Gosto de rugby. De ver. Do que representa. Do que nos oferece e do que aprendemos. Cresci com o Torneio das “5 Nações”, nos idos anos 80. Nessa altura, andar vestido com as camisolas das seleções da Escócia ou da África do Sul era sinal de “sucesso” noutros campos. Não escapei a essa moda. Nem tão pouco de ter jogado (por pouco tempo). Fui e sou adepto. E espectador. E mais, sou pai de um jogador sub-12. Ele, a quem foi detetada epilepsia, dislexia e outras “ias”, após o “empurrão” do médico, entrou no maravilhoso e diferente mundo do rugby. Um universo de valores, entreajuda, respeito, de amizades e ensinamentos para a vida.
Atualmente disputa-se o Campeonato do Mundo de Rugby em Inglaterra, evento que está a colocar a modalidade no epicentro das conversas sobre o mundo da bola (oval, no caso), seja pela espetacularidade do ambiente, pelo vídeo-árbitro ou pelo fair play que se vê a cada jogada deste jogo bruto disputado por cavalheiros. E eis que chegou a altura de usar os três bilhetes para o jogo da fase de grupos entre os All Blacks e a Geórgia, que comprei ... em novembro de 2014. Para o grande dia: 2 de outubro, em Cardiff, no País de Gales
De manhã, bem cedo, partimos. Feita a aterragem em Londres, seguiu-se uma verdadeira romaria até Cardiff, Estádio Millennium, o palco do encontro. Uma viagem de três gerações de uma família, do meu pai ao meu filho. Ele que ambiciona jogar pelos “Lobos”, é adepto do País de Gales e que tem no seu imaginário, desde que joga (já lá vão 4 anos), ver ao vivo e a cores os homens de preto a dançarem o “haka”, aquela dança tribal com que os All Blacks presenteiam os seus adversários e adeptos antes dos jogos.
No Estádio Millennium estavam 69109 pessoas. Leram bem. 69109 galeses, ingleses, georgianos, portugueses (denunciados por cachecóis do seu clube...de futebol) e, claro, uma enorme massa humana, que veste cor preta, a legião de adeptos da Nova Zelândia. Bancadas repletas de jovens universitários e de reformados, reformados de pernas pesadas....mas que bebem e cantam como adolescentes, homens e mulheres, pais e filhos, famílias inteiras que ali se deslocaram para presenciar, ao vivo e a cores, aquele momento. Os de preto ainda acrescentaram um adereço identificativo: o feto, planta transformada ícone cultural do país das ovelhas, estava estampado em caras, braços e tornozelos.
Os anti-pop stars
Os olhos de quem lá estava e quem vê em televisões, tablets e outras plataformas, concentram-se no jogo. No campo e fora dele, este é especial. Os jogadores não são pop-stars desportivos, mas uns correm como o Bolt, outros têm os braços do Mike Tyson e ainda a “beldade” do Herrera (jogador de futebol do FC Porto). Não recebem salários de milhões, embora sejam seguidos por outros “ões” nos quatro cantos do mundo. Uns enrolam fitas à volta da cabeça, outros têm as orelhas que mais parecem pedaços de carne picada, tantas vezes a cabeça andou a roçar em pernas, troncos e membros. O sangue (ou lama) na cara faz parte da imagem de marca de qualquer fotografia. Ou selfie.
A humildade caracteriza-os a todos. É normal ver jogadores transportarem água para dentro de campo, entregando-a aos colegas que se contorcem com dores após uma placagem mais forte ou disputada uma bola na molhada (ruck).
Uns enrolam fitas à volta da cabeça, outros têm as orelhas que mais parecem pedaços de carne picada, tantas vezes a cabeça andou a roçar em pernas, troncos e membros. O sangue (ou lama) na cara faz parte da imagem de marca de qualquer fotografia. Ou selfie.
Uma organização de pontapé para a frente e tudo ao molho
O jogo pauta-se por uma estratégia muito bem definida, embora aos olhos de quem pouco ou nada perceba mais pareça um jogo do pontapé para a frente, todos ao molho e fé em Deus numa espécie de bullying. Mas não é. Quem aqui joga são os bons, embora muitos tenham cara de maus. Cada qual desempenha um papel: o A depende do B, que por sua vez depende do C. Numa verdadeira coligação de forças, em formação ordenada, fazem parte todos do mesmo partido. Não deixam cair ninguém. Mesmo. Não há divisões nem cisões. Viram à esquerda e à direita, recuam e avançam com um objetivo: chegar lá à frente. Para marcar o ensaio. Sem individualismos, egoísmos ou excessos de protagonismos. Nem mesmo do árbitro que, com as câmaras ao peito mais parece um “robot cop”. Estranhamente, ou não, todos o respeitam. A ele e ao vídeo-árbitro, aquela pequena câmara que permite tirar dúvidas nos lances polémicos. Sem perdas de tempo, para que siga a bola e haja verdade desportiva. E no final, em corredor, vencedores e vencidos, todos se cumprimentam e batem palmas à vista de todos.
Um ensaio para a vida
Adiante. O jogo a que assisti estava marcado para as 20h00. Vou confessar-vos: foram mais de 6 horas de viagem para chegar ao Estádio Millennium, num trajeto que se faz em 2h30m. Quando atrás escrevi “romaria” não foi ao acaso...
Dez minutos antes do grande acontecimento conseguimos estacionar o carro a “15 minutos a pé ou 10 a correr”, conforme informação dada à saída do parque de estacionamento. Ouvir, sentir e ver o “haka” estava à distância de uma corrida.
Em passo acelerado, com os meus 44 anos “puxei” pelo meu filho (11) e este pelo meu pai (a caminho dos 70). À entrada do mítico estádio ouvi um desabafo de alguém ao nosso lado que há 30 anos esperava viver o “momento”, mas que falhou devido ao trânsito. Também nós tínhamos perdido a dança. A tristeza de segundos foi ultrapassada por umas palavras, entre risos. “Não faz mal pai, não podíamos deixar o avô para trás”. Pois não. Esse não seria o espírito do rugby. E nem aquilo que nos ensina. Fomos uma equipa. Somos uma família. Daqui a uns quantos anos não sei se teremos hipótese de, juntos, concretizar o tal sonho. Sei somente que uma criança de 11 anos marcou, para mim, um ensaio para a vida.
Ontem, 17 de outubro, começaram os quartos de final. Uma luta entre os planisférios Norte e Sul. Escócia-Austrália; Irlanda-Argentina; França e País de Gales-África do Sul e Nova Zelândia-França. Este último com a particularidade de juntar os finalistas da edição de 2011 na mesma cidade (Cardiff) onde os gauleses já bateram o seu adversário (nos quartos de final em 2007). Gostava de estar lá. Mas resta sentar-me à frente da televisão, para à hora marcada, ver, ouvir e sentir o “Ka mate! Ka mate! Ka ora! Ka ora!”.
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