Tudo começa com o que nos parece uma pequena viagem no tempo. Recuamos até ao Dia de Portugal, 10 de Junho. Nessa manhã, o Cardeal José Tolentino Mendonça discursou perante um país que estava a dar os primeiros passos de desconfinamento. O país estava marcado — e ainda está — pela pandemia da covid-19. Havia medo e dúvidas no ar. A desconfiança pelo desconhecido. Mas o discurso que chegou trazia a serenidade e a flecha rápida da poesia e a linguagem de um teólogo do mundo, que consegue chegar a crentes e não crentes.
As palavras que ressoaram no claustro do Mosteiro dos Jerónimos ficaram na memória de quem as ouviu e no que foi escrito sobre esse dia. Mas era preciso mais — porque há discursos e reflexões que precisam de ser revisitados quando o receio começa a ganhar terreno. E daí surgiu o livro “O Que é Amar um País. O Poder da Esperança”.
A responsabilidade de cada um, como raizes de um país
Vivemos com as portas trancadas. Ficámos do lado de dentro, para que lá fora tudo passasse. Este seria um bom resumo do que significaram os primeiros tempos de confinamento. O perigo estava no exterior, era preciso sossegar. Muitos foram os que se sentiram presos entre quatro paredes e as relações pessoais reduziram-se ao mínimo. No seu discurso, Tolentino Mendonça lembrava que aquilo que pensamos nem sempre é a realidade crua.
“Se interrogássemos cada um, provavelmente responderia que está apenas a cuidar da sua parte — a tratar do seu trabalho, da sua família; a cultivar as suas relações ou o seu território de vizinhança —, mas é importante que se recorde de que, cuidando das múltiplas partes, estamos juntos a edificar o todo”, dizia.
“Cada português é uma expressão de Portugal e é chamado a sentir-se responsável por ele, pois quando arquitetamos uma casa não podemos esquecer que, nesse momento, estamos também a construir a cidade. E quando pomos no mar a nossa embarcação não somos apenas os responsáveis por ela, mas pelo inteiro oceano. Ou quando queremos interpretar a árvore não podemos esquecer que ela não viveria sem as raízes”.
Os últimos meses vieram trazer, segundo Tolentino, uma “imprevista tempestade global, que condicionou radicalmente as nossas vidas e cujas consequências estamos ainda longe de mensurar”.
“Não, não é fácil constatar repentinamente que sabemos, de nós próprios e da vida, menos do que pensávamos”
“A pandemia, que principiou como uma crise sanitária, tornou-se uma crise poliédrica, de amplo espectro, atingindo todos os domínios da nossa vida comum”. Mudou a forma como nos relacionamos, como vivemos, como trabalhamos. Como somos.
E o Cardeal vai mais longe nesta mudança, deixando no ar o que, certamente, já passou pela cabeça de muitos: “Sabendo que não regressaremos ao ponto em que estávamos quando esta tempestade rebentou, é importante, porém, que, como sociedade, saibamos para onde queremos ir”.
O mundo desconhecido e o que havia por adquirido e não existe mais
Diz-se que quem viaja não volta igual. A pandemia terá também esse poder, embora ainda não saibamos bem qual o resultado final. Sabemos, no entanto, que algumas coisas já mudaram, principalmente no que diz respeito às interrogações sobre a “nossa visão do mundo e da existência”. Aqui cabem coisas aparentemente simples: o que é estar longe ou estar perto? O que é individual e o que é coletivo? O que nos protege e o que nos expõe? O que tínhamos por adquirido e agora pode ter desaparecido?
Lemos estas questões e podemos sentir-nos incomodados. José Tolentino Mendonça admite-o nas páginas que nos deixa escritas. “Não, não é fácil constatar repentinamente que sabemos, de nós próprios e da vida, menos do que pensávamos. Não é fácil despertar dentro de um mundo desconhecido, como o pobre caixeiro-viajante na novela de Kafka”, lembra, numa alusão à obra “A Metamorfose”, em que a personagem principal se vê transformada, de repente, num inseto, com toda uma nova vida à sua frente.
Na literatura, como na vida real, são várias as referências adaptáveis à pandemia — e o Cardeal-poeta não deixa de as trazer para as páginas do livro que agora é publicado. Além de Franz Kafka, há José Saramago com o seu “Ensaio sobre a Cegueira” e Albert Camus com “A Peste”, livros que saltaram para o top das obras mais vendidas em alguns países. Para Tolentino, o que podemos aprender com a ficção é simples: serve como um “leitura preventiva em relação à realidade”.
Além disso, “os livros são salva-vidas para todos os tempos, mas os tempos difíceis como que o explicitam melhor. A leitura é uma forma de resistir a este vírus que está a transformar tudo (…) e que pede o respeito escrupuloso das medidas sanitárias, mas também uma reforçada resiliência interior”.
Nestes em específico, há sempre uma noção de humanidade, como a que o Cardeal vai referindo por diversas vezes ao longo dos vários textos reunidos. A pandemia tem de servir para que se possa “finalmente reaprender a não votar ninguém à indiferença ou a não tratar os nossos semelhantes como desconhecidos”.
“Nenhum ser humano nos é desconhecido, pois sabemos por nós próprios o que é um ser humano: o que é esse pulsar de medo e de desejo, essa mistura de escassez e de prodigalidade, esse mapa que cruza o pó da terra com o pó das estrelas”, refletiu Tolentino.
E não o faz sozinho. Também esta semana o Papa Francisco tocou neste assunto, numa audiência geral na Biblioteca do Palácio Apostólico, no Vaticano. “A pandemia destacou o quão vulneráveis e interligados somos. Se não cuidarmos uns dos outros, começando pelos últimos, os mais afetados, não seremos capazes de curar o mundo”, referiu.
“A pandemia trouxe à luz patologias sociais mais amplas, como uma visão distorcida da pessoa que ignora a sua dignidade. Às vezes olhamos os outros como objetos a serem usados e jogados fora”, lamentou.
Olhar os lírios do campo e as aves do céu — o que podemos aprender com a pandemia e o que fica depois dela
Como resposta às situações de indiferença, José Tolentino Mendonça recupera uma conhecida passagem do Evangelho de São Mateus, comentada por Etty Hillesum, uma rapariga holandesa que viveu num campo de concentração: “Se as pessoas entendessem esta época, seriam capazes de aprender com ela a viver como os lírios do campo”.
“O que significa sermos capazes de olhar os lírios do campo e as aves do céu? Significa adotar uma atitude contemplativa. Precisamos de olhar, mas não apenas como habitualmente o fazemos, pois a maioria das vezes o nosso olhar morre junto aos sapatos. Somos desafiados a um olhar que vá além de nós, que supere os limites do nosso tracejado, que transcenda o perímetro das nossas preocupações imediatas, que se projete para lá do que sozinhos conseguimos ver”, reflete o Cardeal.
“A coragem destas horas não se joga apenas na primeira frente de combate à pandemia”
No fim de contas, o que a pandemia trouxe é o sentimento de “uma radical expropriação da sua humanidade”. E é contra esses aspectos que é preciso aprender a lidar.
“O elenco e a natureza das coisas que nos estão vedadas é impressionante, e isso representa um empobrecimento brutal da vida. Pensar que estão suspensas dimensões tão elementares como a proximidade entre nós humanos, a visitação, a experiência comunitária, o convívio, o contacto físico com que se expressam os afetos, a saída de casa que não seja em direção à fila do supermercado e da farmácia”, começa por enumerar Tolentino Mendonça.
Posto isto, é necessário começar a pensar na vida pós-pandemia. O que fica depois? Como vamos sair de casa para nos relacionarmos com os outros?
Para o Cardeal, “a coragem destas horas não se joga apenas na primeira frente de combate à pandemia, mas também na resiliência e ousadia necessárias para pensar no que queremos ser depois da covid-19”. Assim, não se pode pensar apenas em voltar ao passado, como se nada tivesse acontecido. Para ajudar, Tolentino Mendonça formula dez perguntas, que aqui resumimos:
1. Como vão ficar as assimetrias no mundo?
2. Como nos vamos relacionar com as pessoas quando finalmente sairmos sem medos?
3. Em que ponto fica a globalização, com tudo aquilo que envolve?
4. Olharemos de outra forma para a Terra?
5. Entenderemos que tudo está ligado nesta nossa “casa-comum”?
6. A vida de cada um continuará a seguir ritmos frenéticos?
7. Como fica a União Europeia depois da pandemia?
8. Passaremos a viver numa escala mais humana?
9. Vamos tratar melhor os profissionais de saúde?
10. Que valores vão permanecer?
As respostas, essas, não aparecem no livro. Mas devem ser procuradas em cada pessoa que o lê. Afinal, a certeza que existe neste momento pode ser só uma: “a esta primavera suceder-se-á outra, porventura mais risonha, distendida e ampla. Mas nunca mais respiraremos da mesma maneira”.
José Tolentino afirma-o, numa provocação que não é mais do que uma chamada de atenção para o mundo que nos rodeia. E continua, sempre a puxar pelo conceito de “normalidade”, que tanto se tem utilizado nestes tempos. O que era normal, o que é, o que virá a ser. Este novo normal que ainda não sabemos bem definir.
“É verdade que não seria normal que tudo fosse exatamente como dantes”
“Mas de que falamos quando falamos de normalidade? De um modo apressado, seríamos tentados a identificá-la com o regresso exato à vida que tínhamos anteriormente. A mesma vida, com a sua paisagem, os seus ritmos, rotinas, enquadramentos e motivações. Essa é uma ideia que nos devolve segurança: pensar que estes tempos estranhos assim como chegaram vão partir, como se de uma anomalia de circunstâncias se tratassem, e que nós e o mundo nos reencontraremos na mesma posição de há uns meses. Em grande medida será assim. Mas também é verdade que não seria normal que tudo fosse exatamente como dantes”.
Até lá, pensemos que a normalidade é “uma construção onde somos chamados a empenhar-nos”. No fim, “este é sobretudo um tempo de aprendizagem”: e a esperança em dias melhores também se aprende, de olhos postos no futuro. Afinal, “nós não somos apenas seres de presente. Nós não temos apenas âncoras, também temos asas”.
E, a seu tempo, conseguiremos voar para fora da pandemia.
O livro "O que É Amar um País. O Poder da Esperança", de José Tolentino Mendonça, está publicado pela Quetzal Editores e disponível nas livrarias a partir de hoje, 14 de agosto.
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