Em 1917, em plena I Guerra Mundial, Fátima tornou-se um centro de fé, pelas aparições de Nossa Senhora de Fátima aos três pastorinhos. Entre as vozes do povo, um apelo foi constante: que acabe a guerra. A mensagem que chegou envolvia, por isso, o mesmo país que agora ocupa a atualidade — a Rússia. E, hoje, ouve-se o mesmo pedido em todo o lado.
Ao SAPO24, fonte do Santuário de Fátima explica que essa referência "aparece na segunda parte do Segredo de Fátima, que é só um, dividido em três partes".
"A referência à Rússia, que é uma metáfora para além da geografia, diz naturalmente respeito a uma certa ideologia política emergente, os regimes comunistas, ateístas, que assentavam na ideia do homem novo, que prescindia de Deus e procurava aniquilar qualquer expressão religiosa da vida das pessoas. Esta atitude está na base dos grandes males e erros da humanidade", é referido.
Assim, "depois da visão do inferno, materializado na ideia da guerra, Nossa Senhora oferece aos três videntes um itinerário de paz e de salvação, que passa pela oração e pela conversão. Na segunda e terceira aparições, Nossa Senhora anuncia que Deus quer estabelecer no mundo a devoção ao Seu Imaculado Coração e evoca a conversão da Rússia como metáfora da necessária conversão do coração".
Trazendo esta mensagem para a atualidade, não é a conversão da Rússia que está em causa, já que "não estamos a falar de um regime ideologicamente ateu, mas sim da condenação de uma ação beligerante de uma nação sobre outra nação soberana, que uma vez mais nos remete para a dimensão infernal da loucura do mal e do pecado na história e do seu poder devastador, que atingiu formas e proporções inéditas como as que nos são apresentadas diariamente pelas imagens e notícias das televisões".
Segundo o Santuário, "o momento da história que vivemos convoca-nos de novo para o essencial da Mensagem de Fátima: a mudança do coração e do rumo da humanidade, através da oração".
Um bispo vestido de branco numa cidade em ruínas
Desde que a guerra rebentou na Ucrânia, o Papa Francisco tem-se mostrado atento ao sucedido, sendo "muito direto na condenação deste conflito, como aliás de todos os conflitos".
"O Papa Francisco foi, de resto, uma das primeiras vozes a condenar a invasão da Ucrânia pela Rússia", começa por lembrar o Santuário de Fátima. Nesse sentido, "a decisão de fazer, de novo a consagração da Rússia, e desta vez também da Ucrânia, os dois povos beligerantes, ao Imaculado Coração de Maria, foi profética e decisiva, porque coloca no centro a única questão que importa: a paz".
"Mais do que valorizar este ou aquele lado, porque numa guerra todos são perdedores e os povos são os maiores perdedores, o que importa é construirmos a paz e essa é uma tarefa de todos, embora seja um dom de Deus", é apontado.
Por isso, há uma pergunta que se impõe: é possível o Papa ir à Ucrânia? Na semana passada, Francisco, ao regressar de uma viagem a Malta, expressou "a sua disponibilidade" para ajudar a silenciar as armas e disse estar pronto para ir a Kiev, condenando aquilo que chamou de "guerra sacrílega".
Para o Santuário, "uma eventual deslocação do Santo Padre à Ucrânia reforçaria uma dimensão simbólica e política desta prioridade da igreja, mas não será por causa da deslocação que a Igreja se empenhará mais neste desígnio da paz".
Contudo, há uma parte do Segredo que parece, mais do que nunca, ser atual. Mas a interpretação da Igreja ajuda a perceber o que está em causa.
"A terceira e última parte do chamado Segredo de Fátima apresenta a visão que os Pastorinhos tiveram da Igreja peregrina e mártir: um cortejo de sacerdotes, religiosos e bispos, com o Papa à frente, a subir uma montanha, atravessando uma cidade meio em ruínas e cheia de cadáveres, vindo a sucumbir, no alto do monte, aos pés de uma cruz, morto por tiros e setas disparados por soldados", relembra o Santuário de Fátima.
Na descrição do Segredo, presente na quarta Memória da Irmã Lúcia, escrita em 1944, o cenário descrito "trata-se de uma espécie de via-sacra que é a vida da humanidade, como lhe chamou o cardeal Angelo Sodano, Secretário de Estado do Vaticano, ao anunciar em Fátima a terceira parte do Segredo, em 13 de maio de 2000, sobre o sofrimento provocado pela maldade do homem que não é necessariamente uma inevitabilidade, mas que acontece justamente por causa dela".
Apesar de poder parecer um prenúncio fatalista — se analisado à letra — para uma futura visita do Papa Francisco à Ucrânia, o Santuário afirma que "é muito mais importante a outra parte da mensagem que Nossa Senhora deixa em Fátima e que se prende com a misericórdia de Deus e o triunfo do bem. Nenhum sofrimento é vão, e precisamente uma Igreja sofredora, uma Igreja dos mártires, torna-se sinal indicador para o homem na sua busca de Deus".
Os Papas e o Segredo de Fátima
Ao longo da história de Fátima, os Papas têm-se manifestado a respeito do Segredo de Fátima, principalmente pela relação que têm mantido com a Cova da Iria.
"São João Paulo II foi o Papa que mais relevância deu a Fátima, não só porque foi o que até hoje mais vezes visitou a Cova da Iria como foi o que interpretou de uma forma mais pessoal a mensagem, relacionando-a com uma dimensão mais vocacional ligada à cátedra do sucessor de Pedro", começa por explicar o Santuário.
Recorde-se que o Papa foi atingido a tiro na Praça de São Pedro, a 13 de maio de 1981, sendo este um acontecimento que mudou a relação do pontífice polaco com Fátima, que veio a dizer que acreditava ter havido intercessão de Nossa Senhora na sua recuperação — um episódio que foi associado ao que é descrito no Segredo.
Por sua vez, "já Bento XVI, no seu comentário teológico à mensagem, quando era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, sublinhou o carácter profético da mensagem".
Em 2017, na Capelinha das Aparições, o Papa Francisco descreveu-se como um "bispo vestido de branco" durante a sua oração a propósito das comemorações do Santuário, estando esta referência "no domínio do simbólico da figura de estilo para mostrar uma humanidade ferida".
"A relação dos Papas com Fátima é o exemplo de uma relação virtuosa porque Fátima é uma mensagem profética, bem evangélica: o bem triunfará desde que o homem converta o seu coração e esse processo de conversão faz-se através da oração, que é o itinerário que nos aproxima de Deus e da sua vontade", acrescenta ainda o Santuário de Fátima.
E a Imagem Peregrina na Ucrânia?
No contexto da guerra, o Santuário de Fátima enviou a Imagem n.º 13 da Virgem Peregrina de Fátima para a Ucrânia em resposta a um pedido do arcebispo metropolita Greco-Católico de Lviv, efetuado em 10 de março.
"Pedimos que nos possam enviar a Imagem da Virgem Peregrina de Fátima para a Ucrânia para que possamos rezar pedindo a sua proteção para que a paz regresse ao país", apelou Ihor Vozniak.
E o Santuário apressou-se a responder. "Unidos no mesmo espírito de oração, é com agrado que o Santuário de Fátima responde positivamente ao pedido de envio de uma Imagem da Virgem Peregrina de Fátima".
Nessa carta, é explicado que a deslocação desta imagem ao território ucraniano, que acontece pela primeira vez, "se deve a este esforço pastoral de oração pela paz no mundo, em especial na Ucrânia". Mas é uma viagem datada, estando previsto inicialmente que a Imagem ficasse apenas um mês, ou seja, até 17 de abril.
Todavia, a pedido do arcebispo, poderá ficar mais tempo. "Como embaixadora da paz, a imagem da Virgem Peregrina foi pedida por um mês, mas se o arcebispado metropolita de Lviv quiser e entender necessário poderá ficar o tempo que for preciso", assegura o Santuário de Fátima ao SAPO24.
Apesar disso, é de notar que "as Imagens da Virgem Peregrina vão e vêm, não ficam nos lugares. O que não quer dizer que o Santuário não possa enviar uma outra escultura da Virgem Peregrina para um determinado lugar".
Entre orações e pedidos para que a guerra termine, o risco de viver num cenário de guerra é inegável. E nem os edifícios com funções religiosas estão livres, como foi percetível esta semana quando foi divulgada a destruição, por soldados russos, de uma imagem de Nossa Senhora no seminário ucraniano de Vorzel.
Por isso, num cenário de guerra, a preocupação com a Imagem Peregrina também existe. "Procuramos que nos deem garantias de que a Imagem pode viajar em segurança. Neste caso, está numa igreja — a Igreja da Natividade da Santíssima Virgem Maria, de Lviv. Mas está numa zona de guerra e, por isso, tal como outros bens patrimoniais, está sujeita ao risco", lembra o Santuário de Fátima.
"Mas as pessoas também estão e nem por isso deixam de viver como podem em cada momento. Agora é o momento de oração diante da Imagem", é frisado.
"É nisso que temos de nos focar".
Comentários