O combate entre o efeminado agressor alentejano e o espadaúdo modelo - que o provocou vezes sem conta, a última das quais (a gota que terá que terá feito transbordar o copo) foi atirar-lhe água – saldou-se por uns tabefes na cara e no peito deste último. Pedro Barros, o provocador, foi, aliás, acusado de estar com os copos. Vai na volta, o Pedro Capitão dos trejeitos e voz afunilada deu-lhe uns safanões de menina que foram considerados bofetadas. O resto da história é que foi expulso – a agressão física é oficialmente proibida lá na 'Quinta' –, sendo reintegrado mais tarde, porque o sujeito tem imensa graça e é popular que se farta. O agredido é que não sobreviveu muito, e foi dos primeiros a fazer as malas do programa apresentado por Teresa Guilherme.
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A história da estalada em Portugal tem passado por diversas vicissitudes, e entrou mesmo na cultura popular. A cantora Ruth Marlene teve, há anos, um consumado êxito com a canção 'Só à Estalada', cujos versos referem que, 'Quando os rapazes vêm com ela fisgada / Daqui não levam nada / E quando algum quer fazer logo marmelada / Então só à estalada/ Então só à estalada'. E, noutra parte do poema, pode ouvir-se que: 'Estou prevenida pois já sei como é que é / Por isso mesmo fui aprender karaté'. Uma defesa da honra e da integridade física que se aceita e à qual ninguém botará defeito.
O caso mais recente da lusitana história da estalada não tem, até ao momento, repercussões físicas de qualquer tipo. É sabido que, após um truculento e ácido artigo de Augusto M. Seabra no 'Público', em que o crítico atacava quer a competência de João Soares para o cargo de ministro da Cultura, quer os seus métodos - que envolveriam 'compadrio, prepotência e grosseria', adjectivando-o ainda de 'derrotado nato' -, João Soares reagiu na sua conta do Facebook. Afirmava a intenção de se encontrar com Seabra para lhe dar 'umas salutares estaladas', que aliás estavam 'prometidas desde 1999, altura em que, segundo o visado, o crítico terá dito sobre ele 'umas aleivosias e calúnias'.
De caminho, o ex-presidente da Câmara de Lisboa e filho do antigo Presidente da República, Mário Soares, recordava também que estava em falta com o mesmo tratamento a Vasco Pulido Valente, igualmente cronista do 'Público', que em Março se lhe referiu como 'lamentável personagem'. A propósito da demissão de António Lamas, o controverso gestor do Centro Cultural de Belém, VPV escrevia: 'não se percebe toda esta palhaçada, excepto se pensarmos que ele [João Soares] é no Governo um verbo de encher e que o PS o atura por simples caridade.
O duelo para defesa da honra e a eventual calúnia, ultraje ou infâmia a ele asociados vem dos primórdios da Idade Média, e resultou em Portugal em diversas cenas mais ou menos públicas até meados do século XX. De Afonso Costa a João Franco, de António Granjo a Eduardo Swalbach, do Conde de Penha Garcia a Francisco Solano de Almeida, de Caeiro da Matta a Anselmo Braancamp, muita foi a elite política urbana que sonegou aos tribunais as suas quezílias públicas ou privadas. Tratava-se de uma suposição de que os cavalheiros, como outrora os cavaleiros, tinham sobre as massas uma posição que lhes permitia tratar das questões da justiça pelas suas próprias mãos. O povo esmurrava-se na taberna, os senhores degladiavam-se com apertadas regras, casaca e chapéu alto. A testosterona tem luta de classes...
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já o génio guerreiro Sun Tzu tinha sobre o duelo uma visão negativa. Criticava aos homens o 'orgulho e vaidade' a que, segundo ele, chamavam impropriamente 'defesa da honra'. Da França dos espadachins aos pistoleiros do far-west, dos duelos de chicote do sertão brasileiro às pistolas com testemunhas de Inglaterra, foi durante muito tempo através do derramamento de sangue que os nobres e outros titulares trataram dos seus problemas. António José de Almeida, o político republicano que foi Presidente da República, terá sido, segundo reza a História, o primeiro português a ser desafiado para um duelo e a não aceitar, sem que lhe tivesse caído a honra na lama. Um fenómeno de modernidade, na altura.
As excepções, já no tempo do Estado Novo, que, mais do que fechar os olhos aos duelos, como era uso da justiça mais branda da 1ª República, os criminalizou, são escassas. É de escola o exemplo de Francisco Sousa Tavares, que sendo oficial miliciano quis desagravar uma afronta de um seu superior hierárquico desafiando-o para um duelo; o qual nunca chegou a concretizar-se.
A espada e a pistola foram modernamente substituídos pela pena. E o interessante é que ambas andaram, desde os primórdios da Idade Média, casadas. Eggil Kalagensson foi um poeta e guerreiro viking que, no século X, primeiro terá lançado um código de conduta de duelos, bem a par das regras de cavalaria em uso no tempo. Mas não deixou de usar a escrita para afrontar os que se lhe opunham.
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Mais prosaicamente – ou com menos pompa – vários escritores do século XIX, conhecidos pela pena afiada, não deixaram, no entanto, de usar as mãos e alguns esticadores de braço – a célebre bengala – para pedir contas a adversários e homens que lhes tinham lançado críticas mais ou menos ferozes.
Eça de Queiroz referia, em carta a Teófilo Braga, algumas das passagens da sua obra: 'A sociedade que cerca esses personagens - o formalismo oficial (Acácio), a beatice parva de temperamento irritante (D. Felicidade), a literaturazinha acéfala (Ernestinho), o descontentamento azedo e o tédio da profissão (Juliana), e às vezes, quando calha, um pobre bom rapaz (Sebastião). Um grupo social, em Lisboa, compõe-se com pequenas modificações, destes elementos dominantes. Eu conheço uns vinte grupos assim formados. Uma sociedade sobre estas falsas bases não está na verdade: atacá-las é um dever. [...] Merecem partilhar com o Padre Amaro da bengalada do homem de bem'.
Antero de Quental, Ramalho Ortigão, Sampaio Bruno, Aquilino Ribeiro ou João Gaspar Simões foram alguns dos muitos que se envolveram em bengaladas, ou foram desafiados, no Chiado ou não só, à porta da Bertrand como em campo aberto.
A Idade das Luzes e o Iluminismo começaram, aos poucos, a tornar fora de moda os duelos e os desagravos mais por armas que por palavras. A morte de Alexander Hamilton, que foi secretário de Finanças de George Washington, num duelo com o seu adversário Aaron Burr, 3º vice-presidente dos EUA, tomou repercussões tais que, a partir daí, a justiça começou a reprimir, de forma mais cerce, os habituais desaguisados resolvidos à pistola pelos politicos oitocentistas.
Mas Andrew Jackson, anos depois, ainda seria vítima de um tiro num ombro, apanhado num duelo que lhe provocou dores para o resto da vida. Alexandrer Pushkin foi morto em duelo, depois de ele próprio já ter descrito vários nos seus poemas. Coisas do destino da pena e da espada, mas também da tela – dos cowboys a Barry Lindon (filme icónico de Stanley Kubrick), a 'verdade' das armas, da honra e da cobardia têm sido alvo preferencial dos cineastas.
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As paixões mortas em meio literário deram azo a grandes confrontações, como a que José Saramago e António Lobo Antunes protagonizaram durante anos. Rimbaud e Paul Vérlaine, Jean-Paul Sartre e Albert Camus, Mário Cesariny e António Pedro, foram outros tantos. Sobre o poeta-pintor do surrealismmo, escreveu Jorge de Sena umas quadras de uma truculência verbal a roçar a infâmia. A questão coimbrã deu espada entre Antero e Ramalho, e a verbalização do insulto ganhou foros de arte, com o 'Manifesto Anti-Dantas' de Almada Negreiros. Talvez a mais famosa de todas as 'punições' literárias terá sido a bengalada de Carlos Eduardo a Dâmaso Salcede, numa tarde do Chiado; mas foi apenas num livro, Os Maias.
O resultado imediato da desbragada verve de João Soares é conhecido. O ministro demitiu-se, alegando por um lado não querer prejudicar o Governo, mas também a necessidade de manter intacto 'o direito à expressão de opinião e palavra'. A questão talvez ainda faça correr alguma tinta. Como o chefe do Executivo dizia ontem, 'um ministro tem de lembrar-se sempre que o é, mesmo à mesa do café'.
Qual o valor do Facebook e de outras redes sociais na opinião dos cidadãos que são, também, figuras públicas?
No Facebook, aliás, corre célere a piada, os ataques e os apoios a João Soares. Uma jurista conhecida pelo invulgar traço de ironia, de seu nome Alice Coutinho, lembrava ontem, sobre os titulares governativos da pasta da Cultura:
'O Santana Lopes batia com a porta, o Sousa Lara queimava livros, o Carrilho dava uns tabefes, o João Soares ameaça dar. Eu não quero nada com essa gente da cultura'.
Para logo, num comentário, ser recordada pelo jornalista e antigo membro da direcção do 'Público', Joaquim Vieira: 'E então o Francisco José Viegas, que mandou os inspetores tributários tomarem no pacote?' Vai linda a democracia, e a cultura é de uma gente outra...
Mas, nestas coisas da honra e da truculência, até o Papa Francisco tomou recentemente partido. 'A liberdade de expressão é um direito. Mas se alguém ofender a minha Mãe, de certeza que leva um murro', disse o chefe de todos os católicos. Está o ateu João Soares desculpado...
No meio de tudo isto, com certeza de forma involuntária, vai a família Soares escrever, na sua saga, o valor da bofetada. Se o pai virou uma campanha presidencial desfavorável após a estalada que levou na Marinha Grande, já o filho deitou a perder uma carreira como ministro, sem sequer ter levantado a mão mais do que lhe permitiu a palavra.
Torno público que apresentei esta manhã ao Senhor Primeiro Ministro, António Costa, a minha demissão do XXI Governo...Posted by João Soares on Friday, April 8, 2016
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