A respiração de Jair ainda é ofegante. Infetado com covid-19, o homem de 40 anos passou apenas uma noite no hospital, porque foi selecionado pela Unidade de Hospitalização Domiciliária (UHD) do Hospital Garcia de Orta para receber cuidados em casa.
O cheiro a bolo no forno adoça o cenário forçosamente desinfetante do apartamento no Seixal. Na soleira da porta, a médica Cláudia Viegas e o enfermeiro Filipe Dias equipam-se para ver Jair e recordam que já o fizeram em sítios mais improváveis e sob temperaturas mais elevadas.
Ano e meio de pandemia volvido, já têm “alguns automatismos”, mas não escondem que será “um momento de grande felicidade” quando não tiverem de se “mascarar”.
Além de Jair, outros quatro doentes beneficiavam da hipótese de serem observados em casa na quarta-feira, dia em que a Lusa acompanhou uma equipa da UHD, numa “visita” que durou cerca de meia hora.
Habitualmente, quatro equipas da UHD saem diariamente para cuidar doentes em casa. O binómio médico/a+enfermeiro/a que compõe cada equipa “é mais poderoso” na UHD do que na enfermaria, assinala Vitória Cunha, médica coordenadora da unidade, explicando que é uma dupla que trabalha ao estilo do MacGyver, protagonista de uma série de televisão conhecido por se desenrascar perante qualquer situação.
Criada em 2015, a unidade pioneira do Garcia de Orta (atualmente, 34 hospitais do Serviço Nacional de Saúde já oferecem hospitalização domiciliária, apenas dois não o fazem ainda) começou “devagarinho e a apalpar terreno”, com “uns cinco doentes ligeiros e uma equipa pequena”, mas foi “crescendo e aumentando o número de camas”.
Hoje, a “resistência” e a “desconfiança” dos outros serviços do hospital são menores, mas “há sempre uns velhos do Restelo”, aponta Vitória Cunha, sublinhando que os internos que a UHD recebe vão disseminando “as vantagens” desta opção.
Em média, a UHD presta cuidados a “cinco a seis” doentes por dia, sendo as insuficiências cardíacas, pneumonias, infeções urinárias e de pele as patologias mais frequentes.
Desde março de 2020, a unidade já assistiu mais de 150 doentes covid (120 só neste ano) e realizou mais de 1.200 consultas.
“Conseguimos ir até às 30 vagas, sendo que chegámos a ter 20 doentes covid internados, na fase pior”, detalha Vitória Cunha.
O enfermeiro Filipe Dias pede um pacote de arroz, para sugerir mais um exercício de reabilitação a Jair. Coloca-o sobre o diafragma e pede-lhe para inspirar pelo nariz e expirar pela boca, enquanto levanta os braços. A ideia é sugerir exercícios que os doentes possam fazer sozinhos, dado que, neste contexto, os profissionais de saúde correm mais riscos ao acompanhá-los.
“O doente com infeção pelo novo coronavírus, geralmente, precisa de muita reabilitação respiratória”, recorda, realçando que, se esta for feita, “os doentes recuperam mais rápido e as sequelas do covid não são tão graves como poderiam ser”.
Jair é supervisionado por um sistema de telemonitorização, desenvolvido antes da pandemia, que permite o acompanhamento remoto do doente e, assim, manter a proximidade diminuindo os contactos.
A médica Cláudia Viegas anota os registos do dia, satisfeita com a evolução do doente. Jair é “um senhor saudável, sem nenhuma patologia de especial” e que, por isso, “pôde ter uma alta mais precoce e continuar o seu internamento em casa, com segurança, utilizando o sistema de telemonitorização”.
Terminada a consulta, Jair diz à Lusa que só encontra vantagens em receber cuidados em casa, desde logo porque, apesar de estar em isolamento, está perto da família.
As duas filhas estão fechadas no seu quarto e Adriane, a mulher-mãe, vai atendendo a umas e a outro, e ainda à cadela e à gata. “Não dá para fazer mais nada”, reconhece, assinalando que “o único problema” é a casa-de-banho única, que tem de estar sempre a desinfetar.
Jair sente-se “muito” acompanhado pela UHD. “Estão sempre a ligar, vêm uma a duas vezes por dia”, relata, satisfeito. “Pelo menos em casa é mais tranquilo”, diz, assumindo o efeito psicológico.
“A proximidade com o doente é incrivelmente diferente e muito maior”, destaca Vitória Cunha.
“Muitas vezes passámos meia hora, uma hora na casa dos doentes e estamos exclusivamente dedicados a eles. Naquele momento, não temos mais ninguém que nos disperse a atenção”, diferencia.
“Não são eles que invadem o hospital, é o hospital que invade a casa dos doentes”, realça, rematando: “Sem dúvida, é muito mais humanizado. Estamos mais próximos, em todos os sentidos, conseguimos uma maior educação para a saúde, conseguimos envolver a família, responsabilizar a família e o doente de uma forma muito diferente daquilo que conseguimos fazer aqui [no hospital], em especial nos tempos covid.”
Além disso, acrescenta, quando se tem acesso a casa do doente, é possível perceber por que razão “descompensa” ou vai recorrentemente ao hospital.
Os doentes ficam “mais satisfeitos”, assegura, destacando a diminuição de infeções hospitalares e sublinhando vantagens para os idosos, que podem estranhar o ambiente hospitalar e ficar “desorientados”.
São nove da manhã e a mesa redonda onde tudo começa, diariamente, já está cheia de papéis, com quadros e gráficos que vão ser assinalados com marcadores de várias cores. Em redor, vários computadores pequenos, um maior, cacifos e pastas de arquivo.
Na sala da Unidade de Hospitalização Domiciliária do Hospital Garcia de Orta, uma equipa de uma dezena de médicos e enfermeiros, que trabalha 7 dias por semana, 24 horas por dia, analisa o cenário e divide tarefas, tentando otimizar o tempo.
Na quarta-feira, dia em que a Lusa acompanhou os trabalhos, 15 doentes dos concelhos de Almada e Seixal estavam a receber tratamento em casa e seriam partilhados consoante as necessidades e a área geográfica. As novas admissões seriam analisadas depois.
O “passa-palavra” tem resultado numa média de três doentes novos por dia. “Já chegam à urgência e pedem para nos chamar”, conta Fernando Palhim, enfermeiro coordenador da UHD, admitindo que “é complicado” quando se tem de dizer às pessoas que “não é possível” ficarem em casa a receber cuidados.
Em cinco anos, a UHD do Garcia de Orta já tratou dois mil doentes, que, em média, ficaram “menos um dia” internados do que se estivessem numa enfermaria, assinala Francisca Delerue, diretora do Serviço de Medicina.
A nível nacional, a hospitalização domiciliária acompanhou 2.281 doentes no primeiro semestre de 2021 e 4.830 doentes em 2020 (um crescimento face aos 3.000 de 2019).
Estes números — salienta Vitória Cunha — mostram que a UHD já não é uma alternativa, “é uma modalidade de internamento”.
Desde 2015, ano em que o Garcia de Orta deu o pontapé de saída nesta valência, doze mil doentes foram tratados em casa, em todo o país, o que “corresponde a um hospital com 250 camas” — “isto para quem duvida dos custos…”, atira Francisca Delerue.
“Temos os hospitais sobrelotados. Os hospitais têm de ficar só com os doentes agudos. Os doentes que podem ser tratados em casa têm de ser tratados em casa”, sustenta a fundadora da unidade, realçando que a UHD “é sobretudo vantajosa para os doentes”.
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