É capitão de Abril, mas não estava no centro dos acontecimentos no dia da Revolução. Como perguntava Baptista-Bastos, onde estava Vasco Lourenço no 25 de Abril?
"Estava nos Açores, no quartel-general de Ponta Delgada, como oficial de dia. E de acordo com o que estava combinado com Otelo [Saraiva de Carvalho] recebi, através da sogra do Melo Antunes, um telegrama, no dia 24, com a mensagem: "Tia Aurora segue EUA 25 03 00 abraço primo António" — a informação do que iria acontecer, o início da operação militar. Foi assim que vivi a noite e a madrugada libertadora do 25 de Abril, desvairado por não estar em Lisboa. Se estivesse, seria eu a coordenar as operações. O Otelo substituiu-me e portou-se muito bem, comigo não se sabe como teria ocorrido, não se fez a prova".
Porquê Otelo?
Éramos três na direcção: eu, Otelo, responsável pelo secretariado, e Vítor Alves, que fazia a ligação com a Marinha e a Força Aérea. Comigo fora, eles decidiram entre os dois que o Otelo ficava com a parte operacional e o Vítor Alves com a parte política.
Hoje seria possível manter o segredo?
Manter segredo sobre o dia, a hora, depende de quem tem acesso a ele. Naquela altura também havia quem desse com a língua nos dentes e atirasse informações cá para fora. Nós sabíamos que esse risco existia. E existiu, saíram informações. Mesmo assim, foi possível manter o essencial em segredo. Penso que hoje também seria possível, apesar dos telemóveis e das redes sociais. Os telemóveis facilitariam as comunicações, mas dificultariam a segurança. Ainda assim, acredito que seria possível.
Voltemos, então, ao dia 24 de Abril.
Como disse, estava de oficial de serviço no quartel-general. O Melo Antunes saiu de serviço à hora normal, cinco da tarde. Foi para casa, porque vivia em Ponta Delgada com a família, que era açoriana, e passado meia hora ou três quartos de hora voltou ao quartel. Estava eu a acompanhar os praças ao jantar quando um soldado me veio avisar que o major Melo Antunes queria falar comigo. Fui ter com ele e estendeu-me um papel, era um telegrama: "Tia Aurora segue EUA 25 03 00 abraço primo António". Foi o texto de código que eu inventei e mandei ao Otelo através de um capitão que passou por lá numa visita de estudo, e era para ele me enviar assim que soubesse exactamente quando ia acontecer a operação. Mas o Otelo tinha de ir saber os horários dos aviões e colocar o destino certo no texto da mensagem a enviar para a sogra do Melo Antunes, para não levantar suspeitas, caso alguém tivesse acesso ao telegrama.
E o que fez ou pensou quando, finalmente, recebeu a mensagem?
É agora. Estar de oficial de dia facilitava o resto. A minha reacção foi: é meio caminho andado. E preparei-me para intervir. O nosso plano passava por eu e o Melo Antunes prendermos o almirante comandante-chefe e assumirmos o comando, se necessário. Chamei o oficial que estava na conspiração, alertei-o, pedi-lhe para se preparar para intervir — o que estava previsto é que assumiria o comando da unidade e faria as missões que lhe atribuíssemos. Alertei o capitão que comandava a unidade de artilharia e que tinha aceitado obedecer às ordens que chegassem do quartel-general, sem questionar a origem. O Melo Antunes foi para casa, dei-lhe a minha pistola para levar como segurança e passei a fazer o serviço de pistola metralhadora, uma coisa um pouco estranha. Mas nunca devo ter feito um serviço tão rigoroso, sabia exactamente onde estava cada soldado, assisti à abertura dos portões — os soldados tinham dispensa de recolher e entravam de hora a hora, a última à uma da manhã. E tinha um alferes, o David Ramos, que mais tarde foi jornalista, que era o meu elemento de ligação com os milicianos. Depois do jantar disse-lhe: "Ó Ramos, sabe rezar?". "Porque é que me pergunta isso?", perguntou. "Porque se souber rezar eu mando-o rezar", respondo. Ele olha para mim, começa a tremer e diz: "Não me diga, não me diga que é esta noite?!". "É, sim senhor. Vamos lá, que está tudo preparado". E fiquei no gabinete de oficial de dia à espera das três da manhã, sendo que lá [Continente] eram duas horas mais cedo, a diferença horária nessa altura ainda era de duas horas.
Sabia o que ia acontecer, tinha ideia?
Sabia o que faria se estivesse no lugar do Otelo. A primeira coisa que tentaria fazer seria tomar uma emissora. Para quê? Para usar essa emissora para enviar informações para a população. Ao mesmo tempo seria uma alternativa, um recurso, caso falhassem as transmissões militares. No entanto, não sabia se o Otelo tinha tido a mesma ideia e, em caso afirmativo, não sabia que emissora iria ele ocupar. Sei que às duas e pouco da manhã estava a ouvir uma emissora que só transmitia música, por isso não sabia se era portuguesa. Quando finalmente oiço vozes, percebo que não, mudo rapidamente de frequência e vou cair quase no fim do primeiro comunicado do MFA, no Rádio Clube: "[...] Apela-se à população para não sair de casa, apela-se aos médicos para acorrerem aos hospitais, espera-se que não haja problemas graves, que não haja sangue". Não me lembro exactamente dos termos, mas era isto. Pára o comunicado e começa uma marcha militar. E a minha dúvida foi: este comunicado é nosso ou é das forças da ordem, que estão a reagir e, naturalmente, numa emissora que dominam, estão a transmitir informações? Devem ter sido os minutos mais longos da minha vida. Acho que, mesmo quando nasceram a minha filha e o meu neto, os minutos não pareceram tão longos. A sensação que tenho é que estava tipo fera enjaulada dentro do gabinete, sozinho, a passear de um lado para o outro. O gabinete tinha cerca de três por cinco metros e eu dava três ou quatro passos para um lado, três ou quatro passos para o outro e pensava: o comunicado é nosso ou é deles? É nosso ou é deles? É nosso ou é deles?
"A BBC foi de longe a emissora que deu mais informações sobre o que se estava a passar em Portugal. Portanto, a informação que recebi foi, fundamentalmente, via essa rádio"
Quando percebeu de quem era?
De repente parou a marcha militar e oiço: "Daqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas..." e aí tive a convicção absoluta de que tínhamos vencido. E dou por mim, sozinho, aos saltos a gritar: "Já ganhámos, já ganhámos!". Telefonei imediatamente para o David Ramos, que estava a dormir fora do quartel, mandei-o regressar, telefonei também ao Melo Antunes, mas tive muita dificuldade, porque ele vivia num casarão, não ouvia o telefone. Teve de ser o David Ramos a ir lá, e acordou a vizinhança toda, foi preciso atirar pedrinhas à janela... Enfim... E a certa altura o Ernesto lá atendeu o telefone e veio imediatamente... Depois o David Ramos ficou a ouvir a BBC e ia fazendo relatórios. Foi de longe a emissora que deu mais informações sobre o que se estava a passar em Portugal. Portanto, a informação que recebi foi, fundamentalmente, via BBC.
E no quartel, foi preciso prender o tal almirante?
Quando chegou, o almirante já sabia o que se estava a passar. Expliquei-lhe as opções e ele disse que estava do nosso lado. Mas houve uma situação cómica: quando fiz a rendição como oficial de dia, eram sensivelmente nove da manhã, encontro um capitão miliciano. Estava muito aflito, era um homem medroso, por mais que eu tivesse tentado não consegui levá-lo para o movimento. Trocámos bons dias e quis saber o que se estava a passar. "Não sei, faço lá ideia do que se está a passar", gozava eu. "Sabes, não queres é dizer". Até que respondi: "Mas o que queres que se esteja a passar? Foi esta noite que a malta decidiu tomar o poder em Lisboa". E ele, de uma forma extraordinariamente ingénua, mas honesta, respira fundo e diz: "Eh pá, ainda bem que eu lá não estava!". E quando ele diz isto, eu, que tinha a pistola de oficial de serviço, que usava à cowboy, um tanto descaída, olho para ele e digo: "Eu dava uma perna [ou qualquer coisa assim] para lá estar e tu dizes-me isso?". Deito a mão à pistola, dou-lhe umas pancadas, e digo: "Eu mato-te". E ele começa a correr à minha frente a gritar: "Não me mates! Não me mates!". E eu atrás dele, a bater na pistola e a gritar: "Eu mato-te! Eu mato-te". Foi cá uma cena...
Quando é que veio, finalmente, ao Continente?
No dia 29, quando houve o primeiro avião de Ponta Delgada para Lisboa. Entretanto, no dia 26 reunimos com o almirante para que ele assumisse uma posição definitiva. "Ah, não sei bem o que se está a passar, qual é o programa do movimento...". Demos-lhe um rascunho do programa. O homem ficou aflito: "Pois, sei que há aqui oficiais que foram do movimento". "Ó senhor almirante, não esteja a brincar: foram, não. São! O senhor tem à sua frente um dos três responsáveis da direcção do movimento, eu, e o responsável pela acção do programa, o major Melo Antunes. Portanto, decida-se, não nos obrigue a tomar atitudes que não gostaríamos de tomar". Perante a nossa pressão, disse passaria a obedecer às ordens da Junta de Salvação Nacional. Eu e o Ernesto acenámos que sim com a cabeça, e eu disse ao almirante que aquela resposta nos servia. Quando a reunião terminou pediu-me para o pôr em contacto com o posto de comando do MFA. Pedi às telefonistas para descobrirem o contacto, porque aquilo era uma central civil, não era uma central militar, e passados dez minutos chegou a ligação. Era um major Coutinho, e depois de trocarmos abraços, disse-lhe que ia passar o comandante militar de Ponta Delgada e que ele devia dizer-lhe que a partir daquele momento ele deveria obedecer às ordens do capitão Vasco Lourenço e do major Melo Antunes. O Coutinho não entendia porque é que, estando eu ali, era ele que tinha de dizer isto ao almirante. "Está bem, depois eu faço-te um boneco, mas agora diz-lhe isto", explicava eu. E lá foi. E então, quando o outro foi ao telefone, do lado de cá eu só o ouvia: "Sim senhor. Sim, senhor major", "Sim senhor, muito obrigado", "Sim senhor, está esclarecido, sim senhor". O que sei é que a partir dali ele não ia à casa de banho sem me pedir licença. [risos] Depois fomos tomar conta das instalações da PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado], das instalações da Legião Portuguesa...
Como reagiram essas organizações?
Sem problema nenhum. O Melo Antunes dizia: "Deixa-me ser eu a ir lá". E foi, eu fiquei com um pelotão de piquete, caso fosse necessário e houvesse algum azar. Mas não, ele chegou e passados dez minutos estava a mandar-me uma mensagem a dizer que eu podia seguir. Os pides já tinham as armas, os documentos e os crachás em cima das secretárias, prontos a entregar, e nós tomámos conta das instalações. A mesma coisa na Legião Portuguesa, onde já fui eu directamente. E a situação foi caricata, porque eu já conhecia o chefe da Legião Portuguesa, um coronel já na reserva.
Quem era?
Tinha-me sido apresentado como o melhor jogador de bridge da região. Eu tinha começado a jogar bridge há relativamente pouco tempo e quando cheguei a Ponta Delgada perguntei se por ali se jogava, porque enquanto ali estivesse gostaria de jogar. A certa altura convidou-me para participar num torneio, mas desentendi-me com ele: "Você é o melhor jogador de bridge, mas joga mesmo muito mal". O torneio foi num grupo selecto de Ponta Delgada — a jóia era tanto como o meu vencimento de capitão, evidentemente que não me fiz sócio, ia a convite —, de maneira que naquele ambiente, eu a dada altura tive de lhe dar um berro: "Você nem consegue distinguir as copas das espadas! Não joga bridge, não joga nada". No final daquilo ainda ficámos em terceiro lugar. E depois veio um civil cumprimentar-nos e dizer-me: "O senhor disse ao coronel Sá Ferreira que ele é mau jogador?! Mas ele é o melhor jogador de bridge dos Açores. E ele calou-se? Mas o senhor é capitão e ele coronel". E eu lá lhe respondi: "Era o que faltava agora é que no bridge houvesse postos". De maneira que quando cheguei à Legião Portuguesa cumprimentei-o e quis tratar das coisas com rapidez...
Ele, provavelmente, também não...
Veio com uma história de um guarda, que vivia ali com a família e não tinha para onde ir. Expliquei que a decisão não era minha mas, face à situação, à minha responsabilidade, o guarda e a família ficariam ali até ser encontrada uma solução digna pelo comando militar. Apresentou-me o guarda e os filhos, que deviam ter posto um aspecto ainda mais ranhoso do que já teriam na realidade, e voltou a insistir na questão. Tornei a repetir o que tinha dito antes. Mas, ao longo da conversa, o coronel foi insistindo várias vezes na história do guarda, até que me passei: "Oiça lá, você nunca na vida se deve ter preocupado com o guarda e com a família, agora está a insistir tanto porquê? É para se mostrar um tipo cheio de compaixão e preocupado com os inferiores? Já lhe disse que, para já, o guarda e a família continuam aqui e depois o comando militar encontrará uma solução alternativa. O senhor acha que nós fizemos o que fizemos para pegar nos desgraçados que não têm onde cair mortos e pô-los a dormir debaixo da ponte? Se estamos a fazer alguma coisa é precisamente para pôr fim a situações como estas. Por isso deixe de me chatear com esse assunto. Se fosse ao contrário, com certeza o vosso [da Legião Portuguesa] procedimento não seria assim". E o coronel olha para mim e diz: "Não, não. Se fosse ao contrário nós também procederíamos bem". E tenho este desabafo: "Pois, veja-se o que acabou de se passar no Chile". O coronel desata a tremer na minha frente: "Não me diga, não me diga que me vai fuzilar!" "O quê, fuzilar? Você está doido? Está a ver como tem a consciência pesada?". E pronto, comecei a tratar de tudo rapidamente. Depois ele ainda me disse que tinha por ali uns quadros e umas coisas pessoais. "Ó homem, o que for seu tire e leve daqui. Mas quando me entregar as chaves deixa de poder vir cá buscar coisas". "Mas posso levar?". "Com certeza, o que é seu, é seu". De maneira que no fim ele dizia-me:"Ah, tenho lá a taça que ganhámos no torneio de bridge..." "Quero lá saber da taça, fique com a taça!" [risos]
"O 25 de Abril foi pacífico, o que não significa que não tenha havido pessoas a sentirem-se maltratadas e violentadas."
Mais tarde, no período das nacionalizações, as coisas não foram bem assim. Desapareceram muitos bens pessoais.
Bem, aí foram as empresas que foram nacionalizadas e, naturalmente, os bens de que fala são quadros e outros objectos que eram das empresas ou tinham sido comprados com o dinheiro das empresas, por isso foram também nacionalizados. Terá havido exageros, é capaz, não me espanta. Mas, disse-o na altura, não se passou o pior: não houve violência. No 25 de Abril houve os mortos provocados pela PIDE, na António Maria Cardoso. Depois, no processo revolucionário [PREC] houve meia dúzia de mortos. O que digo é que normalmente num processo destes há muita violência, mortos, fuzilamentos... Como se vê pela minha conversa com o coronel da Legião Portuguesa, em Ponta Delgada. O 25 de Abril foi pacífico, o que não significa que não tenha havido pessoas a sentirem-se maltratadas e violentadas, com a situação em que viviam a ser profundamente alterada de repente. Mesmo sem que tivesse havido violência física.
Esclareça um assunto: fala-se nos capitães de Abril, mas muitos, não sei se uma maioria, eram majores, ou não?
A contestação inicial é feita por subalternos, capitães e oficiais superiores, nomeadamente majores. Depois o governo retira do rol de prejudicados com as medidas que tomou por decreto os oficiais superiores e grande parte dos majores contestatários deixam de fazer contestação. Na primeira reunião que fazemos, em Alcácer do Sal, a 9 de Setembro, que é quando é criado formalmente o movimento dos capitães, só participam capitães e subalternos e é por isso que fica o nome movimento dos capitães. Depois aderem muitos oficiais superiores, muitos majores, e há um estudo que prova que há mais majores do que capitães, na altura a pirâmide está invertida. Agora, o essencial são os capitães nas suas unidades, são eles os operacionais. Mas houve muitos majores a participar e a preocupação de não envolver coronéis, apesar de ter havidos dois ou três, como o Vasco Gonçalves ou o Garcia dos Santos e o Fisher Lopes Pires, que eram tenentes-coronéis. Não os queríamos envolver por razões pragmáticas, sabemos que nesta coisa da tropa se houver retaliação o responsável é sempre o mais graduado, o superior.
"Mas há comandantes que gostam que o responsável seja o bode expiatório, que é o cabo quarteleiro (...) Hoje, assumir responsabilidade é cada vez mais difícil."
Ao contrário do que acontece agora, na tropa e fora dela, em que quem paga as favas, como se costuma dizer, é quem está mais abaixo?
Sempre aconteceu. Sabemos que há indivíduos que não gostam de assumir as suas responsabilidades. Numa unidade, o responsável é o comandante. Por isso é que se aplaudem atitudes como a de Jorge Coelho, que se demitiu do cargo de ministro do Equipamento Social quando foi o desastre de Entre-os-Rios, embora não tivesse directamente nada a ver com a queda da ponte. Era ele o responsável máximo. Nós, à militar, dizemos: o responsável é sempre o comandante. Mas há comandantes que gostam que o responsável seja o bode expiatório, que é o cabo quarteleiro; "Eh pá, queres ver que a culpa é do cabo quarteleiro?". Hoje, assumir responsabilidade é cada vez mais difícil.
Disse que a certa altura deu pulos de alegria e gritou "já ganhámos". O que ganhavam?
Assumir o poder, conseguir que o golpe frutificasse.
"Muitos dizem: 'Ah, o regime caiu de podre'. Está bem, mas alguém teve de fazer aquilo ruir e esse alguém fomos nós."
Assumir o poder para quê?
Para pôr em prática o programa do MFA, que tinha algumas linhas fundamentais. Primeiro, o pano de fundo da liberdade; recuperar a liberdade para os portugueses. Depois, criar condições para resolver o problema colonial, acabar com a guerra e obter a paz, tínhamos a consciência de que isso só seria possível se garantíssemos a democracia. Então outro objectivo imediato era garantir a democracia e, para isso — e este foi um elemento que nos uniu —, o instrumento principal eram as eleições livres para a Assembleia Constituinte, a realizar no prazo de um ano. Sabíamos que não bastava carregar num botão para a democracia aparecer. Tínhamos como pano de fundo, de facto, a construção de uma sociedade mais livre, mais justa. Hoje a imagem que se usa é que 99% da riqueza mundial está nas mãos de 1% da população. Em Portugal a riqueza também estava concentrada, era uma sociedade extraordinariamente injusta. Definimos que ocuparíamos o poder através de uma Junta de Salvação Nacional e a ideia era criar rapidamente um governo com civis — o I Governo Provisório só tem um militar, o ministro da Defesa — e faríamos eleições para entregar o poder a quem as ganhasse. E criámos condições para se poderem constituir partidos políticos, que era uma coisa proibida antes do 25 de Abril, só havia o partido do poder. Eu sabia bem como estávamos organizados, tinha sido o principal responsável e coordenador da estruturação do movimento, e até parece que foi extraordinariamente fácil, porque correu bem. Mas correu bem porque fomos competentes, soubemos aproveitar a experiência que nos deu a guerra colonial. Muitos dizem: "Ah, o regime caiu de podre". Está bem, mas alguém teve de fazer aquilo ruir e esse alguém fomos nós. De uma forma muito competente, quer na conspiração, quer na acção do 25 de Abril.
Antes de avançar, conte-me um pouco da sua história até ter decidido juntar-se às Forças Armadas.
Nasci numa aldeia perto de Castelo Branco, na Lousã. A minha mãe era doméstica e geria uma loja, o meu pai que era de uma família bastante humilde, começou a vida como pedreiro, a fazer parede na Serra da Estrela. Achou que não era profissão para ele e avançou para o negócio, fez-se à sua custa. Considero que terá atingido o nível de uma burguesia média, uma classe média. Era, na altura, um dos poucos caciques, digamos assim, locais, uma pessoa com algum poder e respeitabilidade na aldeia. Portanto, a família teve possibilidade de mandar os filhos estudar para o liceu de Castelo Branco. Fui estudar, era um aluno bastante razoável, muito bom a Matemática, não sei o que é um chumbo na vida, nem sequer a uma cadeira, quanto mais a um ano. Os meus pais queriam que eu fosse médico ou engenheiro e eu, que sempre gostei muito de praticar desporto — futebol, atletismo, andebol, voleibol — mas também gostava de liderar, era eu que organizava tudo, meti na cabeça que queria ser militar.
Tinha militares na família, de onde lhe veio a ideia?
Não. Quando fui estudar fiquei instalado em casa de uns padrinhos da minha mãe, um homem que me marcou profundamente no campo humano, o Dr. Eduardo Almeida Esteves, que foi capitão na Primeira Guerra Mundial, mas no fim mandou a vida militar às urtigas e voltou a ser professor de liceu. Até nesse aspecto se tivesse sido influenciado era negativamente.
Contava-lhe histórias da guerra?
Não, não. Ele ignorava a parte dele como capitão e apenas a sua vida como matemático contava, era um homem superiormente inteligente e que ganhou prestígio em Castelo Branco. Nunca se meteu na política, mas era claramente contra a ditadura. De tal maneira que nunca foi reitor do liceu de Castelo Branco porque jamais aceitou ser chefe da Mocidade Portuguesa e, nessa altura, os cargos acumulavam. De maneira que foi durante muitos anos vice-reitor. Na fase final da sua vida, era eu que lhe lia os livros, estava no seu quarto quando ele morreu... Influenciou-me bastante. Mas na questão da vida militar, foi o que eu sempre quis fazer, desde que me lembro. Os meus pais não gostaram, mas lá fui para o Exército. E, logo no primeiro ou segundo ano, dei por mim a escrever um texto a que chamei "A Queda dos Ideais de um Jovem".
O que o desiludiu?
Pensava que a vida militar seria uma mais limpa, mais honesta, mais leal, menos sujeita à hipocrisia. E fui encontrar também muita incompetência. Isso desiludiu-me. De tal maneira que numa pega que tive com um capitão, comandante da minha companhia no segundo ano — quase chegámos a vias de facto — e eu disse-lhe: "Vim para a tropa cheio de ideais, pensei que vinha encontrar um mundo de lealdade e, por sua causa e de outros iguais a si, já perdi a maior parte desses ideais". E ele, que era de Viseu e falava axim, respondeu-me: "Poix fique xabendo que ainda vai perder muitox maix". "Ai é isso que o capitão da minha companhia tem para me dizer?" "Xim, Xim". E tinha razão. Na Academia tirei o curso com uma perna às costas, mas nunca tive um espírito competitivo. Achava piada porque alguns diziam que eu devia ser o penico do posto [número 1]. Fiquei no meio da tabela. Mas, sempre que era preciso alguma coisa, chatear um professor, lá estava eu. Um general famoso terá dito aos seus militares num dia de aperto: "Se vocês soubessem o que custa comandar, gostariam de obedecer toda a vida". Até pode ser que seja verdade, mas eu prefiro comandar.
Entretanto mete-se o Ultramar...
Depois fui fazer a guerra. Eu não ligava nada à coisa política. A minha educação não tinha sido nada para aí voltada e na Academia Militar não havia política. Mas sempre tive um certo espírito de contestação, reconheço isso. Quando fui fazer a guerra, fui fazer a guerra convicto de que ia cumprir a minha missão como português. Evidente que a guerra não resolve nada, mas era preciso dar tempo aos políticos para resolver o problema e é essa a missão das Forças Armadas. Fui, mas primeiro passei por uns episódios rocambolescos.
"Pertencia ao curso em que estava o filho do ministro do Exército. Para o menino não ir à guerra, decidiram que os militares do quadro permanente a partir do meu curso só iam à guerra em capitães. Fomos o primeiro curso que não foi mobilizado."
Que episódios?
Eu pertencia ao curso de artilharia em que estava também o filho do ministro do Exército. E a certa altura éramos os intocáveis, uma situação caricata. Os militares eram mobilizados em tenentes, às vezes em alferes. Para o menino não ir à guerra, decidiram que os militares do quadro permanente a partir do meu curso só iam à guerra em capitães. Fomos o primeiro curso que não foi mobilizado. Mas, para atrasar a mobilização, atrasaram-nos a promoção, mantiveram-nos mais tempo em tenente. De tal maneira que a décalage dos cursos é de dois anos e o curso a seguir ao meu foi promovido e nós só fomos promovidos três meses depois. Mas a minha vida é cheia de imponderáveis deste tipo.
Que mais lhe aconteceu?
Tive um acidente de automóvel, considerado em serviço.
Lá ou cá?
Cá. Em Espinho. Estava em Aveiro, numa missão desportiva, um campeonato de ténis de mesa. Num intervalo em que não havia jogo — eu era, além de jogador, delegado da comunidade para o torneio —, aproveitei para ir ao Porto e no caminho tive um acidente. A responsabilidade foi minha, choquei com outro condutor, dono de uma fábrica de cortiça. Mais tarde quando o visitei tive de fugir à socapa, estava a ver que queria casar-me com a filha. [risos] A senhora teve mais de dez dias de incapacidade e eu acordei no hospital a perguntar quem era. Amnésia total e há ali uma hora depois do acidente que nunca mais recordei. Mas isto valeu-me um processo disciplinar, incompatível com a promoção, que chegou entretanto, mesmo que fora de horas. O curso a seguir ao meu começa a ser promovido três meses depois e, entretanto, o meu processo é arquivado sem consequências disciplinares. Sou promovido naturalmente, mantendo a antiguidade que devia ter, fico mais antigo do que os que estão a ser promovidos na altura. Quando começa a mobilização, tenho de esperar que sejam todos mobilizados para ser mobilizado também. Resultado: a juntar ao atraso à mobilização que já tinha, acrescento meio ano. Depois sou mobilizado como melhor desse curso para Angola.
"Na Guiné, a guerra abriu-me os olhos."
Ficou tudo resolvido.
Não. Entretanto há dois soldados do curso anterior ao meu que são mobilizados para a Guiné, onde tinham acabado de fazer uma comissão. Reclamam e o ministro resolve, pela primeira vez, determinar que não há ninguém que vá duas vezes seguidas para a Guiné. Desnomeia-os e faz uma troca comigo e com o penico: manda-nos a nós para a Guiné e aos outros dois para Angola. Considerei aquilo uma pulhice de todo o tamanho e reclamei, fiz uma exposição ao ministro, que não me recebe. Não aceitou, e eu estive pura e simplesmente para me recusar a ir, porque não foi assim que calhou — ainda que considerasse justo que os outros dois não fossem para a Guiné. Ainda falei com um advogado, que me disse que o ministro tinha discricionariedade para nomear os militares. Como eu tinha tido um problema grave num joelho, pensei: vou passar à reserva. Fui ao médico, que me confirmou: "Se quiser passar à reserva, com este joelho é já". Mas depois pus-me a pensar que ainda iam dizer que eu não ia à guerra porque estava com medo. E então decidi que ia, mas quando regressasse deixava a tropa. E fui. Na Guiné, a guerra abriu-me os olhos.
"Eu estava disposto, se não me deixassem sair, a desertar"
De que maneira?
Percebi que a guerra não era minha. E quem estava certo era quem estava a lutar contra nós, quem estava a lutar pela sua independência. Decidi que não faria mais acções ofensivas e vim decidido a não voltar para a guerra. Entretanto surgiu a hipótese de tirar o curso de criptólogo, o que me dava uma folga, ficava inamovível entre quatro e seis anos, o que me dava-me tempo para preparar a saída. Eu estava disposto, se não me deixassem sair, a desertar. Mas ao mesmo tempo vim na disposição de, se pudesse, ajudar a dar um piparote nos fascistas. Criou-se essa possibilidade e eu envolvi-me. Tenho a noção de que fui uma peça importante em todo o processo e já não voltei a pensar em sair da tropa. Hoje sinto-me relativamente realizado na vida porque, como costumo dizer, a juntar àquilo que o poeta um dia disse que o homem tinha de fazer para se realizar na vida, ter um filho, escrever um livro e plantar uma árvore, participei numa coisa chamada 25 de Abril de 1974.
Matou, na guerra?
Não sei dizer. Tive confrontos, é natural que granadas, morteiradas, obuses enviados por mim, sob as minhas ordens, tenham provocado baixas.
Viu morrer?
Vi. Em circunstâncias complicadas. Aliás, a primeira circunstância em que isso me aconteceu é que me abriu os olhos. Tive a sorte de não ter tido nenhuma baixa entre o pessoal que comandei e levei daqui, daí um livro que escrevemos com histórias da companhia e que se chama "No Regresso Vinham Todos". Mas, de facto, numa operação de rotina em cima da fronteira com o Senegal, uma operação longa, de mais de um dia, descobrimos um poço e começámos a encher os cantis. A água era amarela. E nós tínhamos uns comprimidos para colocar na água para matar a bicharada e como os soldados reagiam a pôr aquilo, porque tinham de esperar para beber e a água ficava com mau sabor, os soldados enchiam o cantil, abriam e eu enfiava um ou dois comprimidos. Levava dois grupos de combate e um grupo de milícias e eu fiz a operação sempre à frente no meio do grupo de milícias. Iam uns seis à frente, depois ia eu, mas nessa altura mandei ir avançando e fui ficando para trás. Até que pedi a um soldado para me substituir para retomar o meu lugar na frente. Nisto, rebenta uma emboscada, oiço os tiros, chamo o homem do morteiro para junto de mim, ouvimos o barulho de viaturas que depois se afastam. De repente começam a aparecer-me uns indivíduos ensanguentados e há um que me diz: "Capitão, dois morreram". Depois acabou por morrer mais um, que eu assisti. Eram os milícias. E se eu não tivesse ficado a colocar os comprimidos na água e estivesse no meu lugar, não estava aqui a contar a história. No livro eu escrevo: "bendita água suja". E tive outra cena de muita sorte, que eu chamei de sorte em segunda dose, que é um ataque ao aquartelamento, também em condições muito complicadas, que fizemos a um acampamento do PAIGC [Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde]. Eles reagem e há um alferes que grita: "Cuidado!". Olho para o lado e a dois palmos de distância estão três ou quatro balas incrustadas numa palmeira ao nível da minha cabeça.
Contaram-me uma história trágica, enganaram-se na pessoa, então.
Havia duas companhias no mesmo aquartelamento, a minha e outra. Há uma noite trágica. Chovia e fazia trovoada, escuríssimo, via-se muito mal, e um grupo de combate da outra companhia, se fosse a minha não teria tido essa sorte, estava fora a fazer uma operação de segurança de rotina. Os aquartelamentos eram geralmente atacados à noite e nós púnhamos uns grupos a três, quatro, cinco quilómetros para prevenir. Mas o tempo estava de tal maneira que não havia condições para atacar fosse o que fosse e esse grupo resolveu regressar ao aquartelamento. Quem estava a fazer a segurança era pessoal dessa companhia. E há um furriel que vai à frente para alertar o sentinela. Não se sabe o que se terá passado, se o sentinela estaria a passar pelas brasas e acordou sobressaltado, o que é certo é que vê um vulto e dispara. Provavelmente se tentasse mil vezes não acertava, mas acertou à primeira na omoplata do furriel e a bala resvalou para o pulmão. Se ele tivesse sido evacuado de imediato, dizia o médico — e estavam lá dois, um de cada companhia — safava-se. Nessa mesma noite, um soldado meu é atingido na barriga por um camarada que está a limpar a G3. O buraco de saída era do tamanho de um ovo. Passados um ou dois meses estava de volta.
O seu joelho, como deu cabo dele?
Num jogo de futebol. Fiz uma ruptura de ligamentos e fracturei o menisco. Costumo dizer que se fosse futebolista teria sido bem tratado, mas como era oficial do Exército tive de andar a participar dos médicos para ser tratado. A certa altura diziam que eu andava no golpe para faltar à instrução. Era preciso ser masoquista, para querer ser operado e tudo. Felizmente o ligamento tinha religado antes da operação, entretanto fiz uma artrose, que na altura era considerada incurável. Isso alterou até a minha maneira de estar, comecei a ver que havia coisas que não podia fazer. Até na maneira de ser acho que teve influência. Hoje sou deficiente das Forças Armadas, tenho 39% de incapacidade, a artrose é complicada, ainda não me decidi a pôr uma prótese.
Passou-lhe pela cabeça desertar. Muita gente teve esse pensamento, por um ou outro motivo, mas quero falar-lhe num caso particular: Manuel Alegre, condecorado recentemente pelo presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Foi muito contestada, esta condecoração.
Há uma especulação muito errada à volta de Manuel Alegre. O Manuel Alegre fez a guerra, foi evacuado, era um homem contra, tinha actividade política e quando estava aqui soube que ia ser preso por causa da actividade política que tinha e resolveu desertar. Ele era contra a guerra e mesmo enquanto lá esteve manteve actividade política contra o regime. Não sei, nem nunca lhe perguntei, se teria fugido na mesma se não tivesse recebido a informação de que vinham prendê-lo ou se, porventura, teria regressado à guerra. Ele assumiu a deserção e foi lá para fora para uma actividade em que claramente fazia propaganda contra a guerra. Mas acusam-no de coisas impensáveis, como de dar informações aos terroristas sobre as nossas operações aos microfones do inimigo. Ele assumiu posições políticas contra a guerra, isso sim. Lembro-me de ter dito várias vezes aos meus homens: "Vocês têm duas opções de vida: uma é viver em Portugal, outra é viver fora de Portugal. Se quiserem viver em Portugal têm de ir à guerra e regressar sãos e salvos. Se não for fundamental para vocês viver em Portugal, então, desertem. Mas desertem e não se deixem apanhar, porque um desertor apanha entre dois e oito anos de prisão".
Aconteceu com algum soldado seu?
Tive uma situação caricata, um indivíduo considerado desertor, um pobre diabo. Quando vim da Guiné estive seis meses a comandar uma companhia em Campolide e como havia muito pessoal os soldados estavam mais tempo de licença do que no quartel. Houve um que esteve um mês de licença e depois não se apresentou. A certa altura tivemos de dar o homem como ausente sem licença e começou a aproximar-se o tempo da deserção. Pedi ao sargento para saber o que se passava. Acontece que o homem aproveitava a licença para ganhar sustento para a família e continuou a trabalhar, nem pensou. Pedi para que regressasse rapidamente, mas o tipo apresentou-se um dia depois do prazo. Fui ao comandante, expliquei a situação e pedi para alterarmos a data de entrada. O comandante não deixou. O rapaz foi em prisão preventiva e acabei por ser chamado a tribunal, já nem estava em Campolide. Saiu em liberdade, mas cumpriu aqueles seis ou sete meses de prisão preventiva.
Como é que se situava e situa hoje politicamente?
Como militar, quadro permanente, não podia ter partido político. Uma das características do movimento foi a nossa natureza radicalmente independente em relação a partidos políticos, eu e o Melo Antunes dizíamos sempre isso. Agora o meu espaço ideológico está formalmente ocupado pelo Partido Socialista. Se na prática eles cumprem com o que diz a teoria, isso é outra coisa.
Já votou sem ser PS?
Não sei se alguma vez... Tenho impressão que já houve uma vez que me abstive. Ou seja, votei em branco, muitas vezes desiludido com o candidato.
Com quem se desiludiu?
As desilusões fazem-se em relação às pessoas em que se acredita. Os inimigos, costumo dizer, quanto pior se comportarem, melhor, nunca desiludem. Mas o arrependimento não faz parte do meu dicionário, mesmo que as decisões que tomo, mais tarde ou mais cedo, venham a revelar-se erradas. Ou seja, na altura em que as tomei, em consciência, eram as que considerava correctas, de forma honesta. Isso não dá direito a arrependimento, só a desilusão. Tive algumas, principalmente no campo militar. Apostas que não funcionaram.
Quando falou no 25 de Abril mencionou quatro aspectos fundamentais: liberdade, paz, democracia e justiça social. Vou pedir-lhe que caracterize cada um destes elementos hoje.
Nenhum destes objectivos é absoluto. Mas, dentro do possível, penso que somos livres. Portugal é hoje um país livre. Se podíamos ser uma sociedade mais livre? Com certeza, não estou satisfeito com a liberdade que existe. Mas o que é facto é que ela existe. A justiça social esteve quase a desaparecer. O que se conseguiu com o 25 de Abril nos primeiros tempos regrediu de uma maneira impressionante e estivemos à beira de bater no fundo e criar buraco. Hoje, Portugal recuperou desse ponto, a que chegou, nomeadamente com a troika e com o governo de Passos Coelho, em que tudo o que cheirava a Abril era para destruir. Mas estamos muito aquém de onde poderíamos estar e daquilo que almejámos e sonhámos em determinada altura e até daquilo a que se chegou em determinada altura. Mas estamos claramente melhor do que estávamos antes do 25 de Abril.
Paz, agora num contexto geopolítico bem diverso?
Não estamos em guerra. Embora haja por aí quem ache que devíamos estar. Os falcões querem guerra e querem acelerar o regresso à guerra fria. Mas estamos em paz. Menos do que devíamos estar, temos alguma actividade no campo bélico, mas estamos em paz.
Democracia?
A democracia também nunca é absoluta. Funcionou, foi a última coisa que acabou por funcionar e evitar a débâcle total. Encontrou-se uma solução alternativa, que pode não ser ideal, mas estamos unidos à volta do essencial. As forças políticas que interessam conseguiram isso. Espero que continue assim, pessoalmente faço votos para três coisas: primeiro é que a força maioritária, por ser maioritária não se convença que tem de impor cheques em branco aos minoritários; depois que os minoritários não se convençam que por serem necessários têm de se transformar em maioritários e, por último, espero que o Partido Socialista venha a ser a força mais votada além, mas não atinja a maioria absoluta.
Não gosta de maiorias absolutas?
Acho que já demonstraram ser altamente negativas. Porque a democracia impõe que a força maioritária, mesmo que seja absoluta, oiça e tenha em consideração todas as opiniões, mesma da oposição. E não é entrar por um ouvido e sair pelo outro, é ouvir e ter em consideração.
Antes a esquerda era perseguida, os comunistas eram clandestinos. Hoje há pessoas que têm vergonha de dizer que são católicas ou mesmo de direita. O que quero perguntar-lhe é se os papéis de inverteram ou se, de certa forma, não continuamos a viver um clima de intimidação?
É muito complicado, Mas isso existe em todos os sentidos e há novamente o medo, há o medo. Mas oiça, ao longo destes anos nós várias vezes, aqui na Associação 25 de Abril, tratámos o tema do medo. Porque há forças que tentam intimidar. E há pessoas que se deixam intimidar. Eu sou dos que não se deixa intimidar.
Mas não é estranho um tempo em que não se deixar intimidar é um acto de coragem?
Sim, mas a vida é assim, infelizmente. Vai ser difícil alterar isso. No que me diz respeito luto para mudar isso. Mas que é complicado é.
Esteve no Conselho da Revolução do princípio ao fim. Qual foi o seu papel?
Desempenhei duas funções, uma delas sempre. Fui o moderador do Conselho da Revolução, as reuniões eram dirigidas por mim. Depois fui o porta-voz, até ir comandar a Região Militar de Lisboa, então achou-se que o comandante não devia acumular com a função de porta-voz do Conselho da Revolução e fui substituído pelo Vítor Alves e pelo Sousa e Castro. E mais tarde regressei. Dentro do Conselho da Revolução fui o único que pertenceu à comissão política e à comissão militar. Eu coordenava a comissão política e coordenei a reunião que deu origem ao pacto da acção política, mas nunca deixei de estar interessado na questão militar.
Deu-se particularmente bem ou particularmente mal com algum governo ou governante?
Tive boas relações com o Vasco Gonçalves, depois fomos adversários, tenho noção de que, tal como tinha sido a besta negra de Spínola, depois fui a besta negra do Vasco Gonçalves.
Porque foi a besta negra de Spínola?
O Spínola tinha muito mais aspectos negativos que positivos. E fui eu talvez a pessoa que mais lutou para que ele não assumisse o poder a seguir ao 25 de Abril. E quando cheguei a Lisboa, no dia 29 de Abril de madrugada, as coisas mudaram um bocadinho e muita gente diz que talvez tivesse sido diferente se eu cá estivesse no 25 de Abril, talvez o Spínola não tivesse assumido a rendição do Marcello. Se eu cá estivesse, teria sido o Salgueiro Maia a assumir esse papel, o Marcello exigiu que fosse um general, mas ele não estava em condições de fazer exigências. Eu sabia que o Spínola tinha um projecto de poder pessoal. Era também um ditador em potência, gostaria de ter instituído a chamada democracia musculada. Resolvemos os problemas do fascismo, mudam as moscas, mas o resto continua na mesma. Depois fui também [uma besta negra] em relação ao Vasco Gonçalves. Com o Pinheiro de Azevedo tive boas relações. Manifestei-me contra a nomeação dele para primeiro-ministro, mas depois aceitei os argumentos... E tive boas relações com vários primeiros-ministros, com Mário Soares... Tive muito más relações com Sá Carneiro, que entrou numa luta contra o Eanes e contra o Conselho da Revolução.
Em mais nenhuma democracia existia um Conselho da Revolução...
Em mais nenhum sitio do mundo existiu um golpe militar com os militares a imporem a passagem do poder para a sociedade civil. A Constituição da República é aprovada depois de umas eleições em que votaram 92% dos eleitores inscritos. E é aprovada por 92% dos eleitos, ou seja, é uma decisão ampla. De que faz parte um pacto assinado entre o Conselho da Revolução e os partidos políticos com assento na Assembleia da República. O que é facto é que o primeiro pacto foi leonino, mas depois do 25 de Novembro é o Conselho da Revolução que tem a iniciativa de o rever, e no segundo pacto pedimos aos partidos sugestões de alteração e tentamos conjugá-las. Dou-lhe um exemplo que se passou comigo e com a delegação do CDS, presidida pelo Freitas do Amaral. O Freitas do Amaral dizia: "O meu partido não pode aceitar essa alteração que diz que vamos a caminho de uma sociedade socialista, somos um partido democrata-cristão". E eu disse: "Nós pretendemos um pacto que seja assinado por todos. Se não pusermos lá isso, os outros todos não assinam, a começar no PPD". [Não era só o PC, era o PS, o PPD, a UDP, o MDP. Todos.] Temos de encontrar uma solução". E fomos pensar. Até que eu digo: "E se nós adjectivarmos o termo socialista? A caminho do socialismo à portuguesa." E eles foram pensar. Isto foi no Ministério dos Negócios Estrangeiros, numas salas que havia lá, e passados uns dez minutos voltámos a reunir, eles aceitaram e isto ficou no segundo pacto. Mas era impensável aparecer uma força política a dizer que ganhou as eleições e por isso queria acabar com a delimitação da lei de sectores privados como previa o seu programa se isso não estava na Constituição. E a grande polémica com o Sá Carneiro foi essa. Sabia-se que o Conselho da Revolução era para acabar, estava definido que existira durante o período de transição e que o período de transição terminaria com a revisão constitucional, desejável para 1980. Agora, se os partidos na Assembleia da República não se entenderam quanto a ela... E quando se entenderam foi feita de uma forma miserável, na minha opinião, porque deram a entender que nos atiraram borda fora contra a nossa vontade — aliás, eu disse ao Mário Soares, essa não vos perdoarei nunca. Andámo-nos [militares] a prender uns aos outros para impor a passagem do poder para a sociedade civil e depois os políticos vêm dizer que nós só saímos empurrados?! E não digo mais nada para não usar vernáculo.
"Posso dizer-lhe que sem Conselho da Revolução não teríamos hoje a democracia que temos. O Sá Carneiro é aquele tipo que só era democrata se tivesse a maioria do lado dele."
O Conselho da Revolução impediu que a democracia se estabelecesse mais rapidamente?
Posso dizer-lhe que sem Conselho da Revolução não teríamos hoje a democracia que temos. O Sá Carneiro é aquele tipo que só era democrata se tivesse a maioria do lado dele. Tem o nome em mais praças, ruas e avenidas do país, até num aeroporto, mas a sua grande virtude, entre aspas, foi ter morrido num desastre de aviação quando era primeiro-ministro. Ficou na história. Se não tivesse morrido, o candidato dele, que era o Soares Carneiro, perdia na mesma e ele ia por aí a baixo.
Como olha hoje para a instituição militar?
Muito maltratados. Aliás, quem me disse isso em 1981 ou 1982, quando estávamos a criar a Associação 25 de Abril, a fazer os estatutos, e com quem tive longas conversas, foi o Almeida Santos. Dizia: "Vasco Lourenço, é cíclico que só se dê importância às Forças Armadas quando há guerra. A seguir à guerra, as Forças Armadas vêm por aí abaixo no conceito da população. E vocês derrubaram a ditadura e implementaram a democracia, apanham pancadaria a dobrar".
Mas não é só culpa dos outros. De repente houve a história dos comandos, depois das cantinas da Força Aérea, depois Tancos...
A responsabilidade é mutua. o poder tem olhado para as Forças Armadas como uma coisa secundária, usando-as e não as valorizando. Isso cria desprestígio. Não posso querer ter um instrumento que utilizo no campo diplomático — e hoje as Forças Armadas são o grande instrumento de Portugal na sua política externa — e depois não lhe dar meios para executar bem as missões e, inclusivamente, criar casos, situações. Continuo a afirmar que Tancos foi uma farsa.
Que farsa?
Pode ter havido desaparecimento de material, mas nunca houve assalto nenhum. É criada uma farsa, com a conivência de militares e com a participação de políticos para tentar atacar a geringonça. Mas eu denunciei isso de imediato. Agora, se temos como responsáveis pela Defesa Nacional pessoas incapazes...
O ministro da Defesa Nacional é incapaz?
Eu não lhe quero chamar incapaz, mas que é muito incompetente, é. O Partido Socialista tem o hábito de ir à procura com uma candeia da pessoa que sabe menos de Defesa Nacional, vi isso quando foram os Estados Gerais do PS, em que colaborei. Depois escolhe-a para ministro da Defesa Nacional. Mas quando é o PSD, nomeia um ministro como Aguiar Branco, que é que todos, só lá vai para fazer negócios. E quando foi Paulo Portas, foram os submarinos e o que se viu. E as Forças Armadas têm sido campo para este de acção. Depois querem ter Forças Armadas capazes? Muito bem se têm portado as Forças Armadas. O militar é um bicho com defeitos, mas tem muitas qualidades. Num país como Portugal a passagem pela fileira do serviço militar devia ser obrigatória, devia fazer parte do ciclo de formação de um cidadão. Agora, um dia? Só serve para folclore e gastar dinheiro. Oito a doze meses seria o ideal.
É membro do Grande Oriente Lusitano. Porquê maçon, desde quando maçon?
Fui para maçon há uns 20 anos porque acho que os valores que a maçonaria defende são sensivelmente os valores que eu defendo: liberdade, igualdade, fraternidade. É evidente que a maçonaria, que é feita de seres humanos, tem defeitos. Mas penso que apesar de tudo a maçonaria tem estado, ao longo do tempo, do lado certo da história. E é responsável por grandes avanços culturais, principalmente em matéria de direitos do homem.
Pode dar-me um exemplo?
A pena de morte. Agora, há várias maçonarias e há quem vá para a maçonaria, que por princípio não deve entrar em jogadas de poder, para tentar influenciar. Para mim um maçon, e é assim que eu me assumo, é acima de tudo um homem digno. Não entro em esquemas de jogadas de poder, corrupções, etc. E ninguém dá ordens lá dentro. Os maçons são, essencialmente, seres livres.
Quem é que o convidou?
Vim a ser convidado insistentemente para entrar para a maçonaria desde 1976. Foram maçons que me convidaram e insistiram comigo. Convenceram-me. Desiludi-me alguma coisa, mas com a resultante estou satisfeito.
Mário Soares também insistiu para que fosse candidato à presidência da República contra Ramalho Eanes e não aceitou...
Aqui também resisti durante muitos anos.
Se ele tivesse insistido mais teria acabado por aceitar?
Insistiram e nunca aceitei. Fui muito tempo um putativo candidato. À presidência da República e à presidência do Sporting Clube de Portugal também.
"[a presidência do Sporting] Precisava de um 25 de Abril ali dentro, também."
É verdade, o karma Pinheiro de Azevedo. Como se resolve a presidência do Sporting, com uma revolução?
Precisava de um 25 de Abril ali dentro, também. Mas o que é que hoje não precisava de um 25 de Abril entendido enquanto um acto de regeneração, de libertação, de limpeza ética e moral? Infelizmente, praticamente tudo.
A terra a quem a trabalha?
Nunca me revi nessa política. Isso foi muita demagogia. A posse da terra é um direito das pessoas, não sou pelo poder popular, isso da terra a quem a trabalha, das fábricas a quem as labora. Sou é contra o abandono das terras. Se não as querem cultivar, devem ser expropriados.
"Não consigo perceber como é que depois disto nós damos dinheiro para salvar bancos, enquanto o Serviço Nacional de Saúde, a Educação, a Segurança Social vão sendo prejudicados"
O que é para si é hoje incompreensível?
Não percebo como é que o governador do Banco de Portugal ainda lá está depois desta débâcle toda. Não percebo como é que a justiça não actua e as corrupções terríveis que tem havido no país não dão direito a prisões concretas. E só Sócrates é corrupto? Não consigo perceber como é que depois disto damos dinheiro para salvar bancos, enquanto o Serviço Nacional de Saúde, a Educação, a Segurança Social vão sendo prejudicados. Isto num estado de direito tem muito que se lhe diga.
A Associação 25 de Abril ainda faz sentido nos dias que correm?
A Associação, da qual fui impulsionador, presidente da comissão instaladora, presidente da direção do início até agora, tem dois objetivos principais: primeiro, promover, consolidar e defender os valores de Abril. Fizemos a criança, não podemos atirá-la para os braços dos outros, temos o dever de continuar a lutar pelos mesmos valores. Em segundo lugar, trabalhar para o amadurecimento da democracia, a sua consolidação. É preciso separar as forças militares ou de segurança da sociedade. Ninguém vai dizer a outro para bater ou prender o pai ou o irmão ou o primo. E nós podemos fazer a ligação entre o civil e o militar. A Associação justifica-se numa posição não partidária, isenta, aberta.
[Texto atualizado às 20:30]
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