Em dezembro, quando foi divulgado o relatório dos primeiros seis meses, o grupo coordenado pela psicóloga Rute Agulhas revelou que tinha já reportado 16 casos de violência sexual à Polícia Judiciária e ao Ministério Público para investigação (ficaram de fora os casos em que o denunciado já tivesse morrido ou existisse um processo judicial), e comunicado 45 casos às estruturas ligadas à Igreja, dos quais 27 para as comissões diocesanas.

Neste segundo relatório, o Grupo VITA indica ter sinalizado às estruturas eclesiásticas um total de 66 situações e 24 à PGR/PJ. Rute Agulhas explicou na conferência de imprensa que surge esta discrepância nos números devido a casos em que o suspeito já faleceu ou porque decorre um processo judicial de natureza criminal. Além disso, há também casos em que a vítima identifica mais do que um suspeito.

Por sua vez, o grupo de trabalho sinalizou às comissões diocesanas 43 situações.

O trabalho dos primeiros seis meses apontava também para a existência de quatro pedidos de indemnização à Igreja por parte de vítimas de abusos sexuais, um número que em maio já atingia os 32 pedidos. Agora, existem 39 pedidos de compensação financeira. Contudo, este número pode oscilar porque há pessoas que iniciam o processo e depois acabam por desistir.

Neste momento, há também 23 vítimas a receber apoio psicológico regular, cinco a beneficiar de apoio psiquiátrico, cinco com apoio social, uma com apoio jurídico e uma com suporte espiritual.

No dia de hoje foi feita a apresentação do Kit VITA - Sensibilização e Capacitação, depois de em dezembro de 2023 o grupo já ter promovido um manual de prevenção da violência sexual no contexto da Igreja Católica, defendendo a existência de canais seguros de denúncia, uma cultura de “tolerância zero” contra abusos sexuais e a adoção de 10 mandamentos de prevenção deste fenómeno.

Assim, este kit "foi desenvolvido com o objetivo de estruturar e uniformizar as ações de capacitação sobre a temática da violência sexual na Igreja". Nesse sentido, "pretende ser um recurso prático que, a par do Manual de Prevenção, facilite a promoção de boas práticas, podendo ser utilizado por agentes formativos na dinamização de ações dirigidas a padres, diáconos, agentes pastorais, elementos de IPSS católicas e demais estruturas eclesiásticas".

O que diz o segundo relatório?

Denúncias e atendimentos

  • O grupo VITA recebeu, durante o primeiro ano de funcionamento, 485 chamadas telefónicas: 278 entre maio e novembro de 2023 e 207 entre dezembro de 2023 e junho de 2024. "Estas chamadas não correspondem exclusivamente a situações de violência sexual no contexto da Igreja, na medida em que o Grupo VITA foi também contactado em relação a outras ocorrências, não relacionadas com a sua missão", é explicado no relatório.
  • Dos contactos recebidos através da linha telefónica, do formulário do site e do e-mail, "foram identificadas 105 vítimas de violência sexual (69 entre maio e novembro de 2023 e 36 entre dezembro de 2023 e junho de 2024) e uma pessoa (leigo) que cometeu crimes sexuais no contexto da Igreja". Destas, nem todas querem passar a uma segunda fase do atendimento.
  • No total, "realizaram-se 64 atendimentos (presenciais ou online) com vítimas de violência sexual". Destas pessoas, "verificou-se que cinco eram pessoas adultas que não preenchiam os critérios de adulto vulnerável, à data da ocorrência. Neste contexto, estas situações foram entendidas como uma violação do 6.º Mandamento do Decálogo [importância em guardar castidade nas palavras e obras] e sinalizadas diretamente aos respetivos Bispos Diocesanos".
  • Nem todos os telefonemas recebidos eram sobre a Igreja Católica: "28 diziam respeito a situações de violência não relacionadas com a missão do Grupo VITA (por ex., abuso sexual intrafamiliar, violência doméstica)", pelo que "foram encaminhadas para outras entidades".

As vítimas

  • O Grupo VITA fez "um atendimento individualizado (presencial ou online), para recolha detalhada de informação, após consentimento informado", com 58 vítimas. Nestes casos, "apenas 27.5% das situações já haviam sido também sinalizadas à Comissão Independente".
  • A maioria das vítimas é do sexo masculino (60.3%) e todas elas possuem nacionalidade portuguesa.
  • Relativamente à idade atual, esta varia entre os 19 e os 75 anos, sendo a média de idades de 53.8 anos.
  • No que diz respeito às habilitações literárias, 39.6% das vítimas têm escolaridade até ao 9.º ano, inclusive; 22.4% têm o ensino secundário concluído; e 38% frequentaram o ensino superior (licenciatura, mestrado ou doutoramento).
  • É também referido que cerca de 50% das vítimas trabalham e em setores profissionais distintos (por ex., especialistas das atividades científicas e intelectuais, como professores, técnicos e profissões de nível intermédio, engenheiros), aproximadamente 21% encontram-se reformadas e três são estudantes. Cerca de 16% encontram-se desempregadas ou sem ocupação.
  • No que à religião diz respeito, mais de metade das vítimas (55.2%) consideram-se católicas. Em termos de frequência, cerca de 21% referem participar frequentemente em atos religiosos (“todos os dias”; “mais do que uma vez por semana” ou “uma vez por semana”) e 19% fazem-no de forma ocasional (por ex., “apenas em dias santos”). Um número de vítimas menos expressivo (10.3%) refere nunca participar em atividades religiosas.
  • Quanto ao estado civil, 37.9% solteiras, 31% encontra-se numa relação (22.4% estão casadas e 8.6% em união de facto) e 27.5% estão separadas ou divorciadas. A maioria (63.7%) refere ter filhos.
  • Quanto à localização, 34.5% das vítimas vivem atualmente na região Norte, seguida de Lisboa e Vale do Tejo (cerca de 29%) e do Centro do país (cerca de 26%).

Os abusos

  • Quanto à idade em que ocorreu a primeira situação de violência sexual, esta varia entre os 5 e os 25 anos, sendo a idade mais prevalente a dos 11 anos, seguida dos 7, dos 12 e dos 14 anos.
  • A maioria das vítimas (67.2%) vivia com a família quando ocorreram os abusos. "Comparando com a amostra do primeiro relatório, onde 18% viviam em instituição, neste segundo relatório cerca de 31% das vítimas (i.e., sensivelmente o dobro do número do primeiro relatório) encontravam-se nesta situação (oito vítimas em seminário, três em casa de acolhimento, uma em colégio de ordem religiosa e uma em casa de saúde)".

Associações de apoio especializado à vítima de violência sexual:

Quebrar o Silêncio (apoio para homens e rapazes vítimas de abusos sexuais)
910 846 589
apoio@quebrarosilencio.pt

Associação de Mulheres Contra a Violência - AMCV
213 802 165
ca@amcv.org.pt

Emancipação, Igualdade e Recuperação - EIR UMAR
914 736 078
eir.centro@gmail.com

  • Os abusos ocorreram entre o ano de 1960 e o de 2024. Contudo, os casos começam a diminuir a partir dos anos 90 até à atualidade.
  • Aproximadamente 40% das vítimas só agora revelou a situação abusiva e 20.7% destas revelaram-na pela primeira vez ao Grupo VITA. Em média, as vítimas demoraram 43 anos a revelar o que aconteceu. Vergonha, culpa e medo são apontadas como justificações para o silêncio.
  • Cerca de 17% das vítimas refere que a situação abusiva terá ocorrido algumas vezes, e cerca de 14% apenas uma vez. Apenas três vítimas mencionam ter ocorrido duas vezes.
  • Quanto às pessoas que cometeram a violência sexual, estas foram sobretudo do sexo masculino (53 em 57 eram sacerdotes). Apenas uma vítima disse ter sido sexualmente abusada por uma pessoa do sexo feminino.
  • Apenas cinco vítimas identificaram uma pessoa leiga, embora no contexto da Igreja (por ex., catequista, seminarista).
  • As vítimas referem maioritariamente que o agressor teria entre os 20 e os 70 anos de idade na altura dos factos e que o conheceram num contexto diretamente ligado à Igreja.
  • A maior parte das situações ocorreu na região Norte, seguida de Lisboa e Vale do Tejo e do Centro do país. Três situações ocorreram na ilha da Madeira, uma no Alentejo e uma nos Açores. Foi ainda registada uma situação de vitimização sexual ocorrida em Moçambique.
  • Os comportamentos mais frequentemente reportados são "toques/carícias em outras zonas erógenas do corpo (53.4%) e a manipulação dos órgãos genitais (34.5%). São também reportados casos de masturbação, sexo oral, anal ou vaginal e de conversas com conteúdo sexualizado.
  • Na quase totalidade das situações (91.4%), a pessoa que cometeu a violência não reconheceu a agressão e não pediu desculpa. Em cinco casos, a pessoa agressora reconheceu o seu comportamento abusivo e pediu desculpa à vítima.
  • 91.4% das vítimas identifica que houve “abuso de autoridade” resultante do estatuto do agressor.

Justificação dos atos

O agressor utilizada diversos argumentos para justificar os abusos e as vítimas também acabavam por tentar encontrar justificações, entre elas:

  • O agressor utilizava a religião como uma ferramenta de controlo e justificação para as suas ações;
  • A intimidação e o medo eram métodos centrais para manter as vítimas submissas e em silêncio;
  • O agressor alternava entre promessas de afeto e pedidos de desculpa para confundir e controlar as vítimas.

Impacto dos abusos nas vítimas

As vítimas de abuso sexual identificam alguns impactos dos episódios nas suas vidas:

  • 33% das vítimas indica alterações nos padrões do sono;
  • 25.9% regista dificuldades/disfunções sexuais;
  • 43.1% das vítimas aponta uma alteração ao nível das crenças religiosas;
  • 29.3% das vítimas disse que surgiram pensamentos ruminantes/intrusivos;
  • 58.6% refere irritabilidade/raiva;
  • 46.6% disse ter vergonha.

Sensibilização e formação sobre situações de abusos na Igreja

O Grupo VITA promoveu, no último ano, 19 ações de sensibilização de curta duração sobre questões de abuso no seio da Igreja Católica, dirigidas, entre outros, a dirigentes dos escuteiros, profissionais de escolas católicas, catequistas e membros do clero.

“Diversas estruturas da sociedade civil também solicitaram ao Grupo VITA ações de sensibilização, para advogados, professores, técnicos de educação social e psiquiatras”, indica o segundo relatório da atividade do Grupo VITA.

Além das ações de sensibilização, foram também desencadeadas ações de formação dirigidas, desde logo, aos elementos das Comissões Diocesanas de Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis e aos membros dos Institutos de Vida Consagrada.

Por outro lado, já este ano, o Grupo VITA iniciou um roteiro pelas dioceses, propondo ministrar formação a padres, diáconos, agentes pastorais e elementos de Instituições Particulares de Solidariedade Social católicas.

A arquidiocese de Évora e a diocese de Vila Real foram as primeiras a receber estas ações de formação, envolvendo cerca de meio milhar de pessoas.

Atualmente, e sob orientação científica de docentes e investigadores do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa e da UTAD - Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, decorrem cinco investigações, que irão resultar em dissertações de mestrado.

Entre os temas das teses estão: “Crenças sobre o abuso sexual infantil e a intenção da prevenção do abuso sexual em professores de educação moral religiosa e católica”, “Vivências do celibato no contexto da Igreja Católica em Portugal: Um estudo quantitativo com seminaristas, diáconos, padres e religiosas”, e “A prevenção do abuso sexual, numa amostra de catequistas: Avaliação de necessidades e crenças sobre a problemática”.

No seu relatório hoje apresentado em Fátima, a equipa liderada pela psicóloga Rute Agulhas assegura que está comprometida no desenvolvimento de ações “que possam gerar mudança ao nível das políticas e das comunidades, promovendo a proteção das crianças e adultos em situação de especial vulnerabilidade, assegurando a concretização dos seus direitos”.

O Grupo VITA sublinha ainda a necessidade de realizar um estudo nacional, transversal a diferentes contextos, para melhor conhecer a prevalência e a natureza das situações de violência sexual, bem como um estudo de avaliação de reincidência junto das pessoas que já cometeram crimes de natureza sexual contra crianças.

Por outro lado, advoga como necessária a criação de uma estrutura nacional de apoio às situações de violência sexual, com intervenções especializadas para vítimas e também para as pessoas que cometem crimes de natureza sexual.

Estas três propostas já haviam sido dadas a conhecer ao presidente da República, em 21 de maio, em audiência na qual o Grupo VITA apresentou a Marcelo Rebelo de Sousa a sua atividade no primeiro ano após a sua criação pela CEP.

O Grupo VITA surgiu na sequência do trabalho da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, que ao longo de quase um ano validou 512 testemunhos de casos ocorridos entre 1950 e 2022, apontando, por extrapolação, para um número mínimo de 4.815 vítimas.