Diário de um pai em casa. Dia 47
Vivemos anos a fio ao sabor de um tempo A.C. (Antes do Covid-19). Estamos a ter uma vivência sob o seu signo e, à la longue, teremos uma vida D.C. (Depois do Covid-19). Que não sabemos quando chegará. Se será essa a regra. Ou como nos adaptaremos a toda esta indefinição.
Pelo meio, tivemos três Estados de Emergência. E estamos a ter, e teremos, uma vida em que ela faz parte da nossa vida. Um modo de vida que quebrou com a normalidade, entrou numa anormalidade, entre preparativos para um mundo pós-normal. Ou nova normalidade.
Vivemos, desde ontem, num pré-aviso de A.C. (Antes da Calamidade), com o Estado de Calamidade a entrar ao minuto 1 do fim da Emergência. Mas que pode recuar. E num um passo atrás, a Calamidade dará lugar, de novo, à Emergência, que foi o tempo vivido A.C.
O outro D.C. (Depois da Calamidade) andará de mãos dadas com o primeiro D.C. (durante o coronavírus). A calamidade tem prazo. O modo de adaptação da vida ao vírus, antes e do depois, não está, creio, a (curto) prazo nas nossas vidas.
São muitos A.C.'s e D.C's. Múltiplos antes e depois.
Até esta data, só tinha conhecido um. O original, e que vale para a civilização ocidental. O que calendarizou o Anno Domini. Antes de Cristo e Depois de Cristo.
Curioso, ou talvez não, esta ligação feita entre uma pandemia e a espiritualidade que emerge durante e perdurará no pós. Haverá um antes e um depois neste assunto? Ou é algo que, intrinsecamente, sempre viveu em nós, embora de forma adormecida? Despertou? Ou fomos levados, entre silêncios, à sua procura? Reencontrámo-nos? Questionámo-la? Só agora? Porquê e a que propósito? Não tenho, ainda, resposta.
Encontrá-la-ei, dentro de mim. Porque a questionei, numa primeira fase. Fi-lo no hiato de tempo entre o fim de um tempo conhecido como A.C. (o da pandemia) no dia que o vírus chegou. Permaneceu na Emergência que se instalou, manteve-se até à presente data e prossegue durante e para lá da Calamidade. E continuarei a fazê-lo num duplo D.C. (Durante e Depois do Covid-19). Um C (coronavírus) que provocou uma mudança na forma como olhamos para nós e para o outro.
Do nada, ou talvez não, de uma palavra dita hoje por um amigo, (re)encontrado no nosso bairro, depois de tantos dias sem encontros, devolveu-me a vontade de um pequeno gesto.
Depois de um frugal bom dia dado à porta de uma esquina que vende pão, quis a causalidade, que nos encontrássemos, de novo, vários minutos depois, à porta da minha casa. Conversámos. Sobre isto e aquilo.
Falou-se de um gesto. Simples. De um abraço e da falta de sentir o seu significado. Gesto mundano. Demasiado banal, tão banal que nos esquecemos quão nos faz falta.
Confidenciou-me que foi vencido por essa saudade. Ou será necessidade? Fez uns quilómetros de mota e deu um abraço a uma pessoa amiga. Um ato levado pelo impulso mais natural que existe no ser humano. O da libertação, em primeiro. O da proximidade e da necessidade de tocar. Vencendo e dominando os medos.
Estava dado o mote. Convidei a minha mulher, que estava comigo a ouvir a conversa para um curto passeio de mota, no final do dia. Até um local onde possamos dar um passeio a sós. Abraçados. Algo que não fazemos desde meados de março.
Até lá, há uma música que não me sai da cabeça: Nick Cave & The Bad Seeds - Into My Arms. Artista que revisitei hoje.
Um Post Scriptum. A data, 1 de maio, dia do Trabalhador celebrado, na rua, em tempo de quarentena, por uma central sindical (CGTP) é o dia que marca, para mim, e para muitos, um antes e um depois no desporto automóvel. Antes de Senna e Depois de (Ayrton) Senna. Uma Homofonia com A.C e D.C. Nunca mais vi um GP de Fórmula 1. Já lá vão 26 anos. Desde o desaparecimento de uma Divindade no monolugar. Ele que acreditava que via Deus ao volante.
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