Padam, padam... É possível que o leitor tenha escutado esta pequena onomatopeia, duas vezes repetida, por diversas vezes ao longo do verão que findou. Refere-se, como se não fosse óbvio, ao bater de um coração arrebatado por alguém que o seu ou a sua dona vislumbraram numa discoteca, alguém que pretende, entretanto, levar para casa, e dedicar-se durante horas a todo o tipo possível e imaginável de sevícias. Se a linguagem é lasciva é porque o single também o é: 'Padam Padam' é a canção com que Kylie Minogue dominou esta estação, e é uma das canções mais sensuais que a artista australiana já lançou.
Também é possível que o leitor tenha escutado a supracitada onomatopeia pela voz de Édith Piaf. Mas não estamos a falar de Piaf, estamos a falar de Kylie, e quando o assunto é Kylie tudo o resto parece extraordinariamente supérfluo. No campeonato sempre acérrimo das Divas Pop, Kylie é um caso raro: não tem o mesmo impacto cultural que Beyoncé ou Madonna, a mesma legião de fãs e capacidade de transformação social que Taylor Swift, a mesma atitude que Billie Eilish, a mesma voz que Mariah Carey ou, até, o mesmo impacto imediato da Dua Lipa de “Future Nostalgia”. Mas Kylie resiste, como tem resistido sempre, desde que era apenas um ídolo teen mal visto pela crítica.
Em 2020, Nick Levine, escrevendo para a BBC, apelidou-a de “subestimada”. “Minogue possui uma qualidade algo nebulosa, mas apelativa, que não associamos necessariamente a superestrelas pop: a simpatia. De certa forma, isso poderá explicar o porquê de ter sido subestimada”, pode ler-se. Simpática, sorridente, ciente de que o seu propósito é fazer as pessoas felizes e não levar as pessoas a pensar ou a votar ou algo que o valha. Para isso existem outras vozes e, grosso modo, o mundo moderno. A função de Kylie é providenciar um escape desse mesmo mundo, motivo pelo qual 'Padam Padam', lançado após uma pandemia e uma guerra, se tornou num sucesso; é, e não quer ser mais que isso, e ainda bem, pura efeverscência pop.
A efeverscência brota não só de 'Padam Padam', canção que se tornou viral nas redes sociais, e que se tornou na primeira canção da artista a atingir o top 10 das tabelas de vendas norte-americanas relativas à música eletrónica de dança (culpe-se a onomatopeia mas também a linha de baixo elástica, a batida 4/4, e o videoclip repleto de um delicioso vermelho). Brota do álbum que lhe serve de casa, “Tension”, o 16º da carreira da artista e o sucessor de “Disco”, de 2020. À semelhança desse último trabalho, “Tension” navega pela electropop dançável (como diria Nuno Galopim), assinalando um certo regresso de Kylie à boa forma depois de enveredar pela country de “Golden” (2018). A crítica especializada, que tem acesso aos discos antes da plebe, desdobrou-se em elogios: “uma lição em magia pop e alegria escapista”, lê-se no “AllMusic”; “o álbum mais sensual desde 'X' [2007]”, aponta o “NME”; “um compêndio de todas as sonoridades pelas quais Minogue é conhecida”, escreve a “Pitchfork”.
Para além de 'Padam Padam' há 'Tension', que dá o nome ao disco e que celebra o house da velha guarda de uma forma com que Beyoncé só poderia sonhar. Há '10 Out Of 10', com Oliver Heldens, um quase eurodance envolto em auto-estima positiva. E há 'Green Light', um funk branco que poderia fazer parte de um disco dos Saint Etienne, só para dar aquele elã indie/alternativo. Não que Kylie precise disso. 'Padam Padam' foi número um nas tabelas de vendas do Reino Unido destinadas à música independente; Minogue nada tem a provar à intelligentsia alternativa desde que Nick Cave a chamou para colaborar em 'Where The Wild Roses Grow'.
Mas mesmo que “Tension” valesse apenas por 'Padam Padam', só isso serviria para validar Kylie Minogue enquanto artista, dado que a canção conseguiu amarrar não só os fãs mais antigos, como também angariar-lhe devotos entre as novas gerações. Não foi, afinal, quem já a acompanha há décadas que tornou 'Padam Padam' num êxito viral. “Agradar a esta nova geração, que tenha uma mentalidade tão aberta e aceita minha idade, dá-me mais energia”, afirmou a artista à AFP. “É engraçado porque vejo gente que me descobriu através de 'Padam' e nunca tinha ouvido falar de 'The Loco-Motion' ou 'Can't Get You Out of My Head', o que é assustador, mas também emocionante”.
Composta por Gerry Goffin e Carole King, lançada originalmente em 1962, 'The Loco-Motion' foi um sucesso de vendas pela voz de Little Eva, e talvez seja esta a versão na qual muitos melómanos pensam ao lembrar-se do tema (sem desprimor para a tradução francesa de Sylvie Vartan). Mais tarde, engrandeceu-se através das guitarras dos Grand Funk Railroad, que também a levaram ao número. Kylie escolheu-a – ou escolheram por ela – para seu primeiro single, em 1987, quando era já um nome conhecido do público australiano devido à sua participação na telenovela “Neighbors”. Agora com roupagem synthpop, 'The Loco-Motion' (titulada como 'Locomotion', sem hífen) tornou-se no single de maior sucesso da década, na Austrália, levando a artista a ser convidada para viajar até Londres e trabalhar com um dos trios que mais marcou os anos 80 pop: Mike Stock, Matt Aitken e Pete Waterman, três apelidos mundialmente famosos.
A primeira canção composta por estes para Kylie Minogue tinha como título 'I Should Be So Lucky', e foi igualmente um sucesso. Não só na Austrália, mas também na Europa. Um sucesso que a levou a gravar o seu primeiro álbum, apropriada e simplesmente intitulado “Kylie”, nova bomba no panorama comercial: numa década que viu despontar nomes como Kate Bush ou Madonna, “Kylie” foi o álbum de uma artista feminina que mais vendeu no Reino Unido, nesse período. Sem abandonar a sua carreira enquanto atriz (“The Delinquents”, a sua estreia no grande ecrã, estreou em 1989 e, ao longo destes anos, a artista participou em filmes como “Street Fighter” ou séries como “Doctor Who”), Kylie Minogue passou a focar-se na música. Apesar de lhe ter sido colado, pelos seus detratores, um rótulo pouco simpático: “periquito cantante”, diziam, referindo-se à sua voz.
O que os haters não conseguiam perceber é que havia qualquer coisa em Kylie Minogue. Tanto, que “Enjoy Yourself”, o seu segundo álbum de estúdio (1989), também chegou a número um nas tabelas de vendas. Sucedeu-se “Rhythm of Love” (1990), onde abandonou a sua imagem de menina e passou a fazer uso da sua sensualidade (um tropo comum a tantas e tantas estrelas pop), e onde procurou ter um maior controlo sobre a música que produzia. É o disco de 'Better The Devil You Know', que encantou o compatriota Nick Cave de tal forma que este a chamou para cantar 'Where The Wild Roses Grow', ainda hoje uma das suas canções mais aclamadas. Os anos 90 não foram, porém, muito mais triunfantes: “Impossible Princess” (1997), viagem ao lado mais alternativo da época, foi um fracasso em termos de crítica (hoje em dia, e em retrospetiva, é tido como um dos seus melhores discos) e de vendas (a Virgin Radio chegou a iniciar uma campanha, em tons de troça, onde dizia: “tomámos a decisão de melhorar os álbuns de Minogue: proibímo-los”).
Tudo se alterou em 2001, quando uma bomba intitulada 'Can't Get You Out of My Head' foi largada no mundo. Atingiu o primeiro lugar em dezenas de países, incluindo Portugal; vendeu mais de 5 milhões de cópias por todo o mundo; venceu dois prémios ARIA e um da MTV, entre outros galardões; e fez com que muito boa gente, que outrora ligava apenas a homens brancos com guitarras, passasse a apreciar a qualidade artística inerente a uma boa peça pop, tenha ela sido ou não manufacturada em estúdio. O jornalista Everett True, um dos responsáveis pela disseminação do grunge, dez anos antes, disse em 2012 que 'Can't Get You Out of My Head' constituía “um daqueles momentos raros na pop: lustrosa, chic, estilosa, incrivelmente dançável, mas com um elemento mais negro escondido à vista de todos”. Marcou, acrescentou True, “uma mudança clara de atitude em relação à música pop, por parte dos críticos rock 'sérios'”.
Kylie, por seu turno, não precisava da comunidade dos críticos rock 'sérios' para nada. Há muito que ela já tinha o estatuto que merece dentro de uma outra comunidade: a LGBTQ+. Tudo começou no final dos anos 80, quando a artista descobriu que, em Sydney, existia um grupo de drag queens que se dedicavam a interpretar as suas canções. Em 1994, foi cabeça de cartaz do Carnaval LGBTQ+ dessa cidade. “Não sei porque me apoiam incondicionalmente”, afirmou, em 2002. “Adoro que me tenham adotado. Foi uma relação muito natural e, de certa forma, fui a última a saber”. Mais tarde, em 2014, numa entrevista ao “The Advocate”, procurou explicar essa adoração: “Não me tornei num ícone gay por algo em específico; isso aconteceu sendo eu mesma”.
O facto de ser ela mesma, e de ter sido alvo de hostilidade ao longo da sua carreira, sobretudo quando estava a dar os primeiros passos na música, talvez o explique. Isso, e a sua sobrevivência. Não apenas pessoal – foi-lhe diagnosticado um cancro na mama, em 2005, o qual superou –, mas também artística. Kylie Minogue começou a sua carreira musical no final dos anos 80 e, apesar dos baixos, contou sempre com imensos altos. 'Padam Padam' é apenas o último exemplo disso: uma canção de sucesso de uma artista que se julgava esquecida, um êxito na verdadeira aceção da palavra. Algo que nem mesmo Madonna conseguiu: o último single da “Rainha da Pop” a chegar ao top 10 das tabelas de vendas nos Estados Unidos foi 'Give Me All Your Luvin'', em 2012.
Mas voltamos sempre à simpatia. “Ela é muito terra-a-terra”, afirmou Camille Purcell, uma das compositoras creditadas em “Tension”, à “Rolling Stone”. “Não consegues pensar que estás na mesma sala que a Kylie; sentes que estás na sala com uma amiga que conheces há muito”. Guardiã da sua privacidade – pouco deixa passar sobre a sua vida pessoal –, Kylie é, como Adele, uma espécie de anti-Diva: grandiosa porque é uma de nós. E continuará a sê-lo até se cansar. “Há uma canção que ainda não foi escrita”, disse à “Rolling Stone”. “A 'Padam Padam' não existia há um ano. A maior das seduções, ou dos desafios, é criar aqueles três minutos e meio de magia transformadora”. O seu mais recente êxito é tudo isso; o seu próximo álbum (e sim, já se pode pensar nele) também o será, certamente.
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