Sanches Osório está "chocado" com os tempos que correm. Mas não é de agora. Licenciado em Engenharia Militar e também em Direito, foi um dos seis oficiais organizadores do golpe de Estado que na madrugada de 25 de Abril ocupou o Posto de Comando do MFA, na Pontinha. Mas diz que a História se encarregou de ir alterando os factos de tal forma que às vezes se pergunta se alguma vez participou na revolução.
Fez a Guerra no Ultramar, onde liderou uma companhia de 400 homens, em Angola, foi secretário-geral do Partido da Democracia Cristã, porta-voz da Junta de Salvação Nacional e ministro da Comunicação Social. Foi expulso e reintegrado nas Forças Armadas e deputado à Assembleia da República, primeiro pelo CDS, depois como independente.
Fala dos seus pontos de revolta de hoje: identidade de género, casamento gay, eutanásia, reestruturação das Forças Armadas. Não acredita que alguma coisa se resolva com os atuais partidos políticos ou, pelo menos, com quem está à frente deles. "Este governo do PS não presta", "o PSD é um logro e devia desaparecer", "a Iniciativa Liberal é individualista" e "o PCP é... o PCP".
Já apoiou Manuel Alegre, votou em Marisa Matias e militou no CDS. Agora defende o Chega, que "diz o que toda a gente pensa, mas não tem coragem de dizer".
Recebeu o SAPO 24 em sua casa, nas Avenidas Novas, mesmo em frente ao café onde se cruza com Catarina Martins ou Manuel Maria Carrilho e bem perto da Barbearia Araújo, já na terceira geração, onde através do barbeiro troca recados com Daniel Oliveira. Uma Lisboa onde os jovens passeiam cães, enquanto os velhos são passeados por imigrantes. "Velhos e cães ao mesmo nível", diz.
Antes de iniciar a conversa, José Eduardo Sanches Osório recorda algumas etapas eternizadas pelos arquivos da RTP, como a sua condecoração com a grã-cruz da Ordem da Liberdade, em 1982, o anúncio, enquanto porta-voz da Junta de Salvação Nacional, do Primeiro Governo Provisório - "estava tudo cheio de medo do que aí viria" -, a revelação do projeto de lei de Imprensa, como ministro da Comunicação Social, ou a participação no programa "Travessa do Cotovelo", desta vez sobre as diferenças entre a esquerda e a direita . "A Rita Ferro escolheu-me para ser o representante da extrema-direita, mas abri as hostilidades dizendo que votei sempre no Partido Socialista. Estraguei tudo [ri]". Estávamos em 2001.
E hoje, passados 49 anos sobre a revolução dos cravos, o que mudou em Portugal?
Hoje, para todos, do presidente da República à Comunicação Social, eu, José Eduardo Sanches Osório, sou xenófobo, soberanista, homofóbico, racista
Se lhe perguntasse hoje pelas diferenças entre a esquerda e a direita qual seria a sua resposta?
Hoje, para todos, do presidente da República à Comunicação Social, eu, José Eduardo Sanches Osório, sou xenófobo, soberanista, homofóbico, racista.
E não é?
Porque é que acha que sou?
O PSD devia desaparecer. Porque os social-democratas estão no Partido Socialista
Não acho nada. Fiz-lhe uma pergunta.
O único patriota admitido, neste momento, nesta pobre União Europeia é Zelensky. Porque eu, português, não posso defender a pátria. Por exemplo, neste momento a solução portuguesa é uma espécie de caldeirada. O presidente Lula vem a Portugal no 25 de Abril e a solução é pô-lo na introdução. Depois tomamos café e, então, é a sessão solene do 25 de Abril. Isto é uma miscelânea à portuguesa.
E que partido político consubstancia esta miscelânea à portuguesa? Um partido que se intitula social-democrata, que, no contexto europeu, pertence ao Partido Popular Europeu, que agrega a direita das democracias cristãs. Isto só é possível em Portugal, onde o Partido Social Democrata é coisa nenhuma - é o herdeiro directo da União Nacional, da Acção Nacional Popular, do Partido Popular Democrático, do Partido Social Democrata. Onde esta evolução se vê bem e pode ser analisada é na Madeira. Portanto, na minha modestíssima opinião, o PSD devia desaparecer. Porque os social-democratas estão no Partido Socialista. Este foi um arranjo à portuguesa.
Agora já não se pode ser de direita. Todos aqueles que pertenceram ao ELP - Exército de Libertação de Portugal agora são social-democratas e de esquerda. Eu, que pertenci ao MDLP - Movimento Democrático de Libertação de Portugal, sou terrorista, sou de extrema-direita, sou todas essas coisas. Porque continuo a pensar que nascemos homens ou mulheres e não há terceiras vias, a não ser uns casos especialíssimos, numa altura em que o Parlamento está a discutir exatamente a ideologia de género - ou seja, se eu quiser passar a chamar-me Antónia Maria, você tem de respeitar. Sou homem segunda, terça e quarta, sexta e sábado sou mulher. Isto é um absurdo e acho perigosíssimo, porque é a dissolução da civilização judaico-cristão.
Antes de avançar neste tema: vai estar na Assembleia da República, onde os militares serão homenageados?
Vou lá, mas não é por causa da revolução. Vou lá porque sou da direcção da Associação dos Ex-deputados da Assembleia da República, e é a esse título que fui convidado. O que é uma pedra no sapato da Associação 25 de Abril.
Mas, em síntese, será assim: no dia 25 de Abril os militares vão ser hipocritamente homenageados no Parlamento. Todos os partidos políticos saúdam os militares e nas galerias alguns militares levantam-se respondendo à saudação. Hipocrisia pura. O que a história vai dizer da revolução é o seguinte: os militares fizeram um golpe de Estado. Ponto. O país entrou em anarquia. Veio o Dr. Mário Soares e estabeleceu a democracia. Com o Dr. Sá Carneiro levaram o país para as comunidades económicas europeias. Ponto final. E os civis odeiam os militares.
O que a história vai dizer da revolução é o seguinte: os militares fizeram um golpe de Estado. Ponto. O país entrou em anarquia
Por que motivo diz que a homenagem é hipócrita?
Porque todos os partidos, com excepção do PC, votaram e aplaudiram a extinção do Serviço Militar Obrigatório. O que é que se arranjou com isso? O pessoal de Cascais nasce vive e morre em Cascais e não sabe que existe Miranda do Duro, não sabe que existe Samardã e a Amareleja. O que se conseguia com o Serviço Militar Obrigatório era explicar aos jovens que Portugal existe. E que há uns tipos no norte que chamam ao cadeado aloquete e ao refogado estrugido. E que quando passam a ferro brunem.
E porque é que os civis odeiam os militares?
Porque não percebem para que servem as Forças Armadas. Um professor de História que está na moda, António José Telo [professor catedrático de História na Academia Militar] descreve o papel das Forças Armadas como sendo uma ONG [Organização Não Governamental]: apaga incêndios, dá vacinas, trata doentes. Pelo amor de Deus, para isso há outras organizações muito mais baratas. Mas depois todos acham que a Rússia deve ser arrasada. E os generais respondem: mas então temos de preparar a nossa sociedade para mandar homens combater na Ucrânia. Está a ver? É por isso que os civis odeiam os militares. Mas há sempre uns licenciados e doutores em Ciência Política a dizer uma bocas sobre a guerra. E depois acham que os generais são atrasados mentais. Pode haver um outro que vende a banha da cobra que estica e não dobra, mas isso é humano. A maioria sabe do que fala.
Uma guerra começa sempre como a anterior acabou. Portanto, vai haver um conflito nuclear
Consegue analisar esta guerra e perceber como vai evoluir ou no que vai dar?
No que vai dar não sei. Mas o que sei, e estudei isso em polemologia, é que uma guerra começa sempre como a anterior acabou. Desde os gregos que é assim. E os contendores usam todos os meios ao seu dispor. Portanto, vai haver um conflito nuclear. É uma constatação baseada na história.
Os americanos - porque isto é um conflito entre a América e a China, e a Europa não conta, porque não existe, não tem exército, não tem diplomacia (a diplomacia só existe se tiver força por trás) -, estão a dar dinheiro à Ucrânia. Mas se aparecer um presidente americano a dizer que não dá mais dinheiro, a Ucrânia acaba no dia seguinte, porque a Europa não está disposta a pagar.
Devia haver um exército europeu?
Sempre achei que sim. Agora, não é realista, pois se a União Europeia não se entende para comprar munições.
Em breve será apresentado pelo governo o novo conceito estratégico de defesa nacional. Disse há pouco que as Forças Armadas...
Não existem. Não existem porque o poder político não quer que existam. Ou não tem querido. Veja quem é nomeado ministro da Defesa; com excepção de um engenheiro do Porto, nomeado pelo PSD [Carlos Brito], que esteve dois meses [5 de Janeiro e 5 de Março de 1990] e foi embora, porque lhe fizeram um briefing com todos os éfes, érres e ipsílons que o deixou aparvalhado e foi honesto, todos os outros não percebem nada do assunto, mas acham que percebem. Há mais generais do que soldados. E não têm material. Se meter na cabeça que os EUA, do bunker da Casa Branca, dirigiram um ataque a Bin Laden, agora pense nos militares portugueses com G3 com 40 anos e que não sabem ler nem escrever nem contar.
Temos problemas de recrutamento, também. Como se resolvem?
Antes havia a defesa da pátria. Se a pátria não existe, vão defender o quê? Depois, defender a pátria na Amareleja ou na fronteira de Portugal é uma coisa, defender a pátria no Mali é outra. Se não pagar aos tipos que vão para o Mali, eles não vão. Antes da Revolução Francesa o rei não podia fazer a guerra a menos que tivesse muito dinheiro. Só depois é que disseram que era serviço à pátria, não se pagava nada a ninguém. E agora estamos no individualismo total, por isso é que a Iniciativa Liberal acha que tem de mandar embora os todos os funcionários públicos. Não há noção de bem comum.
Voltemos então aos valores que o apoquentam. As civilizações evoluem, não?
Não digo que não. Só que, citando o Papa Bento XVI num livro interessantíssimo chamado "Verdade e tolerância", uma coisa é eu tolerar todas as religiões e outros pensamentos, outra é abdicar da verdade. E, como católico, tenho a verdade. Numa república laica, como é a nossa, os deputados à Assembleia da República rejeitaram a inclusão do nome de Deus na Constituição. Os deputados da Assembleia Nacional, do tempo da ditadura, fizeram idêntica rejeição. Mas a evocação de Deus em Inglaterra era, agora não sei, importante. Nos Estados Unidos é importante. Em Portugal não. Portugal é um país ateu, agnóstico, anti-clerical, como se está a ver.
Está a falar por causa da questão da pedofilia na Igreja?
Sim, que é criminoso, nojento, uma coisa impensável. Mas agora há acusações de assédio sexual ao Boaventura Sousa Santos e toda a esquerda duvida, toda a esquerda acha que ele é um fenómeno e tem esses problemas, coitado. Em relação aos católicos, aqui-d'el-rei, devem ser condenados já, sem julgamento e sem presunção de inocência e, sobretudo, sem contraditório e sem prescrição.
Note-se que em 1977, e li isto na "Revue de deux mondes", que cita o "Le monde", de esquerda, insuspeito, publicaram-se petições contra a idade de consentimento, endereçadas ao parlamento francês. E assinadas por quem? Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Foucault. Nunca pediram desculpas a ninguém e ninguém lhes pediu satisfações. Sejamos sensatos, há um direito penal. O que se pretende aqui é atingir a Igreja Católica. E o que acho interessantíssimo é os portugueses católicos acharem ótimo que seja o professor Daniel Sampaio a dar a benção à nomeação dos bispos ou dos párocos. Esta comissão e este estado de coisas fez mais contra a religião católica do que o célebre Afonso Costa.
De novo o Chega: há uma contradição entre o homem que quis estabelecer a democracia e o que agora vota num partido que muitos consideram anti-democrático?
Querem fazer com o Chega, um partido democrático, a mesma coisa que o Estado Novo quis fazer do Partido Comunista.
O que diz da qualidade dos argumentos apresentados para fundamentar propostas na Assembleia da República?
Oiça, fui durante dois ou três anos deputado, primeiro eleito por Lisboa, depois por Santarém. Num grupo parlamentar não fala quem quer. Ou seja, teoricamente fala quem pede a palavra, mas se não diz aquilo que está estabelecido pela direção do grupo parlamentar tem de se calar. Uma experiência minha, pessoalíssima: o PC propôs um voto de saudação à Maria Lamas. Eu era deputado pelo CDS, pedi a palavra e juntei mais uns argumentos a favor da Maria Lamas. O que aconteceu? O presidente do meu grupo parlamentar pediu meia hora de intervalo e reuniu-se para me descompor e para me aconselhar a abster-me na votação. Disse não, ia votar a favor. "Se me querem expulsar, expulsem-me".
Votei a favor e fiz um requerimento à mesa para passar a deputado independente. Passei a independente e, qual era o estatuto na altura? Era ter lugar numa cadeira e direito ao uso das casas-de-banho e dos corredores. E pronto. Ora isto é uma coisa abstrusa. Mas é assim que os nossos partidos funcionam.
Por exemplo, não percebo como é que ninguém se lembrou de uma coisa que acho anormal. Um cidadão que não se apresentou às eleições para a Assembleia da República, não foi eleito, manda em não sei quantos deputados. É o caso de Montenegro. Não foi eleito e dá ordens aos deputados. E os jornalistas, em vez de perguntarem coisas ao presidente do grupo parlamentar ou aos deputados, perguntam ao Montenegro. Se estamos assim, estamos num regime totalitário. Que isso se passe no PC, a gente sabe que é assim.
Como é possível, no caso da eutanásia, por exemplo, um grupo parlamentar dizer aos deputados para votarem em consciência? E, se não sei quem são os deputados, como posso ter acesso à sua consciência? Não faço a menor ideia. É o secretário-geral ou o presidente do partido que decide quem é quem. A lei tem de ser modificada, como é óbvio e necessário. Por isso há um artigo do professor Paulo Otero sobre a revisão constitucional de 1997, era presidente da Comissão de Revisão Constitucional o deputado Vital Moreira, a falar numa revisão soviética da constituição. Com toda a razão. Os dois chefes partidários resolveram entre si e Vital Moreira demitiu-se.
Quando passei a deputado independente cruzei-me com Vital Moreira nos passos perdidos e ficámos a falar junto ao elevador. Disse-me para não me escandalizar com as descomposturas do grupo parlamentar porque ele, deputado do PC, todos os dias levava descomposturas. Um tipo do CDS estava a chegar, ainda do elevador, e dá de caras comigo a falar amigavelmente com Vital Moreira. Ficou desencorajado: "Ah isto é assim, vou-me embora". E foi. É a mentalidade.
O Partido Social Democrata é um logro. Agora toda a gente pensa que não tem ideologia; nunca teve, porque é que há-de ter agora? Estão sempre em crise porque não sabem o que querem
Já vi que gosta muito de Montenegro e do PSD. Porquê?
O Partido Social Democrata é um logro, acho que o PSD devia desaparecer. Agora toda a gente pensa que não tem ideologia; nunca teve, porque é que há-de ter agora? Estão sempre em crise porque não sabem o que querem.
Nuno Rodrigues dos Santos, um dos fundadores do PPD, teve uma frase famosíssima numa dessas crises do partido, em que veio muita gente do norte. Ele tinha feito uma traqueostomia, falava num tom rouco [imita]: "Do norte? Deixa-os vir, quando cá chegarem ficam do sul". E pronto, é esta a situação.
Montenegro disse há dias dias que não queria num governo dele oportunistas, xenófobos, homofóbicos, o discurso do costume. Mas há isso tudo em todos os partidos. Dizem que o Chega só quer o poder. Pergunto: então e os outros, o que querem? Acho isto uma tontaria. Só que a sociedade portuguesa em 2023 está muito mais preocupada com o Ronaldo e com as facadas. Portugal dissolveu-se.
O Dr. Mário Soares percebeu isso muito antes de nós, porque quando na década de 80 se levantou o problema do iberismo - que é um problema que se levanta ciclicamente -, disse que era uma discussão sem sentido, um problema que não existe, porque estamos todos na União Europeia. Com toda a razão. Interessa muito mais ao rei de Espanha ter aqui um alcaide que trata das facadas.
A restauração foi um problema de cento e tal fidalgos, o resto do povo estava, como actualmente, a ver de onde vinham mais subsídios. E os fidalgos andavam entre Lisboa e Madrid. Uns revoltaram-se e os outros foram atrás. Revolução a sério foi em 1385, depois disso não tivemos mais revoluções.
Aquilo a que assisto é que a geração mais nova tem cães e vai passear os cães. A minha geração é passeada por funcionários que em vez de passearem o cão passeiam o velho (...) Os velhos estão ao nível dos cães, é este o estado da sociedade
Falou na eutanásia e sempre que falo consigo fala nos velhos. É uma questão que o aflige?
É uma coisa que me choca imenso e sobre a qual tenho reflectido: não sabemos o que havemos de fazer dos velhos. Portanto, a solução mais simples e racional é matá-los, daí a lei da eutanásia. Porque aquilo a que assisto é que a geração mais nova tem cães e vai passear os cães. A minha geração é passeada por funcionários que em vez de passearem o cão passeiam o velho, o velho que está numa residência ou em casa, mas já não se pode mexer e ainda tem uma reforma que dá direito a ter uma funcionária que o leve a passear. Portanto, aqui no bairro das Avenidas Novas, o que vê a esta hora são imigrantes ilegais, de Cabo Verde, de Angola ou do Brasil, a passear os velhos. E uma geração mais nova a passear os cães. Os velhos estão ao nível dos cães, é este o estado da sociedade.
Mas estou preocupado com isso, porque não quero que me matem. Agora a ideia é dizer que tenho direito a morrer, e depois vão dizer que tenho o dever de me matar, porque estou a sair muito caro ao erário público, que gasta imenso dinheiro a manter-me vivo. Portanto, tenho o dever, em prol do bem comum, de ser assistido para me suicidar. E ao mesmo tempo que isto acontece, ou que vai acontecer, tem gente a pensar e a fazer congressos sobre o suicídio e a prevenção do suicídio, o que é paradoxal.
Aproveito para lhe perguntar se gosta desta Lisboa, se há um antes e um depois de Medina ou de Moedas?
Gosto. Nasci em Lisboa na maternidade Alfredo da Costa. O Alfredo da Costa, por acaso, era de Goa, da escola de Goa. E os goeses sempre foram uns tipos que se distinguiram na sociedade portuguesa. Foi preciso vir o António Costa para o governo para dizer que era o primeiro indiano no governo. Vá ao Supremo Tribunal de Justiça e há décadas que tem indianos por uma pá velha. Não vamos brincar com as coisas.
No café em frente há uma reentrância, uma espécie de jardim, e aí mora a Catarina Martins, que vem tomar café aqui na Flôr das Avenidas, onde está também o Manuel Carrilho, como estou eu. Fiz política com o pai do Carrilho, que era o representante da Democracia Cristã em Viseu.
O Daniel Oliveira também mora aqui. Acho óptimo, e deve haver andares vagos nas vizinhança dele, ponham lá ciganos a fazer ligações diretas e a plantar hortas na banheira que o tipo fica satisfeitíssimo. E vem passear o cão, também. Mas deixo-lhe recados na barbearia do senhor Araújo (o fundador, já vai na terceira geração), onde ele corta o cabelo e eu também. Através do barbeiro vou dando estas bocas.
Os meus pais moravam em Campo de Ourique, fui baptizado na igreja de Nossa Senhora das Dores, não havia Santo Condestável. Vivi no Jardim da Estrela e ainda frequentei o Liceu Pedro Nunes uma semana. Os meus filhos, com exceção de uma, que nasceu em Angola, nasceram no Hospital Militar.
Porquê a carreira militar?
Os meus avós eram militares, os meus trisavós de um lado e doutro eram militares, os meus tetravós eram militares. Em Goa. O meu pai nasceu em Pangim, a minha mãe em Luanda. O que queria que eu fosse senão militar?
Quanto tempo esteve em Angola?
Dois anos e uns meses, uma comissão de serviço. Fez no dia 15 de Abril 56 anos que embarquei para Angola, por acaso no mesmo barco que o Vítor Alves. Eu era oficial de engenharia e comandava uma zona desde Teixeira de Sousa até Nova Lisboa, pelo caminho-de-ferro até à fronteira do sul, uma coisa que é duas ou três vezes Portugal. E eu com 27 anos comandava 400 homens. Espantoso, mas foi assim.
Eram miúdos a cuidar de miúdos.
Mas lá cuidámos. Não me aconteceu nada de especial, andei a construir coisas e só tive uma emboscada, em que não me aconteceu coisa nenhuma a não ser perder o chapéu - porque caí com a onda de choque. Isto foi ao fim da tarde e estivemos a noite inteira dois capitães a chorar no ombro um do outro, com um tipo morto que, aparentemente, não tinha nada, mas que por dentro estava desfeito, e outro a morrer. Mas o helicóptero só podia vir no dia seguinte e nós só podíamos dar soro e consolar, uma coisa um bocado complicada.
Na altura fui desarmar bombas da Força Aérea, porque houve bombas que não explodiram e, para não serem usadas contra nós, era preciso destruí-las ou desarmá-las. E eu, como oficial de engenharia, tinha essa especialidade.
Em 67, quando regressei, pediram-me para voltar ir desarmar umas minas. É uma coisa hierárquica complicada, eu estava a comandar, mas dependia de Luanda. E mandei um rádio para Luanda a dizer que ia nesta missão. De lá o meu comandante disse: "Não vais. Os tipos que puseram as minas que vão lá tirá-las". E não fui, foi uma sorte.
A minha filha nasceu na maternidade dos pretos, com uma parteira que estava a fazer tricô. E eu, que já tinha dois filhos, reclamava por alguma ajuda. E ela dizia com um ar simpático: "Não é preciso, eles é que nascem". No nascimento uma auxiliar pedia-lhe: "Domingas, dá-me uma compressa". E ela nunca mais. Chamada à atenção diz: "Eu estou com pressa, mas não sei o que quer" [ri]. Mas esta minha filha teve uma disenteria e salvou-se naquela maternidade.
Chegou a ser expulso das Forças Armadas e tem uma história engraçada sobre alguém que lhe perguntou o que era ao major Sanches Osório. Pode contar?
Quando regressei a Portugal depois do exílio não tinha emprego e era um criminoso, tinha sido expulso das Forças Armadas por decisão do Conselho da Revolução, por causa do 11 de Março [tentativa de golpe de Estado dirigida por António de Spínola]. E fui a uma entrevista numa empresa de construção civil. A certa altura o dono da empresa pergunta: "O que é ao major Sanches Osório?" e eu respondo: "O próprio". Claro, nunca mais ouvi nada da empresa ou do emprego.
Engraçado, porque na minha nota de assento está escrito que fui condecorado com medalha de prata por comportamento exemplar e também que fui readmitido nas Forças Armadas em 1977, mas não está escrito que fui expulso, porque a data da condecoração é muito próxima da da expulsão.
Vamos voltar aos valores. O que mais o preocupa?
Os seus bisnetos vão ser mestiços.
Talvez.
Não é talvez, é de certeza. Se vai para Inglaterra, tem um primeiro-ministro indiano, na Escócia tem um primeiro-ministro muçulmano. O que é isto?
Se calhar, Roma vai passar a ser em Xangai, algures na China
Isso é um problema?
Não sei, nem digo que é mau ou bom. Mas faz-me imensa confusão. O problema é que o mundo continua dividido. Quando o Império Romano desapareceu quem é que ficou a mandar nos territórios? Os bárbaros. Mas os bárbaros não invadiram Constantinopla naquele dia e àquela hora, foram invadindo. E às tantas modificou-se tudo. A civilização judaico-cristã está a morrer. Quando será passada a certidão de óbito, isso não sei. Mas se for para o norte de África, no século X era tudo cristão. Agora tem ruínas (todas preciosíssimas). Se calhar, Roma vai passar a ser em Xangai, algures na China. Mas isto é a constatação da tal evolução que a mim me choca.
Mas, como acabou de me contar, se não fossem esses movimentos não teria nascido. É fruto da miscigenação.
O meu pai, para implicar com a minha avó, dizia: "Ó mãe, dizem para aí que somos canecos". Os canecos são os luso-descendentes. E a minha avó ficava ofendidíssima com a história dos canecos, porque isso era querer explicar que desde o séc. XVIII ao séc. XX estivemos houve miscigenação. A minha avó recusava-se terminantemente a admitir tal coisa.
Então está como ela. O que lhe dizem os seus netos, chamam-lhe conservador?
Não dizem, mas se calhar pensam. Mas também lhe digo, tenho quatro filhos e, em termos religiosos, estamos a 50%. Em termos de netos tenho um completamente envolvido na Jornada Mundial da Juventude. Se calhar a nova geração é mais consciente do que nós éramos e temos de passar como, como disse o Papa Bento XVI, pelas catacumbas.
Nunca teve uma crise de fé?
Não. O que não quer dizer que tenha sido absolutamente impecável, porque não fui, antes pelo contrário. Estive afastado muito tempo, mas, por exemplo, nunca deixei de rezar o terço.
Há pouco falou em Lula da Silva e não perguntei: já assistiu à vinda a Portugal de vários presidentes do Brasil. O que mudou?
Já assisti a quatro ou cinco visitas de presidentes brasileiros a Portugal e de todas as visitas resulta esta coisa: agora é que vai ser. E nunca é. E nunca é porquê? Porque em 1820, nas cortes constitucionais, vieram brasileiros eleitos do Brasil. Mas os eleitos de cá mandaram-nos embora. E eles foram e fizeram a independência. Agora vêm para Portugal e se nos quisermos fazer ouvir daqui a dez ou 15 anos temos de ter um intérprete, porque ninguém nos entenderá. Dizer que uma antiga colónia como o Brasil nos trata bem é uma abstração, porque os brasileiros não precisam de Portugal para terem acesso à Europa.
O seu percurso político não foi exactamente linear, foi?
Mas qual é o percurso que segue uma linha recta? Por exemplo, quando em fevereiro de 1975, enquanto secretário-geral do Partido da Democracia Cristã, fiz um comício no Pavilhão dos Desportos e disse que era de direita, uns energúmenos que constituíam o MRPP na altura cercaram o edifício. Quem os comandava era um tipo que seguiu uma linha direitíssima, chamava-se José Manuel Durão Barroso, andava com botas de carneira atadas com corda. Ou o Dr. Freitas do Amaral, também foi linear. O Dr. Sá Carneiro não porque morreu.
Hoje ouvi uma coisa extraordinária a propósito do aniversário do Partido Socialista. No programa Contra-Corrente ouvi Helena Matos dizer uma coisa curiosíssima, que nunca me tinha passado pela cabeça, é que há uma divisão partidária até entre cemitérios [Helena Matos questiona se o PS vai continuar a ter lideranças mais afins ao espírito do cemitério dos Prazeres ou se se aproxima antes do seu ideal mais telúrico do cemitério do Alto de São João, associado a um republicanismo mais radical. E diz que este é o dilema do partido].
O PS, que faz 50 anos, mas que muitos gostariam de ver enterrado. Pelo menos este governo, não?
O governo não presta, parece que é unânime.
Não sei. Presta ou não, pergunto-lhe?
Eu acho que não. E o Dr. Costa é um tipo extraordinário, porque quando lhe dizem determinadas coisas ele abre muito os olhos e diz: "Ai sim? E eu que não sabia".
Diz o presidente da República que dissolver o governo é caríssimo e não há alternativa. É exactamente a mesma argumentação do Dr. Salazar: muito caro e não há alternativa. E estamos assim
Bom, mas já vai no terceiro mandato.
Diz o presidente da República que dissolver o governo é caríssimo e não há alternativa. É exactamente a mesma argumentação do Dr. Salazar: muito caro e não há alternativa. E estamos assim. Não se dissolve a Assembleia da República, espera-se que se dissolva o país. José Miguel Júdice disse, estou a citar livremente, que o presidente não quer eleições antecipadas. Ponto. Portanto, quando Montenegro diz que é alternativa, chegada a altura Marcelo vai dizer: mas tens de ir a pé a Fátima. "Já fui". Pois, mas tens de dar dez voltas à capela. "Já dei". Mas tem de ser de joelhos. "Já está". Mas tens de ir a pé ao Bom Jesus.
Porquê isso?
Porque, segundo o José Miguel Júdice, ele [Marcelo] é medroso.
Concorda com Júdice?
Não sei, eles é que são íntimos. Eu sou mais velho, de outra geração. Só conheci Marcelo Rebelo de Sousa como inventor de factos políticos. Agora ele é que governa. E já explicou: os partidos podem dizer, a sociedade pode dizer, mas quem manda é ele.
Marcelo não dissolve o Parlamento porque tem medo que o PS tenha maioria outra vez
Do que tem medo o presidente da República?
Marcelo não dissolve o Parlamento porque tem medo que o PS tenha maioria outra vez. Está na cara. Porque o Dr. António Costa vai distribuindo dinheiro, exactamente a mesma coisa que os célebres caciques do século XIX faziam. E se o Costa dá euros, a malta vota nele. Qual é a dúvida?
Há uma máxima do Dr. Salazar que é assim: o orçamento é um bolo e há que distribuir as fatias do bolo adequadamente. O Costa vai dando aos empresários aquilo que os empresários querem - os nossos empresários também são ordinários. Isto é geral. Como escreveu Miguel Sousa Tavares no último artigo [no "Expresso"], o zé-povinho é essencialmente cobarde. Isto é uma tragédia. O que faz falta é animar a malta. E Costa sabe levar a malta. A isso chama-se liderança. O secretário-geral do PC não é um líder, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa não é o líder dos bispos. Mas muitos usam a palavra erradamente, o que manifesta a ignorância geral.
Como é que isso se muda?
Ah, isso demora anos. Primeiro de tudo tínhamos de conquistar o Ministério da Educação. Agora, se educam os miúdos a explicar-lhes o sexo e se não ensinam a ler português... O Google é a memória, como se a Internet fosse a nossa cabeça. Está a perceber a engrenagem dificílima disto? Demora gerações.
O que fizemos nestes quase 50 anos?
Nestes quase 50 anos? Perdemos tempo.
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