A culpabilização que o homem sente quando não consegue acomodar no seu tempo a disponibilidade para a família é “tão grave quanto a discriminação face às mulheres no mercado de trabalho”. Joana Gíria foi muito clara quanto a isto, na entrevista ao SAPO24.

A ideia resume bem os temas que a presidente da CITE considera essenciais para combater as desigualdades de género no trabalho (não pago) e no emprego (trabalho pago): a conciliação do tempo trabalho-família e a questão da maternidade e da paternidade.

Se fossem uma árvore, as dinâmicas que geram poder-se-iam descrever assim: na raiz, estão as expectativas e os estereótipos de género da nossa sociedade; daí, surge um tronco que estrutura o quotidiano, difícil de quebrar e um pouco torto, já que existe desequilíbrio na gestão dos usos do tempo e na vivência da parentalidade; é a partir daqui que vão surgindo ramificações e se começam a sentir consequências ao nível do bem-estar, dos resultados, das relações; às vezes, os frutos destas dinâmicas são "podres" - discriminação, relações de assédio. 

Para que o tronco se eleve direito e os frutos sejam saudáveis, é necessário que a rega da raiz seja corrigida. A água natural da chuva (autorregulação) não chega e são necessárias medidas, que se querem transitórias, como a lei da paridade.

A comparação a elementos da natureza serve apenas o propósito de “desenhar” as complexas relações entre conceitos. Qualquer parecença com o tema do ambiente é pura coincidência. Até porque, como notou a dada altura Joana Gíria, a igualdade entre homens e mulheres, "apesar de estar na moda - como o ambiente - não é uma preocupação real”.

A nossa conversa começou com uma frase que aparece no site do iGen, Fórum de Organizações para a Igualdade, coordenado pela CITE. O autor da citação é o sociólogo Boaventura de Sousa Santos: “É importante a igualdade que reconhece as diferenças”.

Se é importante que a igualdade reconheça as diferenças, isto da igualdade é um valor absoluto ou não?

O princípio fundamental da igualdade de oportunidades e entre seres humanos não quer dizer que a desigualdade entre as pessoas não exista. As pessoas não são todas iguais. As mulheres não são iguais a outras mulheres, os homens não são iguais a outros homens. A igualdade é um direito fundamental, apesar das diferenças entre as pessoas.

Que diferenças é importante ter em conta quando procuramos a igualdade?

Entre o sexo feminino e o sexo masculino, desde logo, as características biológicas. Há direitos que se aplicam às mulheres que não se aplicam aos homens, precisamente porque as mulheres têm uma característica biológica, que é o facto de poderem ser mães ou de serem mães. Os homens podem ser pais, mas não passam por uma gravidez, um parto, uma fase de amamentação. Ou seja, as transformações não são as mesmas a nível biológico. É nesta diferença que deve assentar o direito à igualdade: nivelar de forma a não prejudicar quem tem uma característica face a quem não tem.

Que outras diferenças acha importante considerar?

A da maternidade e paternidade, para mim, é fundamental. É aquela onde assenta a maior parte da discriminação. Disso não tenho qualquer dúvida.

A sociedade estereotipada presume que uma mãe está mais tempo afastada do local de trabalho do que um pai.

No contexto de trabalho?

No contexto de trabalho, claro. E não só. Mas no contexto de trabalho, que é aquele de que nos ocupamos aqui. Quer para a sociedade, quer para as entidades empregadoras - não quero falar em nome de todas, a ideia não é generalizar - a maternidade é vista como uma diminuição de disponibilidade de tempo, que aparentemente, só aparentemente, vai colidir com a produtividade.

Porquê só aparentemente?

Porque se os usos do tempo de mulheres e de homens em Portugal fossem os mesmos, quer a nível profissional quer a nível familiar, esse problema não se colocaria. Se tivéssemos idêntico período de licença por paternidade e por maternidade, a expectativa em relação à produtividade do homem e da mulher seria totalmente distinta. A sociedade estereotipada presume que uma mãe está mais tempo afastada do local de trabalho do que um pai, porque tradicionalmente é a mãe que se ocupa das crianças, das tarefas, dos cuidados, de ascendentes, descendentes, etc.

De que forma é que isso contribui depois em concreto para a discriminação?

Temos casos de homens que acompanham sem qualquer problema em variadíssimas empresas e organizações as mães às consultas pré-natal, às consultas das crianças, etc. Mas temos relatos em que ainda há alguma contenção a esse direito, quer entre colegas quer entre chefias. As pessoas de alguma maneira até brincam a dizer: "Não tens uma mulher lá em casa que trate disso?". É hábito ouvir este tipo de queixa.

Tem vindo a subir a percentagem de homens com a licença parental partilhada.

No dia 15 vai estar no encontro "O homem promotor da igualdade", promovido pela Quebrar o Silêncio, precisamente a falar do tema da falta de conciliação trabalho-família. Vai levar propostas de soluções?

Aquilo que importa é que os tempos de trabalho sejam equilibrados, de modo a que os tempos de conciliação com a vida familiar também sejam equilibrados. Isto pode fazer-se de variadíssimas maneiras, nomeadamente através da partilha da licença parental entre pai e mãe. Isso já é uma realidade em Portugal, mas por enquanto se não for gozada pelo pai é gozada pela mãe - tirando a obrigatória. A meu ver, havendo licenças obrigatórias para mãe e pai, com período igual, não transferível, isso obrigaria a uma conciliação que seria evidente, a um equilíbrio de tempos entre trabalho e família igual.

Essa obrigatoriedade pode ser vista como retirando liberdade de escolha?

Não, essa é uma liberdade aparente. Se houver um período obrigatório igual para ambos, e se houver um tempo de partilha que, se o pai não gozar, não é a mãe a gozar, vamos perceber que efetivamente os pais o querem gozar. O que a sociedade eventualmente pensa é que isso não é verdade. Mas é. E a demonstração disso é que tem vindo a subir a percentagem de homens com essa licença parental partilhada.

Que outros aspetos podem ajudar a combater a falta de equilíbrio e de igualdade na conciliação trabalho-família?

A lei da paridade [equilíbrio entre homens e mulheres numa estrutura] e a lei da igualdade salarial. Se efetivamente tivermos mais mulheres em cargos de direção e chefia do que temos neste momento. Se nos locais de trabalho houver um reflexo daquilo que é a sociedade, isto deixa uma margem grande para chegarmos ao equilíbrio.

A legislação tem vindo a procurar a igualdade ao longo dos tempos. Por outro lado, na prática, um homem ou uma mulher continuam a sentir-se constrangidos. O que se pode fazer no dia-a-dia que ajude a mudar este paradigma? 

É importante que as pessoas pensem na importância que este assunto tem. É um tema que no dia-a-dia não está presente. As questões do ambiente hoje em dia estão presentes - até porque é politicamente correto. A igualdade entre homens e mulheres, apesar de estar na moda, não é uma preocupação real.

Que boas práticas podem fazer a diferença no quotidiano?

Nalgumas das organizações que integram o iGen, há, por exemplo, creches. Enquanto o pai ou mãe se encontram a trabalhar, a criança está comodamente num infantário da própria entidade ou numa escola de um serviço próximo com que haja um acordo. O mesmo se aplica aos ascendentes com incapacidades. Há empresas e organizações que já têm acordos a esse nível.

Há 25 anos, havia questionários por escrito de entidades empregadoras a perguntar às mulheres se estavam grávidas ou se pretendiam engravidar.

Que outras boas práticas destaca?

Uma das medidas que começam a estar muito presentes em grandes empresas e quando a presença física não é obrigatória é o regime de teletrabalho, que pode facilitar a vida quer a mulheres quer a homens no apoio que têm de dar à sua esfera familiar. O teletrabalho, a autogestão dos tempos de trabalho e o funcionamento por objetivos não eram muito considerados há relativamente poucos anos. Pode ser em regime permanente ou de dois ou três dias por semana. Esse funcionamento hoje em dia começa a notar-se em várias empresas.

A CITE faz 40 anos este ano. Há alguma coisa que em 1979 fosse prática comum e que hoje em dia nos cause estranheza?

Há um exemplo muito óbvio. Quando eu cá cheguei, há 25 anos, ainda havia questionários por escrito de entidades empregadoras a perguntar às mulheres se estavam grávidas ou se pretendiam engravidar e até quando é que isso iria acontecer. Isso hoje em dia não nos aparece. Não significa que não seja perguntado verbalmente, mas creio que a prática será menos habitual. E a consciência de quem faz a pergunta, ou de quem gostaria de fazer a pergunta, espero que fique bem pesada se por acaso desenvolver uma questão dessas. Um outro exemplo: as cláusulas dos instrumentos de regulamentação coletiva eram discriminatórias há uns anos.

Em que sentido?

Previam uma especial proteção para o trabalho das mulheres, designadamente a ausência em dois ou três dias do mês - não posso garantir que não haja nenhuma neste momento que contemple essa condição, mas à partida cláusulas de tão evidente discriminação já não aparecem. Era bem visto, era tido como uma proteção especial às trabalhadoras. Isto para dar um exemplo de como a mentalidade vai mudando.

Que outros aspetos têm vindo a mudar?

Notamos o aumento do número de pedidos de informação que nos chegam. Subiu exponencialmente. Quer na parentalidade, quer na conciliação [trabalho-família], ou na igualdade e não discriminação.

Tem números?

A Comissão emitiu desde 1979 até, salvo erro, meio de setembro [de 2019] cinco mil e tal pareceres, dos quais três mil - portanto mais de 50% - foram emitidos nos últimos cinco anos.

Quais são as questões mais comuns?

Quando a entidade empregadora pretende despedir uma trabalhadora grávida, puérpera ou lactante, ou um trabalhador homem em licença parental; ou quando há uma intenção da entidade trabalhadora de recusar um regime de horário de conciliação, quer no trabalho a tempo parcial, quer um regime de horário flexível. Mas a conciliação [trabalho-família] é o tema mais comum. São cerca de 83% dos pareceres emitidos.

Para homens e mulheres?

Sim. Hoje em dia cerca de 30% dos pareceres emitidos são em relação a homens, o que não acontecia há cinco ou seis anos. As medidas são mais conhecidas e portanto as entidades empregadoras cumprem-nas.

Que outros aspetos têm vindo a mudar?

Desde que entrou em vigor a lei da paridade, o aumento das mulheres em cargos de chefia. Mais uma vez é o impulso da lei que funciona. Quando a autorregulação não resolve o assunto, tem de haver uma medida transitória. Em princípio é uma medida transitória - porque a partir do momento que entre na rotina e as pessoas compreendam a importância, deixa de ser necessária a medida. Se a paridade passar a ser o comum e se as pessoas compreenderem que assim deve ser, provavelmente a medida transitória deixa de ser necessária. Por enquanto é muito importante para dar o impulso para que haja mulheres e homens ao mesmo nível em cargos de decisão.

Na igualdade de género no trabalho e no emprego, tendencialmente fala-se das desvantagens para as mulheres. No entanto, há aspetos em que os homens são prejudicados pelas desigualdades. 

Essa é a discussão que é importante trazer. Há aqui uma proporcionalidade inversa: aquilo que as mulheres sentem a nível do mundo do trabalho é proporcional à desproteção e à discriminação de que os homens são vítimas em relação à sua esfera familiar. A falta de tempo para o homem e a culpabilização que o homem acaba por sentir quando não consegue acomodar no seu tempo esta disponibilidade para a família. Não é credível que um homem não goste de passar tempo com as suas crianças, não goste de passar tempo com a sua família. Para mim, é tão grave quanto a discriminação face às mulheres no mercado de trabalho.

Chegam pedidos de informação por parte dos homens em relação a esses aspetos?

Sim, cada vez mais.

As pessoas não conseguem ainda discernir muitas vezes o seu direito a não serem assediadas.

Que questões trazem?

Se eventualmente quiserem ir a uma consulta pré-natal com a pessoa grávida, ou se quiserem assistir um descendente, acabam por ser vistos como “a mamã lá de casa”. Isto ainda é real. Só temos uma licença por paternidade - agora chama-se licença parental - desde 1995. Faz muito pouco tempo. No início, eram dois dias, uma licença não subsidiada. A legislação foi sendo atualizada. E as pessoas têm mais consciência dos seus direitos.

Há alguma área em que sinta que as pessoas não tenham tão presentes os seus direitos?

Em relação ao assédio. As pessoas não conseguem ainda discernir muitas vezes o seu direito a não serem assediadas. Ou seja, o seu direito à dignidade no trabalho. Efetivamente, isso ainda penso que pode ser melhorado.

A questão do assédio, em particular o assédio sexual, tem sido muito mediatizado. Na sua opinião, isso é benéfico ou acaba por prejudicar a maneira como o assunto é tratado?

A informação tem de ser prestada, não há dúvida, para o assédio ser posto na ordem do dia e ser ajuizado pelas pessoas. Agora se o número de movimentos é em excesso ou não, ainda não consigo responder a isso neste momento. Não há nada que nos possa fazer tolerar o assédio, nem moral nem sexual. Por outro lado, não gostaria de ver o assunto banalizado. É importante que as pessoas tenham informação técnica. Muitas vezes a sociedade não se preocupa em verificar o que está em causa. [para conhecer os sinais de alerta que ajudam a identificar as situações de assédio, veja a entrevista publicada no dia 24 de outubro]

Este ano comemora-se o Dia da Igualdade Salarial a 8 de novembro. Esta comemoração não calha sempre no mesmo dia todos os anos.

Não é sempre o mesmo, porque varia consoante o gap [diferença salarial] é mais alto ou mais baixo. Conta-se em termos de número de dias que, até ao final do ano, as mulheres teriam de trabalhar a mais para ganhar o mesmo do que os homens. O que significa que, por exemplo, com um gap de 14,8%, em desfavor das mulheres - que é aquilo que apurámos para 2018 -, as mulheres teriam de trabalhar mais 54 dias no ano para ganhar o mesmo. Eles poderiam deixar de trabalhar a 8 de novembro, e elas teriam de trabalhar até ao final do ano para terem um salário igual. É esta a diferença. Quanto mais se aproximar do final do ano, mais equilíbrio haverá. 

No entanto, ao contrário do que se poderia pensar, isso não acontece necessariamente porque as mulheres estejam a ganhar mais. Certo?

Sim. Durante o período de maior crise em Portugal, detetámos que os salários dos homens não subiram tanto quanto habitualmente. E os das mulheres mantiveram-se, porque não houve subida de salário mínimo - e elas são quem mais recebe o salário mínimo. Durante o período de crise, nem subiu o salário mínimo, nem os homens foram aumentados. Quando terminou o período da crise, o salário mínimo aumentou. O que significa que as mulheres viram aumentado o salário, mas os dos homens não aumentaram tanto. E portanto o gap diminui. Isto é uma das explicações, entre dezenas delas.

Que outras explicações há?

As escolhas que são feitas a nível de percurso das carreiras das mulheres, sendo elas as mais mal pagas, escolhendo profissões menos valorizadas. Isto está ligado àquela questão do estereótipo de que elas escolhem as profissões ligadas ao cuidado. Se notarmos, vamos andar sempre à volta da mesma temática. Que é a única. Mas está tudo interligado.


Esta entrevista foi realizada no âmbito do encontro "O homem promotor da igualdade", da associação Quebrar o Silêncio, que se realiza nos dias 14, 15 e 16 de novembro, no ISCTE, em Lisboa.