O retrato é feito, uma década depois da pandemia de gripe A, pelo médico Filipe Froes, que acompanhou o plano de contingência da Direção-Geral da Saúde durante cerca de um ano.
Medicamentos eficazes e, pela primeira vez na história de uma pandemia, a existência de uma vacina elevaram o patamar do combate à doença.
Em Portugal morreram 124 pessoas durante a pandemia em 2009 e 2010, com uma média etária de 47 anos, sendo que um terço delas não tinha qualquer doença associada. Ao todo, cerca de um milhão de pessoas terão sido infetadas, segundo estimativas apresentadas no final da pandemia.
“Eu tive pessoas, doentes, de 18 ou 19 anos que lutaram pela vida. Pessoas perfeitamente saudáveis. Há uma maneira de ver isto, que são os potenciais anos de vida perdidos e nós calculámos que foram três mil. Das 124 pessoas que faleceram, tivemos bebés com cinco meses, sendo que a pessoa mais idosa tinha 85 anos, e tivemos uma grávida”, recorda Filipe Froes em entrevista à agência Lusa.
É provável que durante uma gripe sazonal, das que ocorrem todos os anos, morram mais pessoas do que durante a pandemia de gripe A em Portugal. Mas o pneumologista salienta que no período pandémico houve “um conjunto enorme de recursos” e “uma preparação única”.
“É um drama, porque eram pessoas novas, a maior parte pessoas saudáveis, que nunca na vida lhes passaria [pela cabeça] ter este risco”, entende Filipe Froes.
Também a nível mundial a média etária dos óbitos foi relativamente baixa. Dos 284 mil mortos que se estimam durante a pandemia de gripe A em 2009, cerca de 80% tinham menos de 65 anos.
Comparando com a última pandemia de gripe registada, que em 1968 matou cerca de um milhão de pessoas, na pandemia de H1N1 passou-se para um terço da mortalidade.
“Tivemos preparação, tivemos no combate fármacos eficazes e, pela primeira vez na história de uma pandemia, tivemos vacinas”, salienta o pneumologista e intensivista.
Em termos de mortalidade, a distância é ainda maior para as outras duas pandemias de gripe do século XX: a gripe espanhola que se calcula que matou mais de 50 milhões de pessoas e a gripe asiática de 1958, responsável por 1,1 milhões de óbitos.
Voltando à realidade portuguesa, Filipe Froes indica que cerca de 80 das 124 pessoas que morreram tinham indicação para receber vacina da gripe, sendo que nenhuma se encontrava totalmente vacinada.
“A desvalorização da vacina e da prevenção talvez tenha feito com que muitas pessoas com critério para se vacinar não o tenham feito e algumas dessas pessoas podem ter falecido”, nota.
Para o perito, inicialmente houve “uma pandemia de ignorância e um pandemónio de medos” que depois se transformou em “alguma desinformação e utilização da benignidade da pandemia”, acabando numa “total desvalorização”.
Faltou entender, defende o médico, que a preparação e a capacidade de conter a pandemia “transforma uma doença com potencial de alguma gravidade numa doença mais benigna”, desvalorizando assim o trabalho de preparação e organização que foi feito, nomeadamente pela Direção-Geral da Saúde.
“Das coisas que aprendi nesta pandemia foi que a preparação é fundamental. E nunca estivemos tão bem preparados para uma ameaça à escala global”, argumenta.
O trabalho de preparação e contenção foi feito seguindo um princípio da Organização Mundial da Saúde que dita: “Preparar para o pior e esperar o melhor”.
Se o nível de preparação não era depois tão necessário para o relativo caráter benigno da pandemia, isso são “prognósticos no fim do jogo”, diz Filipe Froes.
O modelo de organização praticado em 2009 e 2010 serviu em Portugal para que o país estivesse até apto noutro tipo de respostas, como no surto de ‘legionella’ em Vila Franca de Xira em 2014.
Não só as estruturas de saúde se prepararam para a pandemia de gripe A, mas também nas empresas e nos restantes serviços públicos se multiplicavam avisos sobre os cuidados a ter, cartazes com indicações dos sintomas, bem como a dispersão de produtos para desinfeção das mãos.
Foi a primeira pandemia da era da informação global, segundo Filipe Froes, assumindo que ninguém tinha experiência de uma ameaça daquele tipo “em tempos de Internet e de redes sociais”.
“Não estávamos provavelmente preparados para a nova dinâmica da transmissão da comunicação perante estas novas vias. Isso fez com que nalgumas alturas a informação mais fidedigna não tenha sido tão célere e tenha permitido histeria numa fase inicial ou desvalorização numa fase mais tardia”, justifica.
Um dos casos que ficou na história da desinformação da pandemia é o de um vídeo transmitido no Youtube por uma suposta monja que vivia num convento na Catalunha, sendo alegadamente licenciada em Medicina, e que veio pôr em causa todas as medidas tomadas e criou a teoria de que tudo era uma fraude e uma montagem da comunicação social e da indústria farmacêutica para vender vacinas e provocar pânico na população.
“Pôs muito em causa a importância de estarmos preparados e de medidas preventivas para evitar a disseminação da doença. Esse vídeo era viral e eu, na altura, nem sabia o que era um vídeo viral. Fomos completamente apanhados de surpresa”, recorda Filipe Froes.
Comentários