Gilles Sallé, “com um microfone quase colado aos nossos pés". Nesse mesmo dia, “ao final da tarde, voltam ao estúdio. “Ouvimos pela primeira o que gravámos... e sobre esses passos o Zeca começou a cantar 'Grândola, Vila Morena...', reproduz Fanhais, que também tem a sua voz inscrita nos coros do tema. “Mal sabíamos nós que, dois anos e meio depois, essa seria a segunda, e definitiva, senha para desencadear as operações militares que deram origem ao 25 de Abril", lembra.
Talvez pelo simbolismo que o tema ganhou com Abril, ainda hoje há quem associe os icónicos passos que marcam o arranque de “Grândola” ao som das botas doa militares. José Mário Branco chamou-lhe, anos mais tarde, de um “erro tecnológico”.
“O que para nós eram passos lentos e arrastados soou às pessoas com o dobro do andamento, como se o momento de arrastar o pé fosse mais um passo! Ou seja, o som do arrastar do pé não se distingue do som do pousar do pé”, descreveu no depoimento já citado.
"Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena"
É inegável a importância de 1971 para a música popular portuguesa. "Cantigas do Maio" é editado em dezembro, por altura do Natal (a data não é certa), cerca de um mês depois de “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades”, de José Mário Branco. Também em nesse ano saem “Gente de Aqui e de Agora”, de Adriano Correia de Oliveira, “Movimento Perpétuo”, de Carlos Paredes, ou o EP "Romance De Um Dia Na Estrada", de Sérgio Godinho. Três anos depois, alguns destes temas ecoam no Coliseu de Lisboa no I Encontro da Canção Portuguesa, que juntou os seus cantores a outros nomes. Manuel Freire, José Manuel Osório, Ary dos Santos ou José Jorge Letria, por exemplo.
Como é que "Cantigas do Maio" escapou à censura? Além de "Grândola, Vila Morena", onde "o povo é quem mais ordena", o LP conta ainda com temas como "Cantar Alentejano", dedicado a Catarina Eufémia ("quem viu morrer Catarina, não perdoa a quem matou"). “As coisas eram 8 ou 80", recorda o editor Arnaldo Trindade, sem saber explicar o critério. "Interpretado como sendo uma moda alentejana, não despertou tanta atenção nos oficiais da censura como outros temas do Zeca. Ainda que estivesse desde o início patente uma grande carga mobilizadora, como se verificou depois", acredita, cingindo-se à "Grândola", Francisco Fanhais.
O evento de 29 de março de 1974, organizado pela Casa da Imprensa, foi preparado com a devida antecedência para que todas as canções fossem previamente submetidas à censura. Mas nem todas tiveram luz verde, sendo alguns dos cantores autorizados a cantar apenas parte das estrofes. Levando o público, cerca de cinco mil pessoas, a trautear as palavras proibidas, como aconteceu com "Dulcineia", de Manuel Freire.
Parte da noite pode ser recordada numa reportagem da Antena 1, com edição a partir do áudio original de 1974. Nesse registo é possível ouvir o público ruidosamente a gritar "fascistas, fascistas, fascistas" em resposta à intervenção do jornalista Adelino Gomes, afastado à data da rádio. Um "memorável evento recheado de símbolos" e num "espaço de liberdade", como o conta Irene Flusher Pimentel na Fotobiografia de José Afonso.
José Afonso foi proibido de cantar "A morte saiu à rua", "Venham mais cinco", "Menina dos olhos tristes" e "Gastão era perfeito". "Milho verde" e "Grândola, Vila Morena", ambos do "Cantigas do Maio", escaparam novamente ao crivo da PIDE, tendo sido a segunda, rezam as memórias da noite, apoetoticamente cantada em coro. Não só uma, mas duas vezes. Na última, quase a ecoar até às duas da manhã, músicos e audiência, braços dados, baloiçaram os corpos, de um lado para o outro, vagorosamente, ao jeito dos coros alentejanos.
No relatório do concerto, redigido dois dias depois do espetáculo, o censor Filipe Malta Ramires queixa-se de pequenas artimanhas de vários artistas participantes para contornarem as proibições. E sobre "Grândola, Vila Morena" fica registado, no documento de cinco páginas, que o público "berrava, cremos que intencionalmente, a estrofe ‘o povo é quem mais ordena’". Ventos da mudança?
Menos de um mês depois, na madrugada de 25 de Abril de 1974, "Grândola, Vila Morena" voltou a ouvir-se com estrondo. O Movimento das Forças Armadas escolheu-a para segunda senha da Revolução, transmitindo-a a partir do estúdio da Rádio Renascença, por se tratar esta de uma estação de cobertura nacional. O primeiro sinal, "E Depois do Adeus", de Paulo de Carvalho, destinava-se a preparar as tropas para a saída, e o segundo ao início das operações.
Mas "Grândola" não terá sido a primeira escolha dos militares. O MFA tinha dado ordens para que fosse "Venham mais cinco" o tema a ser difundido no programa "Limite", coisa que se veio a perceber ser arriscada, para não dizer impossível, por este estar proibido pela rádio. Pelas 00h20, Leite de Castro entoa, em voz grave, "Grândola, Vila Morena: Terra da fraternidade, o povo é quem mais ordena", e segue-se a canção.
O resto é história. "Grândola Vila Morena", galgou fronteiras, somou versões, de Amália a vozes anónimas (com inventário ainda desconhecido) e reforçou a sua força, das ruas ao Parlamento, nos anos da 'Troika'. O tema que apela "canto coletivo", como sublinha Hugo Castro, tornou-se "símbolo de várias formas de expressão, onde perfilam valores não apenas de resistência, mas também de liberdade e democracia".
Hoje voltar-se-á a ouvir.
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