Olhava as palavras alheias e temia: nunca escreveria nada assim, seria incapaz, não tinha experiência de vida para aquilo, os antigos perseguiam-no.

A mulher dormia num leito desarranjado, porque ainda não amanhecera e só os insones agitados acordavam com a tempestade – dono e cão de orelhas sensíveis ao ruído da ventoinha do computador, ou a criança ainda invisível, coberta de mãe, inspiração afinal gorada pela frustração do tempo que passava sem a produção da obra-prima obrigatória, a segunda, o fardo, os prazos que se expiravam.

Primeiro, pensava que escreveria algo antes dos 20. Depois, antes dos 30. Conheceu-a e convenceu-se: antes de casarem. Casaram, e lá terminou o conto que o assombrava desde os tempos da faculdade (medicina dentária porquê?); ganhou o prémio, mas não há uma sem duas, e esta última teria de acontecer logo a seguir: antes que o traquejo lhe fugisse. Fugiu. Ainda assim, inspirado pelo mais simples, e também o mais glorioso feito da vida, que é ter um filho (ouvia o próprio pai dizer), inventara um novo prazo. Ouvia a voz indistinta da criança contar duas histórias diferentes:

a) O meu pai é dentista.

b) O meu pai é escritor.

Tinha dois meses para escrever uma história, a sua história, esse enredo de liberdade ou aprisionamento para o qual, naquela manhã de dezembro, não conseguia arranjar desfecho. Tinha dois meses, e talvez até pudesse ganhar mais alguns até o filho falar. É isso. Ele não seria capaz de articular nem a) nem b) no ano seguinte, talvez nos dois anos seguintes.

Este pensamento trouxe-lhe alguma paz. Que diferença faria ser daqui a dois meses ou daqui a dois anos? O leitor espera. Até lá, teria tempo para pensar, para se livrar daquele peso que lhe toldava a escrita. A dúvida. A insegurança. A desconfiança de que tivesse algo para mostrar ao mundo, combinada com a presunção do artista que acreditava ter por estatuto autoinfligido a sangue, lágrimas e Bic desde a adolescência e dos primeiros rascunhos passados a limpo, para de imediato serem guardados na gaveta. O prazo alargado devolvia-lhe alguma liberdade, a de viver e a de criar.

O quarto estava completamente iluminado quando a mulher acordou. Então, nessa manhã de dezembro em que deixara finalmente de chover, ele foi só mais um homem cheio de sorte e sonhos, aqueles em que o leitor já não teria de esperar e em que os antigos lhe sorririam, benévolos.


Texto por Beatriz Canas MendesHoje, dia 25 de abril, publicamos uma seleção dos textos que resultaram da iniciativa lançada pelo SAPO24 e O Primeiro Capítuloassinados por novos nomes de quem tem na escrita uma forma de expressão.