Inquirido no julgamento em que três inspetores do SEF estão acusados do homicídio de Ihor Hoemniuk, em 12 de março último, dois dias após o passageiro ucraniano ter sido impedido de entrar em Portugal, Filipe Cardoso, inspetor do SEF, na qualidade de testemunha, declarou em tribunal que, de madrugada (05:00), quando entrou na sala, acompanhado de um vigilante, encontrou o cidadão estrangeiro "manietado de pés e mãos, com fitas adesivas", de cor castanha, ou seja, as que habitualmente servem para fechar embalagens de cartão e outras.
Segundo a testemunha, Ihor tinha as mãos manietadas com fita adesiva à frente do corpo e estava deitado num colchão que tinha sido colocado no chão no meio de uma sala, tendo confrontado o vigilante com o que se tinha passado, tanto mais que nunca vira um passageiro naquela situação: atado de pés e mãos com fita adesiva.
O vigilante - adiantou a testemunha - explicou que Ihor tinha passado a noite "inquieto e algo agressivo", sem precisar que o tinha atado, tendo Filipe Cardoso libertado Ihor das fitas adesivas, mas, perante as advertências sobre o comportamento do passageiro, optou por lhe prender as mãos apenas com lençóis, de "forma não apertada" e de modo a que este não reagisse de maneira violenta.
Segundo a testemunha, Ihor não "ofereceu qualquer resistência e não se mostrou violento" quando lhe prenderam as mãos com lençóis descartáveis, em alternativa às fitas adesivas.
"As fitas adesivas são manifestamente desajustadas. Temos meios para limitar [controlar] as pessoas que não fitas adesivas", comentou a testemunha ao coletivo de juízes, presidido por Rui Coelho, e da procuradora Leonor Machado, observando ainda que as fitas adesivas estavam em contacto com a pele [de Ihor] e não sobre a roupa". Em resposta a José Gaspar Schwalbach, advogado da família de Igor Homeniuk, referiu ainda que encontrou Ihor "descalço".
Numa maratona de inquirições em que foram ouvidos mais sete inspetores do SEF, uma assistente administrativa daquele serviço e uma empregada de limpeza do centro de internamento temporário, o tribunal teve ainda a oportunidade de ouvir o inspetor Rogério Duro reconhecer que em 30 anos de serviço no SEF em Lisboa não se recorda de alguma vez ter tido conhecimento de uma situação em que um passageiro impedido de entrar tivesse sido atado com fitas adesivas utilizadas para fecho de embalagens.
Apesar de Filipe Cardoso ter garantido que libertou de madrugada Ihor das fitas adesivas, outra testemunha que entrou de manhã ao serviço disse ter visto novamente Ihor atado com fitas adesivas, enquanto outros se lembram de o ter visto com algemas metálicas.
A longa audiência incidiu sobretudo em pormenores sobre quem estava de turno, quem chegou a acompanhar o cidadão ucraniano ao hospital de Santa Maria (Lisboa) na véspera, quem eram os vigilantes presentes, que objetos possuíam ou tinham nas mãos ou se alguém o tinha ouvido gritar ou protagonizar atitudes agressivas.
Algumas das testemunhas relataram que os vigilantes lhe disseram que Ihor se tentou automutilar e até atirar-se ele próprio contra as paredes da sala, mas foram muitas as testemunhas que o viram deitado num colchão azul colocado a meio da sala na presença ora de vigilantes ou de inspetores, mas nenhum deles conseguiu confirmar à acusação ter sentido odor ou cheiro a urina nas calças da vítima.
Uma das testemunhas, Cecília Vieira, inspetora do SEF, que chegou a ver Ihor sentado na sala com um vigilante à porta, negou que tivesse ouvido Ihor aos gritos, depois de, durante a investigação, em abril, ter declarado à Polícia Judiciária que o cidadão ucraniano estava aos gritos e algo irritado.
Confrontado pelo presidente do coletivo de juízes com esta discrepância no depoimento prestado à PJ e agora em sede de julgamento, Cecília Vieira hesitou durante uns segundo e respondeu: "Agora não me recordo, se calhar nessa altura recordava-me".
O julgamento prossegue na quinta-feira, continuando a ser inquirido o inspetor chefe do SEF João Carlos Silva que, até agora, alegou que, devido a afazeres profissionais e necessidade de regressar a outras tarefas, não abriu completamente a porta da sala onde estava Ihor, razão pelo qual só lhe viu os pés e os joelhos, e não a cara, não podendo portanto indicar se havia sinais de agressão na face.
Uma outra testemunha disse contudo ter reparado, a dada altura, que Ihor Homeniuk tinha um pequeno ferimento na face com sangue.
Durante a sessão, ficou a saber-se pelo coletivo de juízes que não será tida em conta uma reconstituição dos factos que tinha sido realizada pelo Ministério Público sem o conhecimento da defesa e que tinha gerado um protesto processual do advogado de defesa Ricardo Serrano.
Na terça-feira, em julgamento, os três inspetores do SEF implicados no alegado homicídio de Ihor negaram a acusação e disseram que se limitaram a manietar um passageiro “agitado, violento e autodestrutivo”, que ficou mais calmo quando saíram da sala.
O acusados da morte de Ihor Homeniuk estão em prisão domiciliária desde a sua detenção em 30 de março de 2020, razão pela qual este é considerado um processo urgente que prossegue mesmo em tempos de pandemia por covid-19.
A viúva de Ihor, Oksana Homeniuk, constituiu-se assistente (colaboradora da acusação) no processo em julgamento.
Os arguidos estão acusados de terem morto à pancada o cidadão ucraniano, numa situação que configura homicídio qualificado, crime punível com pena de prisão até 25 anos de prisão.
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