No início, era a Uber. É preciso remontar a julho de 2014, quando não existia a denominação TVDE (transporte individual de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica) e o transporte de passageiros era exclusivamente assegurado pelo setor do taxi, até que o país foi introduzido a este tipo de serviço com a chegada da empresa norte-americana.
Na altura, estreava-se com o serviço de veículos de gama elevada, “UberBlack”, implementando pouco depois o “UberX”, mais económico e que se tornaria no serviço padrão. Seguiram-se então a espanhola Cabify em maio de 2016, a estónia Taxify, (agora Bolt), em janeiro de 2018 e a francesa Chauffeur Privé (que mudou o nome para Kapten) em setembro do mesmo ano.
Volvidos mais de cinco anos, entre a oposição dos táxis e o difícil parto de uma lei para regulamentar este novo tipo de serviços, o mercado português entrou numa fase de competição aguerrida. A Uber deixou de estar sozinha e 2020 começou com uma guerra de preços com vista a captar utilizadores e a reclamar uma maior fatia de mercado.
O primeiro “tiro” foi dado pela Uber, que no dia 2 deste mês optou por fazer uma redução das suas tarifas em 10% para as cidades de Lisboa, Porto, Coimbra, Aveiro, Braga, Guimarães e na região do Algarve, mantendo os preços no Funchal.
Quando surgiu em Portugal, foi noticiado que a Uber teria uma comissão de 20% sobre os ganhos dos motoristas, sendo que os preços, segundo informações veiculadas pela própria empresa eram estes: a tarifa base do serviço em outubro de 2015 era de 1€, cobrando 0,65€ por quilómetro e 0,10€ por minuto.
No entanto, a empresa norte-americana optou por cortar as tarifas em 10%, numa fase em que a comissão sobre os rendimentos dos motoristas a trabalhar com a sua plataforma subiu para 25%. Esta medida, porém, não ficou sem resposta, sendo que, alguns dias depois, também a Bolt decidiu reduzir os seus preços para os clientes, sendo que a comissão praticada é de 15%. Ambas as operadoras aproximaram-se assim da Kapten, que neste momento ainda mantém os preços mais baixos do mercado e pratica uma comissão de 18,45%, onde se inclui o IVA.
Assim, as três mantém a mesma tarifa mínima de 2,50€, sendo que a Uber é a empresa com os preços mais caros, mesmo após a descida: o seu preço base por viagem é de 0,90€, cobrando 0,59€ por quilómetro e 0,09€ por minuto. Estes são os preços que a operadora norte-americana pratica nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, assim como em cidades como Coimbra, Aveiro e Braga. Já no Algarve e na Madeira, os valores cobrados são mais altos.
Segue-se a Bolt, que tem a tarifa base de 0,84€, cobrando 0,55€ por quilómetro e 0,08€ por minuto. A empresa estónia, à semelhança da sua concorrente norte-americana, pratica estes preços em Lisboa, no Porto, em Coimbra e em Braga, mas não no Algarve, onde o custo para os clientes é mais elevado.
Por fim, a Kapten é a operadora que, no momento, pratica os valores mais baixos, segundo a sua própria tabela de preços: 0,80€ de tarifa base, somando-se 0,52€ por quilómetro e 0,08€ por minuto. Os preços cobrados são os mesmos para Lisboa, Porto, Braga e Guimarães, sendo que estas são as cidades onde a empresa francesa, para já, tem serviços.
Juntando-se a esta redução de preços, a Uber optou ainda por fazer uma promoção especial. Os utilizadores que receberam uma mensagem a divulgar o novo tarifário obtiveram mais tarde um código de desconto de 50% a ser usado em cinco viagens, com limite de 3,5€ por viagem. Já da parte da Bolt, o SAPO24 teve acesso a conversas na aplicação WhatsApp onde foram partilhados inúmeros códigos de desconto para usar na plataforma, mas que rapidamente foram inativados. Desconhece-se a natureza destes códigos, assim como a legalidade da sua partilha.
As decisões da Uber e da Bolt surgem numa fase em que o setor enfrenta a época baixa, sendo que os meses de janeiro e fevereiro representam tradicionalmente um declínio do volume de viagens. Por outro lado, o corte nas tarifas também pode ser entendido como uma forma de tornar os preços mais apelativos perante a concorrência da Kapten: em fevereiro de 2019, quando a empresa mudou de nome (chamava-se Chauffeur Privé) e expandiu as operações para o Porto, o seu diretor-geral em Portugal, Sérgio Pereira, explicitou que a plataforma cobraria “um valor até 30% abaixo das alternativas de mercado”.
No entanto, em declarações ao Expresso, a Uber rejeitou a ideia de que a baixa de tarifas teria como objetivo responder à concorrência. “A Uber não define estratégias com base nas decisões de concorrentes. O que nos guia, também em matéria de preços, é exclusivamente o interesse dos motoristas e dos utilizadores”, disse fonte da operadora ao semanário. A plataforma indicou ainda, num e-mail enviado à Agência Lusa, que os novos preços “vão tornar o serviço ainda mais acessível para utilizadores e, simultaneamente, melhorar os rendimentos de motoristas”, um equilíbrio “essencial para que a mobilidade partilhada possa ser uma alternativa efetiva ao carro particular e continue a ser uma oportunidade económica atraente para parceiros e motoristas”.
Em igual sentido, a Bolt foi esquiva quando questionada quanto às suas motivações para a redução dos preços, tendo justificado apenas que esta foi feita para “aumentar a rentabilidade, aumentando o número de viagens numa época em que tipicamente se verifica uma queda na procura".
Perante o mercado cada vez mais aguerrido entre as três operadoras, insta compreender qual delas é líder em Portugal. Todavia, não existem disponibilizados publicamente para mensurar essa vantagem, especialmente porque as operadoras pautam-se pela opacidade quanto aos seus resultados e números de utilizadores.
Das três, os últimos dados tornados públicos são os da Uber, que em novembro do ano passado, aquando à sua entrada na Madeira, anunciou que em Portugal já tinham sido realizados mais de 2,5 milhões de downloads da aplicação.
A empresa norte-americana, de resto, é entendida como a líder de mercado, sendo, neste momento, a operadora com maior expressividade no território nacional. Segundo a Uber, esta diz já estar em mais de 60 municípios, cobrindo “mais de 60% da população portuguesa, a maior cobertura do serviço no sul da Europa”, para além de já ter começado a apostar nos mercados da mobilidade suave (com as bicicletas JUMP) e da entrega de comida (com o sistema UberEats, que opera na capital e no Porto).
De resto, a sua aplicação é a mais popular no setor de mobilidade e viagens em Portugal, tanto na App Store da Apple (Bolt em quarto lugar, Kapten em sétimo) como na Google Play (Bolt encontra-se em terceiro lugar, Kapten em quinto). A este respeito, aliás, a própria concorrência admite ainda não estar ao nível da Uber. “Por agora, estamos a crescer muito depressa e queremos continuar focados nisso por mais alguns anos, até sermos líderes em Portugal. Isso ainda vai demorar alguns anos”, disse Markus Villig, fundador da Bolt, em entrevista ao Eco, em novembro do ano passado.
Uma coisa é certa, a crescente competitividade no setor já fez vítimas, tendo a Cabify acabado por encerrar o seu serviço em Portugal em novembro do ano passado. “Como resultado de um constante processo de análise das cidades em que operamos, tomámos a decisão estratégica de deixar de ter o nosso serviço operativo em Lisboa e Porto”, justificou a empresa, numa nota.
Um setor a sofrer “constantes atropelos”
A reação a esta redução de preços, porém, não tardou, e os motoristas da Uber e da Bolt organizaram marchas de protesto em Lisboa e no Porto nos dias 5 e 6 deste mês.
As razões para o descontentamento prendem-se, sobretudo, pela baixa das tarifas ter apanhado os profissionais de surpresa e, no caso da Uber, por esta redução ter sido feita sem alterar a percentagem de comissão que estes têm de dar à plataforma. Segundo um depoimento dado à Agência Lusa, os motoristas “receberam a indicação da [plataforma] Uber de que o preço pago por quilómetro iria baixar" cerca de "duas horas e meia depois” de terem sido "convocados para assinar um novo contrato".
"Além do facto de o preço do gasóleo e da manutenção dos carros ter aumentado, sentimo-nos também lesados porque essa diminuição foi feita horas depois de termos assinado um novo contrato e sem termos sido ouvidos", criticou Luís Oliveira, um dos manifestantes que se juntou na zona industrial do Porto no passado dia 7, sendo um profissional há três anos e meio a trabalhar na TVDE.
Às queixas de uma baixa de rendimentos, somam-se críticas quanto à manutenção dos custos inerentes à profissão, como o valor dos seguros automóveis, que rondam os 2.000 a 2.500 euros anuais, excluindo algumas cláusulas, nomeadamente a do veículo de substituição. “Eu funciono em regime autónomo, ou seja, sou eu quem paga o carro e o gasóleo semanalmente e com estes novos preços obriga-me a ter de fazer ainda mais horas para poder pagar este carro", denunciou Luís Oliveira.
A baixa das tarifas colocou também a nu outros problemas que afetam o setor. Com a decisão da Uber e da Bolt, foi criada uma petição online, lançada no passado dia 3 e que, até à data de publicação deste artigo, foi assinada por 2.600 pessoas.
Os signatários pedem a intervenção do Presidente da República, do Governo, dos deputados e dos partidos com assento parlamentar contra os “constantes atropelos” à lei para o setor da atividade de TVDE.
Entre os atropelos, criticam os preços das tarifas praticadas, estabelecidos pelas plataformas eletrónicas, que “alteram os valores (sempre baixando os preços) sem preocupação com a remuneração de cada parceiro/motorista”, tornando “insuportável os valores inerentes” à atividade.
Mas não só: o texto também alerta para um “crescimento muito significativo de viaturas que, por sua vez, torna muito difícil atingir uma faturação diária relevante”, pedindo a “limitação de entrada de novas viaturas para todas as plataformas a operar em Portugal” e pugna pelo aumento da idade máxima dos veículos de sete para 10 anos. Outro ponto controverso prende-se com “um número crescente de motoristas imigrantes que não falam a língua portuguesa”, o que, no entender dos subscritores “levanta dúvidas sobre a formação de motoristas”. “Se esta é dada em português, de que forma conseguem tirar a formação esses formandos?”, questiona-se na petição.
A alteração dos tarifários e subsequentes demonstrações de insatisfação de alguns profissionais do setor já levaram a Associação Nacional de Parceiros das Plataformas Alternativas de Transportes (ANPPAT) a reagir. Constituída para representar “empresas parceiras operadoras de transportes no sector TVDE em Portugal”, a entidade publicou no Facebook um comunicado onde diz estar a tentar apelar aos decisores políticos.
“No seguimento de vários situações que tem a vindo a ocorrer no sector TVDE, bem como as mais recentes relativas às reduções unilaterais de tarifários por parte dos Operadores de Plataforma, UBER e BOLT, a ANPPAT solicitou com carácter de urgência reuniões e audiências”, lê-se na publicação. A associação apela não só à 6ª Comissão de Economia, Inovação, Obras Públicas e Habitação, como aos deputados que a constituem, aos partidos políticos, ao IMT, à PSP e aos operadores, entre outros.
O SAPO24 fez um pedido de esclarecimento quanto à natureza e ao objetivo destes contactos, não tendo obtido, até à data, resposta da ANPPAT.
O presidente da ANPPAT, Miguel Colaço, já tinha dito à Agência Lusa em novembro do ano passado que passava pelo “caderno de encargos” da associação reunir-se com diversas entidades. Para além disso, outro objetivo assumido por Colaço passa pela criação de uma “associação representativa do setor”, para lidar com desafios com que este se prende, como a questão dos seguros.
Incentivos à produtividade são a solução das operadoras
Por forma a compensar a perda de ganhos para os motoristas, a Uber propôs um plano de incentivos personalizado para cada profissional. Segundo noticiou o ECO, o plano é temporário e tem como objetivo assegurar o mesmo rendimento médio que os motoristas auferiram nos últimos meses de 2019.
No entanto, conforme avança o jornal económico, estes incentivos vão ser dados com base no histórico de produtividade de cada motorista. A título de exemplo, um dos profissionais visados soube que, para receber entre 6 de janeiro e 2 de fevereiro os mesmos 388,49 euros por semana que obteve entre 18 de novembro a 15 de dezembro, a Uber exigiu “tempo online igual ou superior a 75 horas” semanais assim como, pelo menos, 47 viagens efetuadas. Já noutro caso, a plataforma pede 21 horas de trabalho e 24 viagens feitas para receber 162,24 euros ao fim de uma semana.
Ao ECO, a Uber garantiu que estes incentivos têm como objetivo “permitir que os motoristas que viajam com a aplicação experimentem os novos preços durante quatro semanas sem comprometer os seus rendimentos esperados”, dando garantias que “nas quatro semanas entre 6 de janeiro e 2 de fevereiro, todos os motoristas elegíveis irão receber os mesmos rendimentos que receberam nas quatro semanas entre 18 de novembro e 15 de dezembro, se fizerem uma utilização equivalente da aplicação da Uber nestes dois períodos”.
A medida acaba por também ter o efeito de incentivar os motoristas a usar a Uber e não as plataformas concorrentes para poderem cumprir a meta de horas de serviço. À Agência Lusa, empresa defendeu que “os motoristas podem escolher livremente estar ligados à aplicação, sendo que a Uber não impõe qualquer limitação nesse aspeto”, competindo-lhe “oferecer o melhor valor possível tanto a motoristas como utilizadores”, para poder “continuar a contar com a preferência de ambos”.
Já quanto aos pedidos de redução das comissões, a Uber, em resposta ao Observador, defendeu a manutenção do valor de 25%. “Acreditamos que os nossos preços estão alinhados com o valor do nosso serviço”, disse a fonte da empresa norte-americana, justificando que a sua comissão é compensada pelo “apoio personalizado”, pela “segurança” e por um “plano de proteção”. Este último trata-se de um seguro feito com a AXA.
Também a Bolt propôs “aumentar o investimento em bónus para os motoristas”, apesar de não adiantar de que forma vai fazê-lo.
Um percurso atribulado
Recorde-se que a entrada dos operadores de TVDE em Portugal não foi pacífica, sendo alvo de críticas de vários quadrantes, desde o campo político aos organismos reguladores, como o próprio Instituto da Mobilidade e Transportes (IMT). Mas, naturalmente, a maior resistência perante esta concorrência veio do setor do táxi, com a ANTRAL e a FPT a mover vários esforços para impedir a instalação definitiva destas plataformas em Portugal.
Em causa estava a suposta violação da lei dos transportes, que, à época, definia que este tipo de transporte de passageiros era da exclusiva responsabilidade dos táxis, considerando as vozes do setor que as operadoras não eram sujeitas ao mesmo escrutínio. "O táxi não pode concorrer com uma empresa que lhe faça concorrência desleal", disse, a propósito desta situação, Florêncio de Almeida, presidente da ANTRAL, ao SAPO24.
Se junto das instâncias legais foram feitas várias tentativas de impedir a operacionalização destas plataformas, nas ruas a contestação não foi menos dura, somando-se protestos dos taxistas em várias cidades do país durante mais de quatro anos. O clima de crispação e instabilidade foi perdurando, sendo que a relação entre motoristas de plataformas e de táxis não foi das melhores, com vários relatos de agressões a surgirem entre ambos, sobretudo na zona do aeroporto, ainda quando a Uber era a única a operar no mercado nacional.
O enquadramento legal das operadoras começou a ser pensado aquando a entrada da Uber no mercado nacional, mas este só veio a materializar-se em 2018, sob a forma da Lei 45/2018, conhecida pela “Lei Uber”. Esta foi a segunda iniciativa legislativa, depois do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, ter vetado um primeiro projeto.
Entrando em vigor a 1 de novembro desse ano, este documento constituiu um regime jurídico aplicável à atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica (TVDE). O diploma permitiu também um período transitório de quatro meses de adaptação aos operadores de plataformas, estando os que operam em Portugal todos legalizados.
Agora, para ser parceiro e poder ter automóveis ao serviço das plataformas, passou a ser obrigatório constituir empresa, pois o documento só permite a atividade a pessoas coletivas, também estas sujeitas a uma licença do IMT (válida por 10 anos) para poderem operar.
Também os motoristas (a título individual) começaram a ser obrigados por lei a ter a sua atividade certificada pelo IMT, depois de permanência obrigatória de uma formação de no mínimo de 50 horas, sendo que estão proibidos de estar mais de 10 horas por dia ao volante, independentemente da aplicação para a qual trabalhem.
Após regularização do setor, este viu uma explosão de novos participantes. Segundo dados divulgados pelo IMT relativos a 15 de outubro do ano passado, nessa data estavam certificados 18.265 motoristas, enquanto em 1 de março desse mesmo ano estavam aptos apenas 5.929 profissionais. Para além do incremento do número de motoristas, o setor também viu nascer nos primeiros nove meses de 2019 (até 30 de setembro) mais de três mil empresas (3.209), que pediram o licenciamento de operador de TVDE (empresas que trabalham para as plataformas).
Apesar deste crescimento, há problemas que permanecem, e não só os acima denunciados pela petição em curso. A promulgação da legislação não sanou por completo os diferendos com o setor do taxi, tanto que os seus profissionais tentaram até ao limite evitar que esta entrasse em vigor, procurando levar o diploma ao Tribunal Constitucional, sem sucesso.
Em setembro do ano passado, o setor protagonizou o seu quarto grande protesto contra estas plataformas de transporte, parando entre 19 e 26 de setembro. Ao fim destes oito dias de paragem nas cidades de Lisboa, Porto e Faro, as associações representativas do setor decidiram desmobilizar os protestos, depois de o PS se disponibilizar para propor a transferência da regulação do número de carros ao serviço das plataformas para as autarquias, mas tal medida ainda não foi concretizada.
O SAPO24 tentou contactar a Uber e a Bolt quanto à sua nova estratégia de preços, assim como quanto aos seus planos de incentivos, não tendo obtido respostas até à data de publicação.
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