(Este texto foi inicialmente publicado no Público em Abril de 1994, quando se assinalaram 20 anos do 25 de Abril de 1974. Reedita-se aqui mantendo o título e a estrutura, corrigindo e actualizando apenas pequenos pormenores.)
Na altura da revolução, era uma Igreja em tensão e erosão aquela que se descobre: eram cada vez mais os católicos que se integravam em estruturas e movimentos de oposição ao Estado Novo e punham em causa o que consideravam aquele. E alargava-se a sangria de quadros válidos – clero formado com o Concílio Vaticano II, mas também muitos leigos que se iam afastando e dos movimentos de Acção Católica como estruturas de massas.
A questão colonial era uma das razões que contribuía para o agravamento da tensão. Apesar da censura, chegavam ecos das posições tomadas por bispos e missionários (Vieira Pinto, Padres Brancos, Combonianos) e das denúncias por eles feitas dos massacres perpetrados pelos militares portugueses contra as populações civis.
Para preparar o acolhimento a Vieira Pinto, entretanto expulso de Moçambique, um grupo de largas dezenas de militantes católicos anti-Estado Novo reunir-se-ia, nas vésperas da revolução dos capitães, na mesma sala que, alguns dias depois, os soldados ocupariam para vigiar o quartel da GNR no Largo do Carmo, onde se refugiara Marcelo Caetano. Alguns anos antes, em 1967, quando Paulo VI visitou Fátima, um grupo de padres angolanos esteve para tentar entrar na nunciatura do Vaticano em Lisboa. Queriam protestar contra a sua deportação para a “metrópole” e pedir asilo político ao Vaticano. A acção falhou, porque um deles recuou na última hora.
Com a sociedade civil, a Igreja, a maioria dos fiéis e da hierarquia, estava “longe” da reflexão sobre a articulação entre a fé, a política e a cidadania, e limitava-se a ser o espaço onde se integravam práticas devocionais com o discurso da normalidade, do respeito pelas hierarquias e pela ordem. O debate teológico era um vazio, a participação individual e responsável era ainda pouco desejada e o pluralismo era proscrito.
No dia 25 de Abril de 1974, os bispos estavam reunidos em Fátima…
Histórias do catolicismo militante contra a ditadura
O bispo de Nampula, Manuel Vieira Pinto, estava para chegar a Lisboa no dia 14 de Abril de 1974. Tinha sido expulso de Moçambique por causa das suas posições contra a guerra colonial. Poucos dias antes, o Movimento Justiça e Paz (MJP), nome dado a uma rede informal de católicos que agrupava diversos grupos e pessoas e distribuía textos proibidos pela censura) convocou uma reunião para junto da Igreja de São Mamede, em Lisboa.
O problema é que a PIDE (polícia política do regime) soube do encontro. Os organizadores viram-se obrigados, à última hora, a alterar o plano. A solução foi alguns frades dominicanos – então empenhados em diversos grupos de oposição católica – distribuírem-se entre o Largo de São Mamede os locais que lhe davam acesso: Príncipe Real, Avenida da Liberdade e Largo do Rato. Sempre a andar entre aqueles pontos, iam avisando as caras conhecidas com quem se cruzavam: “Dirige-te para a Rua da Condessa”.
Na mesma sala dos soldados
Na Rua da Condessa, junto do Largo do Carmo, funcionava a sede diocesana de Lisboa de vários movimentos de Acção Católica. Em menos de uma hora, não havia ninguém em São Mamede e a sede da Condessa encheu-se com largas dezenas de oposicionistas católicos. Se a PIDE ali entrasse…
Dessa mesma sala, poucos dias depois, um grupo de soldados envolvidos na Revolução vigiou o quartel do Carmo, onde se refugiara o então presidente do Conselho de Ministros, Marcello Caetano.
No encontro do MJP, ficou decidido que as pessoas se concentrariam no aeroporto a acolher Vieira Pinto. A PIDE trocaria mais uma vez as voltas aos oposicionistas, levando o bispo por uma saída discreta, em direcção a casa de família, onde ficaria sob residência vigiada. Entretanto, fora eleita uma pequena delegação – Fernando Cristóvão, Manuel Conde e Luís de França – para falar com o núncio do Vaticano em Lisboa, comunicando-lhe a decisão tomada e manifestando repúdio pela expulsão de Vieira Pinto. O mesmo grupo foi, depois, falar com cardeal-patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro. A resposta do bispo de Lisboa foi que faria “tudo o que a Santa Sé” lhe dissesse.
Na reunião da Condessa estavam muitos dos grupos e personalidades católicas que se opunham ao regime do Estado Novo. Mas não estava a maior parte da Igreja – nem fiéis nem hierarquia episcopal. Esses colocavam-se, pela ignorância do que se passava, pelo silêncio ou pelo apoio explícito, do lado do poder político. Era uma grande maioria que estava “longe” da reflexão sobre a articulação entre a fé, a política e a cidadania, observa o historiador António Matos Ferreira, do Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR) da Universidade Católica Portuguesa (UCP). A Igreja limitava-se a ser o espaço onde se integravam práticas devocionais primárias com o discurso da normalidade, do respeito pelas hierarquias estabelecidas e pela ordem – por contraste com qualquer debate teológico, participação individual ou aceitação do pluralismo.
Tal atitude tinha raízes históricas profundas. Mas, no imediato, ela constituía uma espécie de révanche da Igreja em relação à primeira República e à Lei de separação, de 1911, e que a converteu numa “Igreja domesticada pelo regime num longo processo de décadas”, na expressão do arquitecto Nuno Teotónio Pereira. Mais do que isso: a Igreja domesticara-se a ela mesma. Em 1926, diziam os bispos, os decretos do Concílio Plenário, eram “um brado de união, um toque a reunir, uma voz de comando a congregar todos os fiéis de Portugal numa acção conjunta em torno da única bandeira que nos guia e que é o lábaro sacrossanto de Nosso Senhor Jesus Cristo”.
“Lutar e trabalhar fora desta norma única é criar confusão, é perturbar a vida da Igreja, (…) é abrir brechas por onde o inimigo facilmente entrará no nosso campo”, acrescentavam os bispos. Um único catecismo, um único programa de estudos dos seminários, uma mesma tradução dos textos pontifícios, uma uniforme disciplina de irmandades eram decisões consequentes. E a Igreja apresentaria “ao mundo um espectáculo edificante e grandioso, o espectáculo de um exército disciplinado e forte”.
Uma Igreja assim, nota o dominicano frei Bento Domingues (no texto “Artes de ser católico português”, publicado em A Religião dos Portugueses), “está pronta para viver apenas no espaço que a União Nacional” de Salazar lhe reservar e será “incapaz” de aceitar quem não adira ao Estado Novo. O seu silêncio destina-se a manter e salvaguardar a liberdade de culto e de ensino, mais que preocupar-se com questões de liberdade, justiça social ou guerra e paz. E o seu “grande ‘valor’ é a uniformidade que exige obediência”. Foi “a grande e única habilidade de Salazar”, observada por Eduardo Lourenço, “a de articular o seu projecto político com a mais orgânica e racional das nossas vivências culturais: a do catolicismo”.
Contestação crescente
O cardeal Cerejeira, amigo de Salazar, era a figura tutelar e o emblema da colaboração entre Igreja e Estado. Apesar de alguns murros na mesa que dera ao ditador – “Quem tocar na JOC [Juventude Operária Católica], toca na Igreja”, ameaçara, quando Salazar quis proibir a organização –, o então patriarca calou-se ou contemporizou muitas vezes, demasiadas vezes, em questões decisivas: o encerramento do jornal O Trabalhador, o desterro do padre Abel Varzim para o Minho, o exílio do padre Joaquim Alves Correia, a ausência de solidariedade com o então bispo do Porto, António Ferreira Gomes, depois de este ter escrito a carta a Salazar na qual pedia liberdade para a Igreja ensinar a sua doutrina e acusava o regime de ser a “tirania da ocupação”.
Esta carta, escrita em 1958, traz à evidência que o uniformismo é impossível, mesmo dentro da própria hierarquia. Vive-se, então, uma sucessão de acontecimentos que levarão várias gerações de católicos a protagonizar cada vez mais acções – culturais, religiosas, partidárias, subversivas – de oposição ao regime. Membros da JOC ou da JUC (Juventude Universitária Católica) e intelectuais como Alçada Baptista, João Bénard da Costa, Nuno Teotónio Pereira, Vítor Constâncio, João Salgueiro, João Gomes, Nuno Bragança, Manuela Silva, Lourdes Pintasilgo, Pereira de Moura, Nuno Silva Miguel, Vítor Wengorovius, Helena Cidade Moura e muitos outros começam a aparecer, liderando ou apoiando uma série de iniciativas.
As eleições presidenciais de 1958, com Humberto Delgado, tinham despertado consciências. Logo depois delas, um grupo de 28 católicos manifesta ao Novidades, órgão oficioso da Igreja, “o desgosto pelo apoio prestado [pelo jornal] ao candidato do regime”. No ano seguinte, começa o exílio do contestatário bispo do Porto. Durará dez anos. Um novo grupo de 43 católicos escreve um texto sobre “As relações entre a Igreja e o Estado e as liberdades dos católicos”. Mais 45 escrevem a Salazar a propósito da repressão policial. Fracassara, entretanto, a “revolta da Sé”, que contara com a participação de alguns elementos da JOC.
Com o início do Concílio Vaticano II, em 1962, e o magistério de João XXIII, desloca-se “o centro do campo de afirmação dos católicos” e “Salazar e o seu catolicismo tinham ficado na periferia”, observa Augusto Matias (Católicos e Socialistas em Portugal). Pior ainda quando, em Abril de 1963, o Papa João XXIII publica a encíclica Pacem in Terris, cujo conteúdo é censurado, deturpado ou mesmo interdito. Sem qualquer protesto dos bispos que, aliás, também não tinham publicado nenhum comentário sobre ela.
Um ano depois da encíclica, funda-se em Lisboa a Pragma, uma “cooperativa de difusão cultural e acção comunitária”, inspirada no pensamento da encíclica papal, mas não se definindo como confessional. O regime também não gostou de mais este grupo e fechou-lhe as portas, selando o seu espólio, em 1968.
Durante a década, multiplicam-se as iniciativas de carácter cultural como as colecções da Moraes (Círculo do Humanismo Cristão e outras), a revista O Tempo e o Modo, os colóquios e a edição portuguesa da revista Concilium, o Centro Cultural de Cinema, os cadernos Gedoc (Grupos de Estudo, Documentação, Intercâmbio, Experiências), o Movimento de Renovação da Arte Religiosa. Umas mais efémeras que outras, todas vão contribuindo para o alargamento da consciência cívica e política de grupos cada vez alargados de cristãos e não cristãos.
A “invasão” da Nunciatura
Em 1967, um grupo de padres angolanos esteve para pedir asilo político ao Vaticano. Tinham sido deportados sete anos antes para o continente, onde permaneciam sob residência vigiada – entre eles, Joaquim Pinto de Andrade e os futuros bispos de Luanda e Lubango, Alexandre do Nascimento (1986-2001) e Manuel Fanklim da Costa (1986-1997). O objectivo do grupo era aproveitar a visita do Papa Paulo VI a Fátima, confluindo para Lisboa e entrando na nunciatura para chamar a atenção da comunidade internacional.
A acção falhou, apesar de tudo estar preparado: alguns deles tinham colocado, como condição, a aceitação de todos os deportados. E de início, de facto, todo o grupo concordara. À última hora, Alexandre do Nascimento resolveu recuar. Nem tudo se perdeu: o secretário do Papa recebeu, assinado por uma dúzia de responsáveis de diversos organismos, uma carta contra a situação que Portugal vivia.
Três anos antes, o Governo português entrara em conflito aberto com o Vaticano, a propósito da viagem do Papa Paulo VI à Índia, em 1964, considerada uma ofensa a Portugal, por causa da “invasão do Estado Português da Índia”. Mais uma vez, são proibidas notícias sobre o acontecimento. O Novidades acata as ordens e o episcopado também não protesta. Os católicos contestatários imprimem em Espanha e distribuem em todo o país o jornal Igreja Presente a informar sobre a visita papal à Índia.
A questão da Guerra Colonial aumentara os afrontamentos com o regime e as tensões com a hierarquia. Do apoio inicial que o país dera ao grito de Salazar “para Angola, rapidamente e em força”, muitos passaram, progressivamente, ao cansaço da guerra e à sua recusa. Os mortos e os feridos chegavam todos os dias e, apesar de escondidos o mais possível pelo regime, tornavam-se cada vez mais visíveis. Fátima tornou-se, nestes anos, o local para onde se vertia o sofrimento silencioso ou a esperança de um milagre que acabasse com o conflito armado que se arrastava.
As movimentações e tomadas de posição contra a Guerra Colonial são cada vez mais insistentes: padres estrangeiros escrevem aos bispos de Moçambique, em 1968; no mesmo ano, é preso o padre Felicidade Alves, pároco de Belém, Lisboa; um documento distribuído nas igrejas do Porto, em 1 de Janeiro de 1969, explica “Porquê o Dia Mundial da Paz” enquanto na capital 200 cristãos fazem uma vigília na Igreja de São Domingos contra a Guerra Colonial.
Em 1970, já governava Marcello Caetano, já D. António Ferreira Gomes regressara ao Porto, o padre Mário Oliveira, de Macieira da Lixa, é preso por se pronunciar contra a guerra. Pouco tempo depois, Paulo VI recebe, no Vaticano, os líderes nacionalistas da Guiné, Angola e Moçambique – mais um episódio a enfurecer o regime contra o Vaticano.
O BAC, Boletim Anti-Colonial, inicia entretanto a publicação clandestina, no final de 1972, logo depois da constituição do Movimento Justiça e Paz. Todas estas movimentações culminam com a vigília da Capela do Rato, em Lisboa, de 30 de Dezembro até 1 de Janeiro (Dia Mundial da Paz), de oração pela paz e protesto contra a guerra. E, se o 25 de Abril não tivesse entretanto acontecido, um grupo de militantes católicos – JEC, MJP – estava preparado para aparecerem progressivamente como objectores de consciência. O primeiro, José de Jesus Almeida, ex-seminarista, declara-se objector em fins de 1973.
Nas ainda colónias, há missionários expulsos em 1971 e 1972 – os Padres Brancos e dois espanhóis – por denunciarem massacres perpetrados pelas tropas portuguesas. Novo massacre, em Wiriyamu, ainda em 1972. No início de 1974, de novo no Dia Mundial da Paz, o bispo de Nampula, Manuel Vieira Pinto, faz a sua homilia sobre o tema “Repensar a guerra”. Onze padres dos Missionários Combonianos, que com ele trabalham, são expulsos de Moçambique. Logo a seguir, é o próprio bispo que recebe ordem de regresso à ainda metrópole, onde chega dia 14, onze dias antes do 25 de Abril. A reunião do MJP a que se aludia no início preparava o seu acolhimento.
No continente, o discurso dos bispos sobre as questões-chave – justiça, liberdade, Guerra Colonial – continuava a ser “vazio”, observa Alfredo Bruto da Costa, técnico de planeamento e professor universitário, “por contraste com o que vinha de Roma e de outros bispos estrangeiros”. Havia, na hierarquia de então, um problema de “convicções e outro de estratégia: alguns não estavam sintonizados com o regime mas, por razões de estratégia, não queriam ou não lhes convinha falar”.
Tensão e erosão
A Igreja chega a 24 de Abril de 1974 numa situação de “tensão e erosão”, diz o padre Peter Stilwell. Sectores “vitais como o clero estavam a ser objecto de uma grande sangria”. A geração de padres formada com o Concílio Vaticano II entrara em colisão frontal com a instituição. Em 1967, criara-se o Instituto Superior de Estudos Teológicos, e no Seminário dos Olivais surgira uma equipa de formadores – o cónego Abílio Cardoso, reitor, e Luís Moita, entre outros – que acaba por pedir a demissão, por não se ver confirmada na orientação que decidira. O cardeal, conta Luís Moita, ilude o confronto. Não discute as razões da demissão. Aceita-a e pergunta aos demissionários que tarefas pastorais querem exercer. O grupo dispersa-se.
Dos 130 seminaristas que havia nos Olivais, em 1965, restavam 12, em 1971. Na Guarda, onde se regista crise semelhante à de Lisboa, o seminário diocesano é mesmo obrigado a fechar por falta de gente.
À sangria do clero, junta-se a da própria Acção Católica (AC). JOC, JUC e JEC (Juventude Escolar Católica), tal como os correspondentes movimentos de adultos, deixam de ser estruturas de massas e passam a reunir pequenos grupos. O Grande Encontro da Juventude, de 1962, com o título “Os jovens escolhem Deus”, tinha sido uma tentativa de revitalizar a Acção Católica. Ficou-se pela intenção.
A AC também perde, depois – nota Bento Domingues – para outros grupos e modos de organização, situados à sua esquerda. E à direita, para novos movimentos de cariz mais espiritual como os Cursilhos de Cristandade.
Entram na ribalta, a reforçar as redes já existentes, novas gerações, ligadas sobretudo aos movimentos estudantis de Acção Católica, JEC e JUC (os universitários restringidos a Lisboa e Coimbra, a JEC com uma implantação mais diversificada no país), aos padres dominicanos (Bento Domingues, Luís de França, Augusto Matias), ao Graal e ao MJP, a plataforma que reuniria antigos e novos militantes. Os padres Alberto Neto (Lisboa) e Fernando Brito (Covilhã) tornam-se referências e elos, enquanto no Porto as comunidades do Padrão da Légua e da Serra do Pilar e, em Coimbra, o ainda Centro Académico da Democracia Cristã são polos de encontro fundamentais. E mais gente nova passava por grupos e actividades eclesiais: catequese, aulas de Religião e Moral, grupos de jovens paroquiais, Conferências dos Jovens de São Vicente de Paula.
A luta de resistência passiva, experimentada com a vigília da Capela do Rato de 1972 para 73, fora considerada válida e incrementá-la seria a via correcta, considera a maioria. Uma opinião não partilhada por alguns, mais radicais (Luís Moita, Teotónio Pereira), que consideravam chegada a hora de afrontar directamente a hierarquia e estabeleciam ligações às Brigadas Revolucionárias.
No Verão de 1973, um grupo de militantes da JEC – António Matos Ferreira, Almerindo Afonso, Ana Cordovil, Inês Cordovil, Joaquim Azevedo, João Bento, Jorge Wemans, Manuel Pinto e Rita Veiga – apoiados pelos padres António Janela, Armindo Garcia e Alberto Neto (Lisboa) e Alberto Azevedo (Braga), candidatam-se à direcção nacional, desafiando uma lista promovida pelo então assistente nacional, padre Vítor Feytor Pinto. A lista liderada por Matos Ferreira ganhou e, embora posteriormente não tenha sido reconhecida pelo episcopado, continuou a sua acção até ao 25 de Abril. Depois da Revolução, o episcopado português, sem qualquer explicação, viria a reconhecer de novo a equipa nacional da JEC.
Num campo de férias realizado em Peniche, em Agosto de 73, pela JUC (onde estavam José Pedro Castanheira e José Leitão, entre outros), o novo patriarca era interpelado pelos jovens: porque é que a hierarquia da Igreja não se distanciava da Guerra Colonial? O bispo de Lisboa viu-se numa situação de algum embaraço e, conta-se, esteve alguns anos para perceber que a JUC não estava “contra” a hierarquia. Meses mais tarde, a uma semana do 25 de Abril, o mesmo grupo da JUC de Lisboa preparou e divulgou um manifesto contra a guerra.
Passo importante para a convergência foi a constituição do MJP, nos finais de 1972, a que a vigília do Rato veio dar redobrada força. Eram sete os responsáveis – Manuela Silva, João Cordovil, António Castanheira, Augusto Matias, Luís de França, Luísa Teotónio Pereira, António Matos Ferreira. O objectivo era difundir informação que a censura não deixava passar. Na mensagem para o Dia da Paz de 1973, por exemplo, a referência ao direito à independência que o Papa fazia no seu texto foi proibida pelo lápis azul. O MJP copia o texto e distribui-o pelo país, o que repetirá com outros documentos.
A nível hierárquico, a substituição de Cerejeira pelo novo patriarca, António Ribeiro, dá-se “a tempo”, observa Bento Domingues. Evitou que D. António sofresse muitos choques e viria a permitir-lhe conquistar uma posição de equilíbrio, nos primeiros tempos do pós-25 de Abril, não deixando a Igreja cair em novas tentações anti-democráticas.
E depois do adeus?
O 25 de Abril de 74 veio quebrar toda a dinâmica organizativa que então existia. Os cristãos dividiram-se definitivamente em termos políticos. Aparecem os grupos de base “Libertar”, os Cristãos em Reflexão Permanente (Jardim Gonçalves, Luís de França, José Carlos de Sousa – que viria ser responsável pela Acção Pastoral do patriarcado), os Cristãos Pelo Socialismo (que incluía Maria da Conceição Moita, Nuno Teotónio Pereira, Catalina Pestana ou Fernando Belo, entre outros) e, já em 1975, o Centro de Reflexão Cristã (CRC), que volta a religar diversas sensibilidades e que reunia Bento Domingues, Luís de França, Manuela Silva ou Dimas de Almeida, por exemplo. Em termos políticos, muitos estavam no MES (Movimento de Esquerda Socialista), outros derivavam por diferentes partidos da esquerda e extrema-esquerda, alguns integraram-se no então Partido Popular Democrático (PPD-PSD).
Entre Maio e Setembro multiplicam-se assembleias de cristãos (Lisboa, Porto, Setúbal, Évora, padres de Braga). Chega a pedir-se a demissão colectiva dos bispos e o clero bracarense diz mesmo que a remodelação da sua diocese “terá de passar pelo afastamento dos seus responsáveis”. [Vinte anos depois, ainda havia nove dos 32 bispos em funções (residenciais e auxiliares) que já eram bispos antes do 25 de Abril.]
O 25 de Abril apanhara a Conferência Episcopal reunida em Fátima. A primeira reacção ainda é de um certo receio pelo evoluir dos acontecimentos. Depois, o episcopado arrisca e pede ao futuro bispo de Beja, Manuel Falcão, e ao padre jesuíta e filófoso Manuel Antunes que redijam uma carta pastoral sobre a nova situação política. Um ano antes, a propósito do 10º aniversário da Pacem in Terris, os bispos já se tinham demarcado de algumas posições do Governo de Caetano.
A Igreja tinha ganho pontos, “por alguns militantes terem tido a coragem da oposição”, observa o padre Peter Stilwell, professor da Faculdade de Teologia da UCP. Mas, oficialmente, tal nunca foi reconhecido, apesar de a Igreja dever a esses grupos de pessoas o facto de “não ter sido classificada de fascista”.
Paradoxalmente, os novos líderes da democracia – Mário Soares, Álvaro Cunhal – continuam a falar com a Igreja hierárquica, e não com a que militara contra o anterior regime. Ninguém estava interessado em reabrir a “questão religiosa” da I República.
Há mais pluralismo no interior da Igreja, mas muitas vezes isso acontece porque a vida democrática a tal obriga e não por convicções profundas. Cresceu o fenómeno das novas igrejas e outros grupos religiosos, que chega a preocupar e assustar também pessoas não ligadas à Igreja Católica. A dispersão, agora, chega de outros modos.
(Além das pessoas referidas, consultou-se a seguinte bibliografia: Cardeal Cerejeira – O Homem e a Obra, de Moreira das Neves, ed. Rei dos Livros; Documentos Pastorais 1967-1977, Conferência Episcopal Portuguesa; A Igreja e o Tempo, D. Manuel Vieira Pinto, ed. Ulmeiro; Católicos e Socialistas em Portugal 1875-1975, Augusto José Matias, ed. Instituto de Estudos para o Desenvolvimento; A Religião dos Portugueses, Bento Domingues, ed. Temas e Debates; Um Século de Cultura Católica em Portugal, separata da revista Laikos, do Secretariado Nacional do Apostolado dos Leigos; Revista Reflexão Cristã nº.s 46-47, 53 e 55 (textos de Bento Domingues, António Matos Ferreira e padre Manuel Clemente.)
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