Valete refuta que seja um ‘herdeiro’ da música de José Afonso. “Não faz sentido, primeiro pela grandiosidade do Zeca, pela importância e pelo contexto”, referiu o ‘rapper’ à agência Lusa, sublinhando que José Afonso “era um verdadeiro revolucionário, alguém que praticamente arriscou a sua vida para cantar aquelas canções”.
“Eu diria que aquilo era realmente música de intervenção, porque havia um sistema opressor, opressivo, e era uma música de luta contra isso. O meu rap tenta transformar o que existe. Às vezes existe combate político, mas muitas vezes também não existe, é mais uma questão de consciencialização”, afirmou.
Admitindo que o rap e a música de José Afonso têm a “intervenção social - pôr o dedo na ferida, dizer as coisas como elas são” - como vertente comum, Sam the Kid, “tal como Zeca Afonso”, não quer ver-se “fechado nessa caixinha”.
“Eu não quero ser lembrado assim e acho que ele também não gostaria de ser lembrado assim. Música é arte e dá para expressar vários sentimentos e um deles pode ser essa revolta e insatisfação com o que se passa na sociedade”, afirmou.
Para Sam the Kid, apelidar alguém de músico de intervenção “limita qualquer artista, que obviamente nota-se que não fez apenas isso”.
A opinião de Sam é secundada por Valete, para quem José Afonso é “uma inspiração e uma referência, sem dúvida” e que ao olhar para toda a obra é “injusto muita gente catalogar o Zeca só como músico de intervenção”, já que “era um compositor incrível, polivalente”.
No entanto, foram esses “temas mais combativos” que cativaram o ‘rapper’ no repertório de José Afonso.
“Fascinava-me perceber que alguém que viveu naquele contexto, naquele período, fosse tão corajoso para conseguir fazer e escrever o que ele escreveu. Isso fascinava-me muito, mais às vezes até do que a atração pela música”, afirmou.
A música de José Afonso chegou a Sam the Kid, “como muitas outras”, através da televisão e da rádio: “Faz parte do meu imaginário, da minha infância”.
Na adolescência, um amigo, “que era grande fã”, deu-lhe quatro ou cinco álbuns que deu para “conhecer a música e fazer alguns instrumentais” à sua maneira.
Já Valete tomou contacto com a obra de José Afonso através do pai. “O meu pai ouvia, o meu pai ouvia muito”, recordou.
Fora do rap, Pedro Silva Martins, 40 anos, guitarrista e compositor dos Deolinda, grupo que entrou na discussão da canção de intervenção com a canção “Parva que sou” nos coliseus em 2011, recorda que a mãe o embalava com canções de José Afonso, mas "a parte de ouvir e prestar atenção ao discurso e à arte, ao engenho que ele tem na construção das canções foi uma coisa mais tardia".
"Foi essa primeira experiência que eu, de repente, tive um baque muito grande e que me fez pensar que a música também pode ser isto: Eu posso crescer imenso com a música, como o Zeca fez. De todos as pessoas que admiro talvez o Zeca tenha sido o primeiro a dar-me esse clique", contou.
Da mesma maneira, Valete fez questão de “ouvir a obra toda, toda, toda toda” e considera que “faz todo o sentido” ouvi-la hoje em dia.
“Creio, e até com pena minha, que as novas gerações desconhecem muito o Zeca e a obra. Se calhar há aqui um papel que tem que ser feito, que vocês estão a fazer agora, de ter sempre o Zeca presente. Se calhar até ao nível governamental era importante”, defendeu.
Também para Sam the Kid, o repertório de José Afonso “é bastante atual, devido às letras não serem super-diretas, por causa do tempo em que se vivia, em que tinha que se camuflar o conteúdo”. E isso “faz a coisa ser intemporal”.
“A essência, a sua mensagem é válida, é intemporal. E sinceramente acho que vai ser sempre”, disse.
E é isso que Sam the Kid também quer.
“Não estou no campeonato da música do verão. Se tiver a música do verão tudo bem, mas quero que seja marcante para os anos seguintes. O estilo de músicas que quero fazer é paralelo ao dele nesse aspeto. Fazer músicas que durem, que fiquem”, disse.
Por essa vertente da permanência, Pedro Silva Martins considera que a herança deixada por José Afonso é mais abrangente do que aquilo que se possa pensar: "Acho que, mesmo não fazendo música ou não fazendo aquilo que faço, acho que seria na mesma herdeiro de Zeca Afonso. Depois de conhecer a obra dele, depois de ser embalado pela minha mãe a ouvir músicas de Zeca Afonso, naturalmente seria herdeiro. Acho que culturalmente somos todos herdeiros do Zeca Afonso".
Para Sam the Kid, “o maior elogio” que um músico pode receber é alguém dizer que faz música “intemporal”. “Alguém ouvir um disco meu agora, como novo, e dizer ‘isto é muito bom e não me soa ‘old school’ [antigo], soa intemporal”.
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