Há figuras satíricas enormes penduradas no teto. A música de Carnaval ouve-se ao fundo. Não com a intensidade dos dias de festa, mas está lá. Vem do alto da sala, de três comboios que correm uma pista. Mas não são uns quaisquer: simbolizam carros alegóricos que percorrem as ruas de Torres Vedras, um caminho que se faz todos os anos. E a chegada do Rei num deles, de Lisboa até ao Oeste para seis dias de folia.
No Centro de Artes e Criatividade (CAC), nada é colocado ao acaso. Num Carnaval trapalhão, o museu faz-se interativo e dinâmico, sem esquecer a tradição. E é mesmo do passado que se fala este ano, ou não fosse 2023 o tempo de assinalar o Centenário do Carnaval de Torres Vedras. Mas a história é mais longa do que isso.
As manifestações do Carnaval espontâneo em Torres Vedras, característica que persiste até hoje, remontam ao século XIX. A 28 de fevereiro de 1886, um jornal brasileiro retratava o Carnaval de Torres Vedras da seguinte forma:
"Ha já alguns dias que, na loja d’um dos mais simpáticos negociantes d’esta villa, meia dúzia de caraças, algumas retratando alguns vultos notáveis da nossa politica, exhibem tristemente, penduradas por um barbante que lhes atravessa os olhos, uma careta, sempre a mesma, que por demasiada constancia chega a tornar má a caricatura dos prestantes cidadãos".
Contudo, a folia nas ruas é bastante anterior. De acordo com a página Torres Vedras Antiga, a primeira referência conhecida data de 1574 — em causa está uma queixa relativa a uma "briga" nas ruas de Torres Vedras, de uns moços "trazendo rodelas, espadas, paus como costumam o tal dia", ou seja, as festividades do Entrudo, que envolvia "passatempos e brincos (brincadeiras) de brigas sobre o galo como sempre houve".
Por isso, fica uma questão no ar: como é que se assinala agora o Centenário do Carnaval se já antes a festa se fazia?
"As referências mais antigas são do século XVI, mas não do Carnaval, era o Entrudo tradicional. Depois temos, desde o final do século XIX, e também com a I República, referências a festas esporádicas, mas já organizadas, de Carnaval", começa por explicar ao SAPO24 Rui Brás, diretor do Centro de Artes e Criatividade (CAC).
Assim, foi em 1923 que uma elite local republicana e um grupo social comercial/industrial emergente iniciou os festejos organizados nas ruas, com figuras que se mantém até à atualidade. "Esse ano é a grande marca do Carnaval como hoje é conhecido, com as características contemporâneas. É daí que contamos o Centenário", que se assinala entre 17 de fevereiro de 2023 e 14 de fevereiro de 2024, acrescenta.
Contudo, as críticas fazem-se ouvir no espaço público, sendo a página Torres Vedras Antiga um dos principais defensores de que a denominação "Centenário do Carnaval" está incorreta, devendo sim ser referido como "Centenário da Receção ao Rei do Carnaval", que aconteceu pela primeira vez em 1923. Um ano depois, juntou-se a Rainha — um homem vestido de mulher, como as conhecidas matrafonas de Torres Vedras.
O Carnaval é ancestral enquanto festa popular
Para Rui Brás, as críticas são oportunidade de contar a história. "O que explicamos é que sabemos de tudo isso. Aliás, basta ler o dossier de classificação do Carnaval, que está disponível na Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), que explica os antecedentes", aponta.
No fundo, o Carnaval de Torres Vedras insere-se, tal como outros, nas tradições do Entrudo português, cujas raízes remontam às festas pagãs relacionadas com as festas de inverno e com os cultos de fertilidade e da abundância no início da primavera, incluídos pelo Cristianismo no calendário litúrgico.
"O Carnaval é ancestral enquanto festa popular. Mas não conhecemos o tempo do Entrudo tradicional. Esta exposição começa com uma citação de Goethe que diz exatamente isso. Essa data está no fundo do tempo, não é possível dizer que começou no século tal", aponta o diretor do CAC.
Os 100 anos têm a ver com o ano em que aparecem pela primeira vez os símbolos que são os do Carnaval hoje
Desta forma, Rui ressalta que o Entrudo "foi combatido, mas também era apoiado" pela população. "A religião combateu essas manifestações, eram perigosas, muito violentas, tinham um cariz sexual muito forte. Mostravam um ser humano descontrolado e era tempo desse descontrolo".
"Os 100 anos do Carnaval têm a ver — e aí não há dúvida nenhuma, porque há documentação absolutamente clara — com o ano em que aparecem pela primeira vez os símbolos que são os do Carnaval hoje, com vários momentos. Há a chegada dos reis, a entronização, o cortejo que começou por ser só ao domingo e à terça-feira e depois foi sendo alargado, até aos seis dias de agora, e, por fim, o enforcamento do Rei, na Quarta-feira de Cinzas", enumera.
Além disso, "em 1973 tinha-se comemorado os 50 anos do Carnaval, ou seja, a atual comemoração do Centenário também tem a ver com as comemorações históricas que foram feitas".
Nesse sentido, a exposição do CAC centra-se essencialmente na história a partir de 1900, já que "para trás existem notícias muito dispersas, muito pontuais, sobre algumas manifestações. Às vezes aparece uma pequena frase num jornal local ou num documento histórico, mas nada com o substancial com que aparece em 1923.", lembra o diretor.
Da pesquisa às críticas — e ao crescimento da História
Contudo, quando se trata de assegurar tradições que estão inscritas como Património Cultural Imaterial, o cuidado nunca é pouco — e há mesmo quem se preocupe em garantir que tudo está em conformidade.
Em declaração escrita ao SAPO24, "a DGPC confirma que recebeu algumas observações por parte de um cidadão sobre o historial e a origem do Carnaval de Torres Vedras, as quais foram reencaminhadas para a Câmara Municipal de Torres Vedras, enquanto entidade proponente do registo do Carnaval de Torres Vedras no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial (cuja inscrição data 4 de abril de 2022 na MatrizPCI)".
Não podemos assumir que o Carnaval de Torres Vedras tem 449 anos, na medida em que o Entrudo não é datável
"No âmbito das suas competências e atribuições, a DGPC tem a incumbência de acompanhar a implementação das medidas de salvaguarda aprovadas quando da inscrição no inventário Nacional do Património Cultural Imaterial, respeitando o espírito da Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial da UNESCO 2003", pode ainda ler-se.
Em reação à interação com a DGPC, a Câmara de Torres de Torres Vedras frisa ao SAPO24 que "o registo do Carnaval de Torres Vedras faz referência à primeira referência conhecida (1574), entre outras, no campo origem/historial do anexo 1 do pedido de inventariação do carnaval no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial (INPCI)".
"No campo origem/historial podem ser inseridas outras fontes históricas que documentam o Carnaval ao longo dos séculos (entretanto encontradas) mas isso não acrescenta nem invalida informação sobre o Carnaval que foi transmitido de geração em geração até hoje e do qual foi alvo o registo no INPCI", acrescenta.
A autarquia adianta ainda que "não podemos assumir que o Carnaval de Torres Vedras tem 449 anos (tendo como base o registo de 1574), na medida em que o Entrudo não é datável, e assim todos os documentos que forem encontrados serão os que resistiram ao tempo".
Por sua vez, "o registo do carnaval no INPCI, efetuado em 2016, refere que a festividade tal como é reproduzida atualmente tem a sua origem no início do século XX, indicando-se o ritual de receção do Rei (1923) e Rei/Rainha (a partir de 1924), o que é alvo das comemorações do Centenário no presente ano".
"A distinção entre o Entrudo (cujas raízes são intemporais) e o Carnaval urbano e burguês que foi replicado no século XIX em várias capitais europeias, a partir do modelo de Carnaval mediterrâneo (em especial de Nice), é consensual entre vários investigadores que têm trabalhado a temática", remata a Câmara Municipal de Torres Vedras.
A História não é só a recolha de fontes primárias, há que interpretar
Ao SAPO24, André, o responsável pela página Torres Vedras Antiga, confirma ter enviado o reparo à DGPC e à autarquia, bem como o seu interesse no tema. "Não sou nenhum historiador, sou um mero curioso e pesquiso para saber mais", garante. E é por isso que tem vindo a colaborar também com o CAC.
Para Rui Brás, tudo isto é encarado "com normalidade". "Há vários tipos de críticas, mas explicamos porquê que é assim. Inclusivamente o Carnaval que foi classificado como Património Cultural tem certas características e este registo histórico".
"Temos estado em contacto até com os críticos, que tem colaborado connosco. Felizmente isso tem acontecido", salienta. "Uma dessas pessoas é o André, temos tido reuniões com ele. Não é um académico, não tem essa dimensão de historiador, mas é uma pessoa muito interessada e faz muita recolha online. Depois acabamos também por absorver e alertar quando as coisas têm de ser interpretadas", frisa o diretor do CAC.
"Como sabemos, a História não é só a recolha de fontes primárias, há que interpretar. Além disso, é preciso ter presente que o Carnaval é uma manifestação imaterial e que muitas das questões que são aqui abordadas vêm da oralidade e de recolhas antropológicas, de histórias de vida, de tratamento de outras fontes", lembra Rui Brás, que fala com conhecimento de causa por ser antropólogo de profissão.
Assim, "há que cruzar a recolha documental factual escrita com a dimensão oral e não termos estereótipos. Há muita coisa que é escrita hoje e que não é bem assim e no passado também era assim. Nem tudo o que era escrito era uma verdade insofismável; a informação tem de ser criticada, tem de ser cruzada".
Além disso, Rui Brás diz que "a tradição não é fixa no tempo, ela transforma-se". "As características do Carnaval têm sido alteradas, mas há uma estrutura que se mantém. Há dimensões secundárias que se vão transformando, mas a dimensão comunitária, popular, manteve-se".
"A pandemia deu para perceber isso muito bem. Não é uma organização que pertença a uma entidade, é mais uma manifestação espontânea e popular. As pessoas saíram à rua na mesma e não houve corso organizado. E isso só reforça essa dimensão profundamente cultural", recorda.
Um espaço para o coração da cidade
Embora o Carnaval se faça nas ruas, o Centro de Artes e Criatividade assegura que o registo das tradições se mantenha — e isso também ajuda a justificar o Centenário.
"Somos muito robustecidos pelas equipas e pelo trabalho que alimentou a classificação e que agora alimenta a defesa desse património", aponta.
O CAC surgiu da velha aspiração de Torres Vedras em ter um espaço para o seu coração
Mas o trabalho do CAC chegou bem antes da classificação, já que a ideia de um museu do Carnaval era um antigo desejo na cidade.
"O projeto vem do final da década de 90 e surgiu da velha aspiração de Torres Vedras em ter um espaço para o seu coração, o Carnaval. Não se tinha um local pensado ainda nessa altura, mas havia a intenção de criar um museu", explica o diretor do CAC.
Quando o matadouro municipal foi desativado, em 1998, surgiu uma possibilidade. "As duas coisas unem-se e a Câmara Municipal decide lançar um projeto de reabilitação do edifício e de instalação do museu do Carnaval. Passaram alguns anos, a coisa não avançou logo, e em 2005-2006 foi desenvolvido o projeto de criação do museu, mas o âmbito é alargado para um centro de artes ligado ao Carnaval", conta.
"Não se perdeu a intenção de criar um espaço para ocupação dos objetos principais e do levantamento de histórias e tradições ligadas ao Carnaval, enquanto manifestação cultural da cidade, mas é alargado para um centro artístico porque se entendeu que o Carnaval desenvolve e tem em seu torno uma séria de expressões artísticas que careciam também de um espaço onde as pessoas as pudessem trabalhar, quer ao nível de serviço educativo, quer ao nível de apoio à criação artística", acrescenta Rui.
O Carnaval é uma estratégia facilitadora, ainda que não desenvolvamos só Carnaval
"Inaugurámos em 2021, em abril, em plena pandemia. Quando muitos estavam a encerrar, nós estávamos a abrir. Foi difícil, mas foi também muito interessante", frisa. E nasceu assim um edifício "com cerca de 4 mil metros quadrados, entre a parte antiga que foi renovada e a parte nova que foi acrescentada".
Entre dois pisos e um anfiteatro exterior, o CAC pretende ser um "núcleo de investigação e documentação", mas também um local onde as mais diversas artes se cruzam.
"O Carnaval é uma estratégia facilitadora, ainda que não desenvolvamos só Carnaval, temos atividades muito mais amplas", adianta Rui Brás. Assim, há interação com a comunidade local, com as escolas e ainda atividades com idosos, em diversos ramos artísticos.
Quanto ao Carnaval, o CAC divide-se em três núcleos. O primeiro, "dedicado ao atlas do Carnaval, onde o visitante pode escolher entre 33 manifestações" desta festividade, todas elas classificadas pela UNESCO; o segundo, dedicado a Torres Vedras e que funciona maioritariamente com recurso a um audioguia que permite aceder a conteúdos digitais, sem deixar esquecer peças e trajes característicos; e o terceiro, que diz respeito a "uma abordagem mais antropológica dos carnavais tradicionais", funcionando com exposições temporárias.
Além destas três partes, o Centro acolhe também uma exposição temporária, que vai sendo renovada conforme surge a oportunidade de abordar determinado tema. Mas mesmo a exposição permanente não está sempre igual: os conteúdos vão sendo renovados, através de convites a vários artistas que deixam a sua marca no espaço.
No fundo, o museu pretende funcionar como a figura de tons azuis que salta à vista no fim da sala dedicada ao Carnaval de Torres Vedras. Um mascarado corre para um portal, de modo atravessá-lo. De um lado, a tradição; do outro a modernidade.
E o futuro quer-se como o tema do Carnaval de 2023: um exercício em que a memória do passado é essencial. Tenham as festas começado há 400 ou há 100 anos.
Para assinalar o Centenário, Torres Vedras começa já este sábado a viver a folia com a inauguração do monumento ao Carnaval, que representou este ano um investimento de 60 mil euros, segundo a autarquia. Nele, têm em destaque as figuras do primeiro Rei, Álvaro André de Brito, e da primeira Rainha, Jaime Alves, acompanhados pela comitiva real. Há também a habitual sátira política, com o secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, Carlos Miguel (natural de Torres Vedras), a ser atacado pelo presidente do Chega, André Ventura, enquanto Marcelo Rebelo de Sousa faz acrobacias no cimo do monumento. Ao nível internacional, Putin joga xadrez com a morte.
O Carnaval de 2023 tem lugar entre 17 e 22 de fevereiro e marca o início das comemorações do Centenário, que decorrem até fevereiro de 2024. O programa geral será apresentado na próxima terça-feira.
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