“Se o João Lourenço morresse hoje e tivéssemos que avaliar só estes cerca de 50 dias que ele está na governação, eu diria que ele já fez uma revolução. O que este senhor está a fazer está a deixar-nos aturdidos e positivamente expectantes”, disse Luaty Beirão, referindo-se à remodelação que o Presidente angolano tem feito em importantes cargos.
Luaty Beirão, ativista e ‘rapper’, falava durante uma tertúlia que contou com a participação do músico Pedro Abrunhosa, na abertura da oitava edição do Festival Sons em Trânsito, que decorre até 25 de novembro, em Aveiro.
Desde que tomou posse, a 26 de setembro, na sequência das eleições gerais angolanas de 23 de agosto, João Lourenço procedeu a exonerações de várias administrações de empresas estatais, dos sectores de diamantes, minerais, petróleos, comunicação social, banca comercial pública e Banco Nacional de Angola, anteriormente nomeadas por José Eduardo dos Santos.
A exoneração de Isabel dos Santos, filha do ex-chefe de Estado, do cargo de presidente do conselho de administração da petrolífera estatal Sonangol, aconteceu na quarta-feira passada e foi a decisão mais mediática.
Perante uma plateia de cerca de uma centena de pessoas, Luaty Beirão disse que ninguém contava que o novo Presidente angolano fosse "tão rapidamente mexer nos interesses instalados da família que durante 38 anos teceu a sua teia de interesses".
"Não conhecemos, nem na oposição, alguém que tenha este ímpeto de em tão pouco tempo pôr as coisas dentro do eixo. Deduzo que se fosse a oposição a ganhar, eles iam ser muito mais cautelosos para não parecer uma caça às bruxas", disse.
O luso-angolano referiu que a cada dia que passa chegam notícias que dão a esperança de um "cenário diferente" em Angola, mas não esquece que é preciso fazer reformas importantes, como rever a Constituição, reintroduzir a eleição direta do chefe de Estado e retirar poderes ao Presidente.
Considerado um dos rostos mais mediáticos da contestação à liderança de José Eduardo dos Santos, Luaty disse sentir-se orgulhoso de ter participado neste processo e deixou um desafio aos angolanos para serem mais interventivos.
"Há expectativa para o que vem a seguir, mas não podemos ficar só a olhar à espera que ele [João Lourenço] faça tudo. Temos que ser também participativos e mostrar para onde queremos que as coisas se conduzam", concluiu.
"Pode uma canção fazer uma revolução?"
Em resposta à pergunta da tertúlia de abertura do Festival Sons em Trânsito, o ativista e 'rapper' disse que nenhuma música pode fazer uma "troca abrupta" de um sistema político por outro, mas pode "inspirar multidões que podem eventualmente provocar transformações sociais".
"A música, sobretudo o 'rap' e o 'hip-hop', conseguiu moldar esta juventude angolana, que hoje se torna adulta, que ocupa lugares na sociedade, e que pode eventualmente vir a transformar esta doença que temos agora, em Angola", disse Luaty.
O luso-angolano contou que quando foi detido, em 2015, a pessoa que o estava a interrogar disse-lhe que era 'rapper' e que também havia um juiz que era 'rapper', considerando "revigorante" perceber como a música conseguiu "inspirar e influenciar pessoas para seguirem um caminho bom".
Também presente na tertúlia, o músico Pedro Abrunhosa comparou a "carga simbólica" da resistência de Luaty, em Angola, e das músicas "E Depois do Adeus" e "Grândola Vila Morena" que "espoletaram" o 25 de Abril, em Portugal.
"Num momento de negritude do país, num momento de grande repressão, de violência, é fascinante que a revolução portuguesa seja simbolizada por duas músicas e que no caso das transformações em Angola ela seja antecipada e representada também por um músico", considerou.
O autor da polémica canção "Talvez F", que foi profusamente utilizada como canção de protesto contra o Governo de Cavaco Silva em 1995, reconheceu que esta é "profundamente política", mas não foi feita com "intuito incendiário".
"A realidade é que a canção tinha, no Portugal de então, todos os ingredientes para ser incendiário. Tinham passado 19 anos da revolução do 25 de Abril, era um Portugal de chinelo, de pobreza profunda, de analfabetismo e sobretudo de uma grande subserviência e de auto-exclusão", disse.
Produzido pela Sons em Trânsito e pelo Teatro Aveirense, o Festival Sons em Trânsito, que este ano cresceu de quatro para cinco dias, apresentou o cartaz "mais cosmopolita do outono português", com sessões de contos e atuações musicais pautadas pela "diversidade, tolerância e abertura à diferença".
A primeira noite de música, no dia 22, traz a Aveiro The Touré-Raichel Collective (Mali/Israel) e o trio Egschiglen (Mongólia).
No dia 23, vão subir ao palco do Sons em Trânsito o pianista cubano Roberto Fonseca e Vinicio Capossela, cantautor e poeta italiano.
O cantor e compositor uruguaio Jorge Drexler e Júlio Resende, um dos mais prestigiados e internacionais pianistas portugueses, fazem parte do alinhamento do terceiro dia do Festival.
No último dia do Festival, sobem ao palco Mulatu Astatke (Etiópia) e Liniker & Os Caramelows (Brasil), embaixadores do funzy - termo criado pela banda para definir a sua música, mistura da R&B e Soul americanas com as raízes da música brasileira e africana.
A tradição dos contadores de histórias volta a marcar presença no Festival com a contribuição de Quico Cadaval no dia 24, imediatamente a seguir aos concertos, e no dia seguinte, durante a tarde. Também no dia 25, mas de manhã, Ivo Prata conduzirá uma sessão de contos infantis para toda a família.
Os bilhetes diários custam 15 euros.
(Notícia atualizada às 07h23)
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