Nasceu em Lisboa, na Maternidade Magalhães Coutinho, hoje a Estefânia, onde também nasceu a sua neta mais nova. Morou em Lisboa, na Rua da Indústria, e nas Portas de Benfica. E era dali que muitas vezes ia a pé para a Marquesa de Alorna, no Saldanha, para poupar o dinheiro do elétrico.
Foi escuteira, fez catequese até ao Crisma. Católica, teve uma educação "muito rígida". "A minha mãe trabalhou muito, muito para educar os dois filhos - o meu pai tinha problemas, esteve muitas vezes hospitalizado, era praticamente só o salário dela que entrava. Começava às cinco da manhã, vestia-nos e arranjava a cesta que entregava a uma ama para tomar conta de nós enquanto ia trabalhar. Acabava às nove ou dez da noite, para voltar a cuidar dos filhos e recomeçar tudo outra vez", conta Maria das Dores Meira.
Quando acabou a quarta classe, com dez anos, a mãe foi falar com a professora a explicar que os estudos de Maria das Dores ficavam por ali, não tinha dinheiro para mais. E foi a professora primária, depois madrinha de Crisma, que pagou os exames de admissão ao ciclo.
Na Marquesa de Alorna, como em quase todas as escolas, a farda da Mocidade Portuguesa era obrigatória e, uma vez mais, "foram as pessoas para quem a minha mãe trabalhava que me deram a farda, a bata e o equipamento de ginástica".
Os livros eram dados pela Fundação Gulbenkian, onde todos os anos a mãe ia buscar os manuais escolares, como se diz agora. "Como eram em segunda mão e eu tinha vergonha, em vez de comprar uma sandes de fiambre na cantina com os 25 tostões que a minha mãe me dava, comprava uma sandes de manteiga para poupar 15 tostões e com esse dinheiro comprar papel com o Tio Patinhas para forrar os livros e esconder que eram usados", recorda.
Maria das Dores Meira afirma que tem consciência das suas raízes. "Quando sabemos aquilo por que passámos, compreendemos melhor os outros". Gosta de estar próximo das pessoas e de trabalhar em projetos comunitários.
E recorda que se não fosse a sua mãe, "que foi, de facto, mãe do meu filho", não teria podido ser autarca, muito menos presidente de câmara. "Há muitas mulheres que não conseguem estar neste lugar porque têm diversos problemas, até a nível conjugal. Eu tive um divórcio pelo meio, ninguém aguenta que a mulher chegue a casa às tantas todos os dias".
Quer levar para Almada a experiência de 20 anos em Setúbal e promete dar atenção aos problemas da habitação, da mobilidade e da cultura.
"Almada está muito atrasada na resolução do problema da habitação"
Sai de Setúbal por causa da limitação de mandatos. De que se orgulha mais de ter feito em Setúbal ao longo destes doze anos?
Foram tantas coisas que não gostaria de priorizar. Mas, se me é permitido, ponho em primeiro lugar a descentralização de competências que foi feita para as juntas de freguesia. Porque isso, de facto, permitiu uma obra enorme que se propagou pelo nosso território. Permitiu que considerássemos as juntas de freguesia como executivo municipal; nunca sentimos diferença entre os nossos presidentes de junta e o executivo municipal, havia uma interligação muito grande, através do nosso gabinete de apoio às freguesias, que dependia de um vereador e da presidente da câmara. Permitiu fazermos em todos os cantos do município obra e melhorar a qualidade de vida das pessoas. Foi este o chapéu maior no nosso mandato.
Pergunto se é exatamente dessa forma que está a correr a transferência de competências do Estado central para o município?
Pois, ainda bem que faz essa pergunta. Porque nem de longe, nem de perto. Vão saindo decretos-lei, vai havendo avisos: "Para o ano os senhores têm de tomar conta das escolas". E nós, os autarcas portugueses, através da Associação Nacional de Municípios, que tem reuniões com o governo, vamos ficando a par. Não há nunca uma discussão séria com os municípios relativamente a essa descentralização. Por exemplo em relação às escolas, os municípios não são todos iguais; uns têm capacidade financeira, outros têm assim-assim, outros não têm de todo, uns têm muitas escolas, outros têm poucas escolas... Há escolas que podem ser encerradas, mas, se está no interior, mesmo tendo poucos alunos, não deve fechar. Mas não há discussão, não há conversa. O governo admitiu prorrogar por mais um ano, em vez de cair em cima deste ano, que é um ano eleitoral. Mas ainda não estão acertados os envelopes financeiros que correspondem a cada município. Dizem que a pandemia veio ajudar à ausência desse diálogo, mas é conversa, porque já antes da pandemia nos queixávamos de que nas áreas mais complicadas, como a educação e a saúde, não há um diálogo sério e não se fazem contas, apesar de pedirmos sistematicamente ao governo para nos sentarmos individualmente a fazer contas. Mas não há contas, há um valor xis que não chega nem para a cova de um dente, como se costuma dizer. O resto das descentralizações são feitas de forma avulsa, até chegam a vir de forma mais ou menos encapotada.
"Inês de Medeiros, à semelhança de outros candidatos de todos os partidos, deu o corpo às balas pelo PS, e não foi pelo seu conhecimento do território que ganhou o município"
A sua candidatura a Almada, como outras, gerou a discussão sobre se um candidato deve ou não viver no município a que concorre, porque não mora em Almada.
Em Setúbal eu tinha uma casa, uma segunda habitação, e tinha - e ainda tenho - dois escritórios desde há muitos anos, conhecia minimamente o território. E é no sentido de as pessoas saberem que ali pago os meus impostos, que ali criei postos de trabalho, que havia uma relação de conhecimento e de proximidade com as pessoas, que em 2001 a CDU me convida para fazer parte da equipa que veio a ganhar a câmara municipal. Em Almada foi um acaso. Mas Inês de Medeiros, à semelhança de outros candidatos de todos os partidos, deu o corpo às balas pelo PS, e não foi pelo seu conhecimento do território que ganhou o município.
Não há e não havia incompatibilidade entre os escritórios no município de Setúbal e o exercício da função de presidente de câmara?
Não, eu não estou lá a trabalhar. Agora estão fechados, porque quando assumi... A propriedade é minha e não há nada na lei que diga que não posso ter propriedade que legitimamente adquiri.
"O PRR não resolve tudo e, no que diz respeito às câmaras municipais, resolve muito pouco ou quase nada"
Qual a sua visão para Almada?
Gostaria que Almada retomasse a sua identidade, que está pela rua da amargura. Está descaracterizada, sem um certo amor próprio, um certo orgulho que sempre se notou. Eu moro aqui desde os 12 anos, tinha 17 anos quando fiz aqui a primeira comissão de moradores que existiu no país, estou a falar de maio de 1974. Dei muito do meu trabalho a este povo. E nessa altura fiz alfabetização e trabalhei com mais de 100 crianças, aqui, onde hoje é o Parque da Paz, mas na altura eram bosques. Trabalhei muito anos debaixo do grande sobreiro que está no Parque da Paz. Conheço muito bem Almada.
Além de tudo, acho que adquiri muita experiência em Setúbal. Foram 20 anos como autarca, primeiro como vereadora, depois como presidente de câmara. Isso deu-me um conhecimento que é um capital importante que pode ser aplicado em Almada. Almada tem possibilidades enormes.
Quais?
A costa atlântica, a frente ribeirinha, o nosso Tejo. Não queremos ser o espelho de Lisboa, queremos ser a outra margem. Temos a nossa frente atlântica com praias únicas.
Tem um setor específico ao qual considere que vai ter de dar mais atenção?
Temos de ter um cuidado muito especial com a habitação, Almada está muito atrasada na resolução do problema da habitação. E não é só o PRR que vai resolver isto, ao contrário do que diz a candidata do Partido Socialista. O PRR não resolve tudo e no que diz respeito às câmaras municipais resolve muito pouco ou quase nada. O PRR prevê 26 mil habitações para a Área Metropolitana de Lisboa e o conjunto dos municípios que compõem essa área já se candidataram a 40 mil. Aproveito para reafirmar que o IHRU [Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana] não faz renda apoiada. Como autarca em Setúbal lutei muito para que o IHRU fizesse renda apoiada e, ou o IHRU me enganou ou escreve documentos falsos ou faz diferente noutros municípios. O que havia no passado era rendas sociais. Com as novas nomenclaturas - Primeiro Direito, Porta de Entrada, etc. - o IHRU faz renda acessível naquilo que é a sua propriedade. E pode apoiar financeiramente os municípios ou cooperativas. Isto para dizer que Almada não fez nem uma proposta de renda apoiada. Na proposta da Estratégia Local de Habitações entregue pela câmara de Almada ao IHRU, num parágrafo fala na "previsão da construção de 3.500 fogos de habitação de renda acessível". Com grande pompa e circunstância, o governo veio a Almada fazer mais um dos muitos favores que fez à sua camarada. O governo não é de todos os portugueses, faz alguma coisa para os portugueses, mas faz grandes coisas - ou pleno menos com grande folclore - para os seus. E veio com uma grande comitiva dizer que o IHRU vai construir 3.500 habitações, das quais 1.100 estarão prontas até 2023 e, de imediato, iam começar a construir 264 - que estão feitos pelo IHRU, nada pela câmara.
"Gostaria que Almada retomasse a sua identidade, que está pela rua da amargura. Está descaracterizada, sem um certo amor próprio, um certo orgulho que sempre se notou"
Em dez anos Almada ganhou mais de três mil novos residentes. O valor médio do preço de compra e venda de propriedades está a subir, já está acima da média nacional. O município tem aqui um papel?
Temos de ter políticas nacionais nesse sentido, tem de haver um travão, porque estamos aqui a criar bolhas. O crescimento de população também tem a ver com os preços da casas em Lisboa, com a classe média a vir para Almada para tentar respirar um pouco mais. O crescimento [de população] não é por, de repente, Almada se ter tornado uma cidade com qualidade de vida, muito limpa - porque está cada vez mais suja, tem a iluminação pública num desastre, não fez a transformação para LED, paga uma pipa de massa (em Setúbal pagávamos 5 milhões/ano de eletricidade, agora pagamos pouco mais de 1,5 milhões/ano).
Além da habitação, que outros setores elegeu como prioritários em Almada?
A questão da mobilidade. Almada tem graves problemas de mobilidade - rodoviários, ferroviários, de transporte fluvial, tudo tem de ser revisto, repensado, melhorado. Temos de apostar mais nos transportes públicos, mais nos modos suaves, mas também alterar uma série de eixos viários que criam mais entraves do que soluções. Foi apresentado um plano de mobilidade e transportes para fazer parte do plano global dos transportes metropolitanos e, não posso deixar de dizer, mais uma vez um mau programa. Podem dizer: pois, é tudo mau... Pois, se não fosse tudo mau também não estávamos a ter esta conversa.
O que teria feito diferente?
O plano de mobilidade não pode ter tanta frequência, tem muitos sítios congestionados, como o eixo central de Almada, por causa do metro, não há uma grande largura da Avenida D. Afonso Henriques, por exemplo, que só tem uma via em cada sentido, e já é muito congestionada atualmente, imagine como será com autocarros a passar de cinco em cinco minutos. Portanto, teriam de existir interfaces nas pontas do metro, por exemplo, para ali só passar um mínimo de autocarros e para áreas onde não vai o metro. Se vão todos para as mesmas localidades, não se justifica maior frequência. Aumentaram algumas rotas muito precárias, mas em sítios onde não havia transportes continua a não haver transportes (Charneca, Sobreda, Pera, Costas de Cão). Aumentaram os transportes que vão para fora, mas não dentro do município. Depois, o alargamento do metro é essencial, senão pára o desenvolvimento da cidade. É muito problemático que o senhor primeiro-ministro tenha vindo aqui na qualidade de secretário-geral do PS dar apoio à candidatura da sua camarada, a certa altura vista o casaco de primeiro-ministro, prejudicando a equidade e a legitimidade democrática, dizendo: podes prometer isto que eu dou-te. Isto é jogo baixo.
O que prometeu o primeiro-ministro para Almada?
Prometeu que ia ser construído o metro para a Costa [da Caparica] - a propósito do discurso do Innovation District [projeto de “urbanidade” que vai nascer em Almada e que terá como epicentro o campus da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa], que o senhor primeiro-ministro não conhece minimamente, senão, tenho a certeza que nunca apelaria ao Innovation District, que é um Illusion District, porque não existe. Não existem documentos de gestão territorial que sejam base para a concretização daquele projeto. Não existem PDM [Plano Director Municipal], ainda está longe de ser aprovado. Não é pelo facto de o PDM ter ido a sessão de câmara a dizer que vai para a CCDR e restantes comissões que está aprovado. O Innovation District tem um PIP, que é um Plano de Informação Prévia aprovado para uma residência de estudantes. Só. É uma ideia, um sonho com o qual estou de acordo, está longe de se poder realizar. Voltando ao metro: o contrato de concessão do Metro Sul do Tejo devia ter feito a extensão em 2011, passaram dez anos do prazo de o governo fazer a extensão do metro para o Seixal, que é o que está escrito. E o metro para a Costa é uma complementaridade que não está no contrato de concessão. Agora, a propósito da propaganda eleitoral, o senhor primeiro-ministro faz este anúncio. Mas, sabe, isto não tem suporte legal, nem financeiro, por isso o senhor primeiro-ministro devia ter algum cuidado. Porque não pôs isso no PRR, ao contrário do que fez para o metro de Odivelas-Loures, nem no PNI [Plano Nacional de Investimentos].
Que outros projetos teria inscrito no PRR?
A terceira travessia do Tejo, que era fundamental para o desenvolvimento destes concelhos do arco ribeirinho, Almada, Seixal e Barreiro, que está prometida há muitos anos. Não invalidando isso, fizemos um plano de urbanização para Almada nascente, para a tal "Cidade de Água", essa sim, com plano de urbanização, estão nas mãos do Estado os terrenos para lançar internacionalmente os concursos para o projeto se desenvolver. E nesse caso sim, está aprovado pelo governo e publicado em Diário da República a travessia que liga o metro sul do Tejo ao metro de Lisboa.
A questão é que os projetos que forem feitos no âmbito do PRR têm de estar concluídos em 2026. E isto são obras que, pela certa, irão demorar mais, até pelas questões ambientais que levantam. Como se gere este equilíbrio entre ambiente e desenvolvimento económico?
Tem de se gerir com muita seriedade e muita discussão. Ninguém sabe tudo. Para começar, temos de ter base científica. Depois, com esses estudos, temos de ir para a rua e conversar com as pessoas, porque há coisas que podem escapar à academia e à autarquia. Não se gere é com o projeto que foi feito na Fonte da Telha - o projeto não, que não há, mas o que foi decidido fazer. E um dia o ambiente vem dizer estamos em desacordo, passado uns tempo está nim e passado outros tempo vem aceitar - à conta de alguns pareceres de pessoas que inicialmente disseram que não podia ser feito porque violava o cordão dunar e outras coisas e que agora vêm dizer que, afinal, até é permitido. Assim é que não é sério.
"Há quatro anos que estou à espera de uma reunião com Eduardo Cabrita"
Almada, em de agenda cultural ou desportiva, por exemplo, beneficia ou perde com a proximidade de Lisboa?
Almada tinha uma vida muito intensa do ponto de vista cultural, do ponto de vista desportivo. Estava na linha da frente. Foi dos primeiros municípios a ter pista de atletismo, que hoje está retrógrada, parada. Quero que o surf se faça todos os dias, que o basquete se jogue todos os dias, a patinagem, o basebol. Existem oito espaços de hipismo só na Sobreda - é a freguesia da Europa que maior número de espaços hípicos tem. E alguém sabe disto? Ninguém. A piscina municipal da Charneca está fechada há dois anos e entregaram-se à exploração da Federação Portuguesa de Natação as outras piscinas. E eu quero isto a bombar todos os dias. Porque é que se fecham museus? Almada tem museus fechados. Queremos ter aqui um centro de artes, que vai ser construído no edifício que era da EDP e que a câmara comprou. Esse centro vai acontecer, e vai ser um centro de formação e de fruição cultural. Temos aqui um dos maiores teatros, o Teatro Azul, o Teatro Extremo, sete ou oito companhias de teatro. Mas temos de nos tornar mais atrativos, precisamos de novos equipamentos, temos de construir um centro de congressos. Por exemplo, eu remodelei os Paços do Concelho, mas nunca saí, ia para um gabinete em cima, mudava a tralha para um gabinete de baixo, que era o que devia ter sido feito em Almada, não era preciso ir para o Chalet Azul. E era assim que uma pessoa de Estado, com fibra e com estrutura política devia ter agido.
"Temos permanentemente auditorias, especialmente as câmaras que não são da área do governo. Em dez anos tive 12 auditorias"
É difícil gerir um município tendo que lidar com governos que não são da mesma cor política?
Devo dizer que nunca tive problemas, à exceção de um caso, que revela uma falta de respeito e uma falta de consideração muito grande. Mas isso o país já todo sabe que esse ministro é assim e continua lá, que é Eduardo Cabrita. Há quatro anos que estou à espera de uma reunião com Eduardo Cabrita (agora já não vale a pena).
O que pretendia com essa reunião?
Tínhamos de tratar dos bombeiros, da Proteção Civil, das áreas florestais, muita coisa. Mas o senhor ministro nunca esteve disponível. Mas, voltando à relação com os governos, fosse em que governo fosse, fui sempre bem recebida.
Foi recentemente absolvida do crime de peculato. Sentiu-se muito examinada ao longo dos seus mandatos ou, de facto, o poder autárquico é pouco escrutinado?
De facto é um escrutínio quase permanente. E agora temos outro escrutínio, um mau escrutínio, que são as redes sociais. Mas somos escrutinados pela Direção-Geral das Autarquias Locais, pela Direção-Geral de Finanças, temos permanentemente auditorias, especialmente as câmaras que não são da área do governo. Em dez anos tive 12 auditorias, de tal maneira que até criámos um gabinete só para as auditorias, imagine.
Está preparada para ser vereadora num executivo liderado por Inês de Medeiros?
Estou preparada para ser a presidente da câmara de Almada. Mas, se isso tiver de acontecer, não sou pessoa de virar a cara, como alguns que não são eleitos e depois dizem que, afinal, aquilo não faz bem o seu estilo.
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