Portugal. O nome da pátria foi exaltado em 28 ocasiões por André Ventura no discurso final, perante cerca de 50 apoiantes e militantes do Partido Chega. Após conhecer a votação alcançada nas eleições presidenciais, 496 mil votos, o último lugar do pódio foi assumido como se fosse o primeiro.

Subindo ao palanque numa sala do Hotel Marriot, em Lisboa, tocava o relógio as 23h30, Ventura falou em penúltimo lugar. Fê-lo imediatamente antes do vencedor do sufrágio eleitoral, Marcelo Rebelo de Sousa. E posicionou-se estrategicamente, discursando depois de Ana Gomes, a candidata que viria a recolher o segundo lugar nas preferências dos eleitores.

André Ventura disse em campanha que não admitiria ficar atrás da socialista nas escolhas do eleitorado, demitindo-se se tal acontecesse. Ficou aquém por uns escassos 1,1 pontos percentuais. E não esqueceu. Só que dos 12 minutos usados no discurso, poucos foram os segundos dedicados ao esperado “obviamente demito-me”. Aliás, foi sem nunca usar a expressão “demissão” que afirmou ser um homem de palavra e anunciou que vai apresentar o seu projeto a uma legitimação interna.

Seguindo um manual (muitas vezes usado, curiosamente, pelo Partido Comunista) de como transformar uma derrota em vitória, usou expressões belicistas – luta, batalha, força e esmagamentos -, adotou um tom salvífico, assumiu-se como o escolhido de Deus (e do seu eleitorado), a reencarnação de uma figura messiânica, a única capaz de mudar Portugal e de instaurar “a IV República”, algo que “está cada vez mais perto”, de acontecer, prometeu.

Esta foi a tática utilizada pelo homem cuja noite foi sobre ele — até Rui Rio “elogiou” o facto de ter derrotado os comunistas no Alentejo. Um foco sobre si recaído, embora tenha terminado em terceiro lugar e não tenha conseguido forçar a uma segunda volta das eleições, como se havia proposto.

Ventura não se coibiu de criticar a extrema-esquerda, que saiu “esmagada” e a governação “miserável” socialista que empurra o país, e os portugueses, para o abismo. Depois, suportado pelos boletins, reclamou uma vitória futura: "Não há volta a dar: não haverá governo sem Chega nos próximos anos. PSD, ouve bem, não haverá governo em Portugal sem o Chega”, disse, repetidamente.

A este grito junta-se o dirigido a João Ferreira, candidato apoiado pelo Partido Comunista: “nem no Alentejo me ganhou”, disse por duas vezes.

Foram estes os momentos apoteóticos numa noite algo morna.

Mas já vamos à festa. Recuemos a bobine deste filme protagonizado por um partido e um líder que, em dois anos, passou de 67,826 votos para quase meio milhão, ou traduzido em percentagem, de 1,2%, nas legislativas de 2019, aos dois dígitos das Presidenciais (11,9%).

“De Vila Real para baixo o gajo papou-os todos. Pim, pim, pim. Bragança, Guarda, Castelo Branco Viseu, Beja e Évora”

O tom guerreiro usado no final da noite foi bem diferente do André Ventura “tranquilo” que aterrou no hotel, às 18h35, acompanhado por uma comitiva de três viaturas.

A unidade hoteleira foi o quartel-general da “noite longa” que tinha pela frente. Isto depois de ter passado o domingo a rezar. “Rezei muito, não pelo resultado, mas por termos conseguido chegar ao fim”, confidenciou aos jornalistas à chegada, ao lado da sua mulher.

O ambiente vivido era e seria quase sempre morno, a atirar para o frio, apesar de dois apoiantes durante o processo de check-in falarem sobre a possibilidade de uma segunda volta.

Diogo Pacheco Amorim, o ideólogo por detrás do Chega, passeava-se pelos corredores do hotel, e havia quem aproveitasse os tempos mortos para tirar fotografias com a imagem de André Ventura por trás. Dois assistentes de som de uma empresa com a sigla PM (Palco Móvel) colocaram, à hora que as urnas fecharam em Portugal Continental e Madeira, uma bandeira de Portugal no púlpito. PM são também as siglas de primeiro-ministro.

O primeiro dar o peito às balas foi o mandatário de André Ventura, que começou por lamentar o nível de abstenção (19h10) e, “sem mais nada para dizer”, retirou-se. Uma curta intervenção feita perante os muitos jornalistas e as mais de 50 cadeiras vazias.

Rui Paulo Sousa falou exatamente uma hora depois. 10 minutos após o fecho do ato eleitoral. Segundos antes, um momento insólito. Um elemento da organização pediu aos jornalistas presentes na sala para saírem por uma porta lateral e voltarem a entrar de forma a proceder-se à verificação dos nomes previamente inscritos e credenciados para estar naquele espaço. Nenhum jornalista se levantou.

A razão era simples. Uma comunicação estava prestes a ser dada. Rui Paulo Sousa destacou “um resultado histórico para um partido e um candidato que teve há dois anos 1,2% dos votos" e que se preparava para ter, de acordo com as projeções, "entre 9%, 10%, 11% e 12%. É um sinal que os portugueses querem mudar”, antecipou o mandatário de André Ventura, perante uma sala que teimava em continuar vazia. “Acreditamos no 2.º lugar e iremos aguardar os resultados”, atirou.

Após a intervenção, a assessora de imprensa verificou então, um a um, se jornalistas, fotógrafos e repórteres de imagem constavam da lista previamente autorizada. Instantes depois, o diretor de campanha e mandatário nacional desce, mais uma vez, à sala. Após lhe ajeitarem a gravata, justifica o sucedido. “Não era nossa intenção colocar os jornalistas fora da sala”, mas apenas proceder a “uma verificação de credenciais”, explicou. “Lamentamos o sucedido. Acreditamos na liberdade de imprensa”, disse.

Ninguém escapava ao crivo da lista VIP. Nem mesmo a atriz Maria de Vieira, conhecida apoiante de André Ventura, obrigada a soletrar o nome à entrada da sala.

Nos corredores, corria a informação de que o candidato não iria descer tão cedo, esperava a contagem total dos votos. De máscara do Chega a tapar os rostos, muitos dos militantes não tiravam os olhos dos telemóveis enquanto acompanhavam as projeções cirúrgicas.

“De Vila Real para baixo o gajo papou-os todos. Pim, pim, pim. Bragança, Guarda, Castelo Branco, Viseu, Beja e Évora”, celebrava um apoiante. No mapa interno da N2, de Chaves a Faro, o Portugal interior, raiano e esquecido pelo sistema, o candidato do Chega ficou no 2º lugar nas preferências, mas foi como se tivesse chegado ao fim em primeiro.

Maria Vieira, de olhos postos na televisão, lamentou: “os Açores foram para ela”, disse, não escondendo a esperança de repetir a surpresa nas Ilhas.

“Jamais caminharás sozinho”

Luzes e ação. Estava chegado o momento. O speaker de serviço grita “Ventura, Ventura, Ventura. Jamais caminharás sozinho”.

As primeiras palavras do líder do Chega e candidato a Belém foram para felicitar Marcelo Rebelo de Sousa, presidente reeleito, desejando que faça um segundo mandato respeitando “Portugal e os portugueses de bem”, frisou.

Aclamando uma noite histórica na direita em Portugal, congratulou-se por ter esmagado a “extrema-esquerda em Portugal”, frase que arrancou aplausos, e por ter ficado a “décimas da candidata que representa o pior que Portugal tem”, responsável por ter levado o país “ao estado em que está”, atirou.

“Não fujo à minha palavra e devolvo aos militantes do Chega a decisão sobre se querem a continuidade deste projeto à frente deste partido”. Foram segundos, no qual faltou a expressão anunciada em campanha: demissão.

O sentimento era de vitória de exaltação interna e externa, com Ventura a anunciar ter recebido chamadas da Europa e do mundo.

O mérito do resultado está no “meio milhão de portugueses que saíram de casa para votar”. Aproveita o embalo para identificar mais um inimigo externo. As empresas de sondagens: “Não é enganando os eleitores e o sentido de voto que se faz política em Portugal”, avisou.

“Ana Gomes descola, Marisa Matias aproxima-se e João Ferreira cresce, todos vimos esses títulos. E não só o batom da Marisa não lhe permitiu crescer, como a Ana Gomes não descolou e o João Ferreira, nem no Alentejo me ganhou, nem no Alentejo me ganhou. Vergonha!”, gritou perante um forte aplauso vindo da plateia.

Depois da exaltação das forças terrenas, a providência divina. “Humildemente posso olhar para mim próprio e agradecer a Deus por ter me colocado como a voz deste país”. Uma frase antecedida de um chamamento, para junto de si, do eleitorado do “território dito comunista e de esquerda”, eleitorado esse que passará a ser “seu no processo de transformar Portugal nos próximos anos”, garantiu.

De braços abertos à esquerda, deixou mensagens à direita e ao centro-direita. “Não há segundas vias depois desta noite. Não há ilusões, nem grandes, nem pequenas”, anunciou. “Podemos continuar a ser alvo de ataques, mas ficou claro em Portugal, na Europa e no mundo, que não haverá governo em Portugal sem que o Chega seja parte fundamental. Não haverá governos em Portugal sem nós”, repetiu. “PSD, ouve bem, não haverá governo em Portugal sem o Chega”, gritou.

“Toda a noite eleitoral foi sobre nós”, exclamou, seguramente informado de que até Rui Rio regozijou com a vitória de André Ventura no Alentejo comunista.

“És grande, Ventura” grita o speaker. O líder, agora candidato à liderança, desfez-se em “obrigados” ao povo português por “nos permitir dar um enorme estalo no sistema em Portugal. Hoje, foi um estalo, mas amanhã será uma avalanche que nos levará ao governo de Portugal”, anteviu.

“Contem connosco, estamos aí para a luta. Viva Portugal, Viva o Chega, Obrigado, Portugal”, disse, antes de pousar a mão sobre coração e entoar o Hino Nacional, na companhia da mulher e do diretor de campanha.

Exaltação patriótica cumprida, incumpriu no recado dado horas antes pela assessoria de que não falaria à imprensa. Falou e sem máscara. Assumiu-se como parte de um novo governo, colocou pressão no PSD e nunca usou a expressão demissão.