“É altamente improvável que haja reintrodução da malária em Portugal” desde que exista um serviço de saúde público e medidas de vigilância adequadas, afirmou o especialista que lidera uma equipa de investigação e desenvolvimento de uma vacina do Instituto de Medicina Molecular.
Apesar de as alterações climáticas poderem “propiciar um aumento dos mosquitos”, o impacto no que diz respeito à reintrodução da malária é relativo porque o sistema de saúde assegura a “contenção dos reservatórios de parasitas” causadores da doença.
Para Miguel Prudêncio, só numa situação de falência dos sistemas de vigilância e saúde o cenário poderia ser diferente, o que não considera realista.
“Acho que as alterações climáticas têm um potencial devastador e nomeadamente para Portugal, que tem uma larga zona costeira, mas não por via do aumento de transmissão da malária”, sublinhou, em declarações à Lusa.
A malária, uma doença provocada por um parasita transmitido pela picada de um mosquito, implica a existência de três vetores para se transmitir: o parasita, o mosquito e o ser humano.
O mosquito transmissor (Anopheles) existe em Portugal, mas para subsistir o parasita exige condições favoráveis ao seu desenvolvimento, o que não acontece se as pessoas infetadas forem tratadas, interrompendo o seu ciclo reprodutivo.
“Num sistema de saúde a funcionar, uma pessoa que tenha o parasita vai ser detetada, diagnosticada e tratada e a zona onde circula vai ser monitorizada para detetar eventuais casos de malária. Por isso, o reservatório de parasitas é destruído antes de se poder expandir”, explica o cientista.
Para ilustrar a sua posição, Miguel Prudêncio aponta dois episódios que poderiam ter facilitado a reintrodução da malária em Portugal, o que não aconteceu.
Lembrou a entrada, em Portugal, de milhares de pessoas oriundas das ex-colónias entre 1974 e 1976, de regiões onde a malária era endémica e potencialmente infetadas com o parasita.
“Tivemos um influxo muito grande de pessoas potencialmente infetadas com o parasita da malária e, mesmo assim, com um sistema de saúde muito mais débil, não se verificou a reintrodução da malária nessa altura”, notou.
Mais recentemente, Grécia e Itália, sofreram surtos de malária localmente transmitida em regiões onde se verificou grande concentração de migrantes, mas estes foram imediatamente debelados: “teria de haver uma falência absoluta do sistema de saúde para que isto não fosse contido”, diz o investigador.
O último caso de malária contraída em Portugal registou-se em 1959. A doença foi erradicada graças a pulverizações com inseticida, fármacos antimaláricos e ações de sensibilização, mas permanece em vastas regiões de África, Ásia e América Latina.
Estima-se que cerca de 200 milhões de pessoas estejam exposta à doença e anualmente, cerca de 500 mil morrem, sobretudo crianças com menos de cinco anos.
Além do desenvolvimento de uma vacina, parte do investimento na luta contra a doença tem sido direcionado para medidas preventivas, como as redes mosquiteiras, o que ajudou a controlar a malária em alguns países de África, como São Tomé e Príncipe ou Cabo Verde.
No entanto, é difícil fazê-lo em todo o continente.
“Fazer isto em larga escala é muito complicado do ponto de vista económico, logístico” e até “por especificidades culturais” que tornam uma campanha de erradicação com recursos a inseticidas e redes mosquiteiras impraticável, adiantou o especialista.
A distribuição destes equipamentos é dificultada pelas más acessibilidades em muitas regiões e as redes mosquiteiras nem sempre são usadas da melhor forma. Algumas acabam até por servir para pescar.
Além disso, acrescenta, Miguel Prudêncio, é mais fácil ter sucesso em regiões pequenas e delimitadas fisicamente como as ilhas, que acabam também por beneficiar dos estudos e da presença de cientistas, obtendo ganhos na melhoria da saúde das populações.
Malária, um organismo complexo dificulta obtenção de vacina
Após décadas de investigação, está ainda por descobrir uma vacina que combata eficazmente a malária, em parte devido à complexidade do organismo causador desta doença que mata 500 mil pessoas anualmente em todo o mundo, sobretudo crianças.
“Não existe nenhuma vacina para nenhuma doença parasitária humana, todas as vacinas que existem são contra doenças bacterianas ou virais. Um parasita é um organismo muito mais complexo do que um vírus ou uma bactéria” e tem “maior capacidade de se defender”, justifica o investigador Miguel Prudêncio.
Esta complexidade ajuda a perceber porque é que, apesar de terem sido investidos milhões de euros ao longo de décadas, ainda não foi possível criar uma vacina eficaz contra esta doença que se transmite pela picada de mosquitos infetados.
A resposta imunitária proporcionada pela vacina tem também limitações.
Como a “memória imunitária” face a este organismo (o Plasmodium) é de curta duração, a vacina não permite uma proteção prolongada. Mesmo pessoas expostas ao parasita em regiões endémicas, que desenvolvem um determinado grau de imunidade à doença, ficam vulneráveis à malária se abandonarem essas regiões e deixarem de estar em contacto com o parasita.
O desafio “é criar uma vacina que permita espoletar um grau de imunidade suficientemente elevado para conferir proteção, mas também arranjar formas de tornar essa imunidade o mais duradoura possível”, adianta o especialista
A vacina experimental que está mais avançada começou a ser testada em larga escala, em abril, no Malaui. Até 2020, o objetivo é inocular 120 mil crianças neste país, no Quénia e no Gana.
Este “candidato a vacina” tem vindo a ser desenvolvido há 30 anos e já passou por várias fases de testes, mas os resultados mostram que confere um grau de proteção relativamente baixo.
“Confere uma proteção média de 35%, dependendo da idade, e vai diminuindo ao longo do tempo. Ao fim de quatro anos já não confere proteção nenhuma”, descreve Miguel Prudêncio, sublinhando que é preciso avaliar se faz sentido, ou não, licenciar uma vacina com este grau de proteção.
Por isso, o investigador é cauteloso: “é muito importante o que está a acontecer, porque se trata do primeiro ensaio-piloto em grande escala com esta vacina, mas isto não deve ser confundido com o licenciamento. É errado dizer-se que já existe uma vacina contra a malária disponível”
Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), esta campanha vai ajudar a avaliar qual o impacto da vacinação em larga escala na redução de casos de malária severa.
Desta avaliação “poderá resultar ou não um licenciamento por parte da OMS”, afirma o investigador, acrescentando que “o consenso na comunidade científica relativamente a esta vacina é de que fica aquém do objetivo de 100% de grau de proteção e é necessário desenvolver alternativas mais eficazes”.
Existem vários projetos de investigação em curso a nível mundial, entre os quais o trabalho liderado Miguel Prudêncio e financiado, entre outras entidades, pela Fundação Bill and Melinda Gates que já custou entre 2,5 a 3 milhões de dólares.
Os ensaios clínicos em humanos (24 pessoas) decorreram o ano passado, na Holanda, em parceria com Malaria Vaccine Initiative e o Radboud University Medical Center (Radboudumc) e os resultados estão prestes a ser publicados, mas o investigador não quis adiantar detalhes.
“A nossa vacina está a fazer o seu caminho”, resumiu.
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