Prever um sismo é impossível. Mesmo após anos e anos de estudo de técnicas inovadoras, a ciência não conseguiu encontrar um método eficaz que permita antever a súbita libertação de tensão acumulada por rutura dos materiais na crosta terrestre. Nesta madrugada do dia 27 de setembro aprendemos que um terramoto político pode ser igualmente imprevisível.
Nenhuma das oito sondagens publicadas entre os dias 29 de abril e 23 de setembro mostraram indícios de que a liderança do Partido Socialista da Câmara Municipal de Lisboa estava em causa. Nelas, à Coligação Novos Tempos, liderada pelo Partido Social Democrata encabeçada pelo engenheiro Carlos Moedas, não se atribuía a possibilidade de vitória. Na mais favorável, feita pela Pitagórica para a TVI, a candidatura liderada por Moedas que reúne cinco partidos arrecadava 33,1% dos votos contra 40,6% das intenções de voto na coligação Mais Lisboa, que juntava PS e Livre e que era encabeçada pelo presidente da autarquia da capital, e recandidato, Fernando Medina.
No Pátio da Galé, na ala poente do Terreiro do Paço, local onde, aquando do terramoto de 1755, se situavam o Paço Real e a Casa da Índia, ninguém podia adivinhar que ali, naquela praça centenária, cartão de visita da cidade de Lisboa, a uma passadeira e poucos passos de distância do edifício da Câmara Municipal, na Praça do Município, a capital voltaria a abanar, desta vez sem que nada ruísse para além os 14 anos de presidência socialista da cidade.
Fernando Medina chegou ao quartel-general da campanha por volta das 20h30 e avisou os jornalistas de que a noite ia ser longa. A confirmação de que a noite eleitoral ia entrar pela madrugada dentro chegou meia-hora depois, quando as primeiras sondagens foram divulgadas pelos canais televisivos: de acordo com a previsão da TVI a coligação Mais Lisboa ia vencer a câmara, segundo a RTP e a SIC estávamos perante um empate técnico, no canal público com ligeira vantagem para Moedas, no canal de Paço de Arcos com igual ligeira vantagem para Medina. Em qualquer dos cenários, a surpresa da noite acabava de acontecer pouco passava das 21h00: a possibilidade de Lisboa mudar de cor política, até aí não antecipada.
Focados na televisão da sede que mostrava a única sondagem favorável ao candidato socialista (a da TVI), vários jovens gritaram vitória no Terreiro do Paço. “Ganhámos Lisboa”, ouvia-se. Mesmo já depois de ser percetível que o resultado desta noite estava longe de ser claro, Duarte Cordeiro, líder da Federação da Área Urbana de Lisboa do PS subiu ao palco do Pátio da Galé para uma mensagem de confiança: “Estamos confiantes de que vamos ganhar as eleições em Lisboa. A confirmar-se o resultado, será a quinta vez que ganhamos as eleições em Lisboa”.
A mensagem impunha-se, uma vez que o PS dava-se conta de estar num lugar onde não tinha imaginado estar. Mais tarde, ao SAPO24, Pedro Siza Vieira, ministro da Economia e da Transição Digital, na qualidade de militante socialista, dizia que naquele momento, “todos os dados de que dispomos mostram que Fernando Medina será eleito para um novo mandato como Presidente da Câmara Municipal de Lisboa".
Siza Vieira foi mais longe e chegou mesmo a antecipar que "dentro do município haverá solução de governo com outras forças políticas", salientando, tal como Duarte Cordeiro, que esta "será a quinta eleição consecutiva em que o PS tem uma vitória em Lisboa".
O ministro estava tão distante da realidade como o grupo de manifestantes que jantava no centro de Terreiro do Paço depois de, ao final da tarde, ter passado em manifestação, junto aos jornalistas à frente das arcadas do Pátio da Galé, contra uma “ditadura” que estava a ser imposta aos portugueses e em defesa da Constituição. A diferença era que o primeiro era rasteirado pela realidade e os segundos a deturpavam.
A noite seria tensa e de expectativa, com pessoas a entrar e a sair do interior do sede para respirar sem máscara, e lá dentro em grupos a comentar os resultados da noite. Os aplausos só chegavam nos momentos em que se ouvia que o PS tinha ganho esta ou aquela junta de freguesia. Mas eram tímidos. Os grandes aplausos estavam a guardar-se para o momento que não chegou.
O silêncio e a incerteza foram oficialmente quebrados no momento em que António Costa chegou para dar um abraço ao amigo Fernando Medina. Soube-se de imediato, pela expressão no rosto do líder socialista, que não seria um abraço de vitória, um abraço eufórico depois de um golo aos 90 minutos, um abraço entre dois grandes amigos que não se vêm há anos, um daqueles abraços quase desprovidos das regras dos abraços que erguem o vencedor. Não era aquele abraço que pega no herói e lhe levanta os pés dos chão. Não. Este seria forte, mas mais curto e contido, como quem agradece e se desculpa ao mesmo tempo, como quem perdeu depois de deixar tudo dentro de campo, como quem falhou um penalti decisivo; de pés bem assentes no chão como se o céu, a glória, fosse um lugar já distante.
Costa sentou-se na primeira fila de uma plateia onde estavam várias figuras do partido, de Siza Vieira a Mariana Vieira da Silva, e viu Fernando Medina ler o discurso que certamente não tinha pensado escrever para esta noite.
“Começo por felicitar publicamente o engenheiro Carlos Moedas e a coligação ‘Novos Tempos’ pela vitória que tiveram para a Câmara Municipal de Lisboa. É uma indiscutível vitória pessoal e política do engenheiro Carlos Moedas, a quem já telefonei e expressei de forma pessoal as minhas felicitações”, afirmou, garantido que se empenhará “pessoalmente na transição de todos os dossiers” de forma a assegurar que “as mais exigente funções de presidente da Câmara de Lisboa possam ser executadas por ele [Carlos Moedas] e pela nova equipa que assumirá funções".
Questionado pelos jornalistas sobre o seu futuro político, Fernando Medina disse que ainda não sabe, notando que “até há poucas horas era ser presidente da Câmara de Lisboa”.
O candidato fez um conjunto de agradecimentos e realçou que a derrota eleitoral foi exclusivamente da sua responsabilidade, lamentando o facto de não ter conseguido merecer de novo a confiança dos lisboetas.
“A derrota de hoje é pessoal e intransmissível. O Partido Socialista fez tudo em todos os momentos para que nós pudéssemos ter os recursos, os meios para podermos fazer diferente”, apontou.
O facto de a derrota ser “intransmissível” não quer dizer que não seja contagiosa ao ponto de deixar o secretário-geral do partido, que começou a noite eleitoral, numa declaração na sede do PS, a afirmar, erradamente, que pela primeira vez “um partido ganha três vezes consecutivamente eleições autárquicas”, frustrado.
"Se sinto frustração, claro que sim, é evidente que sim, isso é indiscutível", afirmou o secretário-geral do PS e primeiro-ministro – que presidiu à Câmara Municipal de Lisboa entre 2007 e 2015, quando deixou a governação do executivo autárquico a Fernando Medina, até então seu vice-presidente.
"Como é sabido, tenho uma ligação particular à cidade, não só por viver cá, mas por ter tido a oportunidade de em 2007 ter reconquistado esta câmara para o PS e ter iniciado um ciclo de governação que durou até ao dia de hoje", referiu.
Depois de descer o palco, Medina distribuiu abraços de agradecimentos. Saiu debaixo de fortes aplausos e deixou um rasto de abraços entre membros da equipa. Abraços de despedida de um tempo que chegou ao fim.
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