António Fontes, velejador português que participa na edição 2017-2018 da Volvo Ocean Race (VOR), está em Lisboa. Para um breve descanso. A tripulação da equipa Scallywag, onde seguia, e segue, sofreu um trágico acidente. Um dos tripulantes, John Fischer, num episódio de tempestade e forte ondulação, foi cuspido do barco e desapareceu nos furiosos mares do Sul quando estavam a caminho do Cabo Horn. António Fontes estava a bordo.
Concedeu uma entrevista no local onde começou a competir. No Clube Naval de Lisboa, no restaurante com vista para o Tejo, em Belém, perto do Padrão dos Descobrimentos.
O aperto e cumprimento de mão inicial denunciam uma mão áspera. Calejada. Sal, frio e o “puxa” velas, são os três elementos que justificam o estado. Em mau estado ficou também o braço oposto, braço que partiu durante uma etapa (a 3ª, na ligação entre a cidade do Cabo, na África do Sul e Melbourne, na Austrália), numa fase da viagem à volta do mundo em que, curiosamente, passou quase sempre dentro do barco a ver os ventos e marés no computador.
António Fontes, entrou nesta aventura e participou na primeira etapa com a equipa AzkoNobel, tendo regressado à equipa que o veio buscar ao Boatyard de Lisboa, a Scallywag.
Velejador bastante reservado, falou com o SAPO24 sobre a experiência na VOR. A primeira viagem de circum-navegação em participa. E onde tem feito de quase tudo um pouco. No convés ou popa e, na fase inicial, como navegador.
Tem havido regatas muitas duras nesta edição?
Sim, duras. Esta (Auckland, Nova Zelândia, a Itajaí, Brasil), então, foi bastante dura.
Foi a mais dura?
Sim. E a terceira etapa (Cidade do Cabo, África do Sul a Melbourne, Austrália)... e parti o braço (n.d.r. a lesão fez com que ficasse de fora da ligação Melbourne-Hong Kong).
Está com braço partido, desde então. Há quanto tempo?
Foi a seguir à cidade do Cabo. Em dezembro, ainda. Agora já está bom. Nessa etapa, que é dura também, acabei por estar pouco tempo no convés. Dizem que supostamente esta (7ª etapa, Auckland-Itajaí) foi bem pior.
Nessa etapa (a 3ª) acabaste por passar a maior parte do tempo dentro do barco?
Sim. Estive três dias “cá fora”, que foram dias bons. Quando começou a ficar mau tempo foi quando parti o braço. Depois só via as tempestades no computador.
E nesta última etapa (7ª que fez a ligação entre a Nova Zelândia e o Brasil)?
Só vi cá fora (risos), não vi nada lá dentro.
Ou seja, partes o braço quando está ao serviço no computador, nada te acontece quando estás “cá em cima”? Tem sido difícil?
São condições muito extremas. Para além disso tudo foi o frio. Apanhamos três ou quatro dias de neve.
Esta VOR é marcada por acidentes: A morte do pescador, em Hong Kong (acidente provocado pela equipa da Vestas) e o que aconteceu no vosso barco com um experiente velejador, John Fischer, que perdeu a vida. Tem que se amolecer as regatas, ou ao invés, continuar a endurecer? Do ponto de vista do velejador qual a tua opinião?
Acidentes acontecem sempre e vão acontecer sempre. Tanto um como outro são completamente aleatórios por mais segurança que pudéssemos ter, iam sempre acontecer. Claro que, no acidente do Vestas, idealmente um dia toda a gente terá um sistema de AIS (Automatic Identification System, em sigla inglesa, que significa sistema de identificação automática que serve para identificar e localizar embarcações) mas hoje ainda estamos longe disso. E mesmo o próprio AIS não está completamente robusto. Nós, nesta etapa, não tínhamos AIS. A antena estava estragada. Há ainda trabalho e evolução de tecnologia que possa permitir ajudar a ter mais robustez de sistemas. Agora, em termos de regras de regatas, em si, são acidentes que acontecem.
Do acidente, o que aconteceu, não sei o que podes falar. Foi tomada uma decisão. Quem toma e quem participa. Não participaste, certo?
Foi o skipper (David Witt). Em contacto com a própria Volvo e o concelho de regatas. E por isso fomos para Puerto Mortt (Chile). Punta Arenas não tem nada. Logisticamente já houve barcos a irem para lá. Mas depois na prática não se consegue fazer grande coisa. A Volvo já lá esteve inúmeras vezes em Punta Arenas e já tiverem este problema várias vezes.
O que tem sido mais difícil nas etapas em que participaste. Entre estares à frente do computador, como navegador, ou andares de um lado para o outro no barco em posições diferentes?
Nestas últimas etapas já não vou praticamente ao computador. Faço de tripulante normal. Leme, trimmer...
O que é que te sentes mais habilitado a fazer. Onde é que achas que podes fazer a diferença?
Numa situação normal estão quatro no convés. Três deles estão a trabalhar, um ao leme, outro com a escota ... o leme é o mais interessante. Depois em manobras, se calhar em regatas inshore vê-se mais isso, estou a fazer os rudders e a ajudar. Também não é muito interessante, por si. Estou a olhar para o número e não tem muita técnica. Não sei ... talvez mais para a proa. Em offshore, acabamos por fazer um pouco de tudo. Temos que saber fazer tudo.
O que tens aprendido nesta regata à volta do mundo?
Muito. Muito. O que se aprende de barco, em si; tecnicamente e mesmo pessoalmente também se aprende bastante. De relações interpessoais. No fundo estamos a viver 10 pessoas juntas em constante stress...
Calculo que não param para falar do tempo. Ou antes, até falam, mas é porque o tempo mudou e tem que atuar? Não há momentos de pausa.
Sim, sim. Tivemos mais tempo para falar na passagem pelo Equador. Não é menos stressante, mas pelo menos conseguimos falar. Nesta etapa praticamente não falamos. Estamos sempre a trabalhar. Todos os minutos que temos para nós é para ir para a cama dormir.
Contabilizas as horas que dormes ... sei que fazem turnos?
Houve alturas em que estive mais de 24 horas sem ir à cama porque tínhamos manobras na altura em que estava a descansar. Nem conseguia tirar o fato. Ficava ali, em stand by e depois íamos para a manobra.
Quanto tempo fazem de descanso e trabalho?
Nos, é 3-3. Trabalhas três horas, descansas três. Mas uma manobra é uma hora. Uma hora e meia. Por vezes se a manobra fosse a meio do descanso, não havia descanso. Íamos um instante lá abaixo, mas nem dava para tirar o fato. Só tirar o fato demora um quarto de hora. Nem dá tempo. E depois ainda temos que comer nessas três horas. É por vezes bastante curto. Tem que ser muito racionado.
Preferes estar, por vezes, 24h de pé, como se fosses um médico em banco?
Não é preferir. Tem que ser. Eu estava no oposto do skipper. Quando ele ia dormir, nós estamos acordados. E quando ele estava acordado, preferiria fazer manobras e tínhamos que fazer manobras.
O que é que um português tem ou pode ensinar a uma equipa com outras nacionalidades?
Engraçado. Há tempos dizia um da nossa equipa que esta não podia ser toda australiana. Faz falta haver culturas diferentes. Noto que sou bastante diferente. Temos uma holandesa bastante diferente. Os ingleses são, se calhar, mais parecidos. Temos três ou quatro. Em termos de cultura sou um bocadinho deslocado. Mas acho que faz bem. É bom haver outra cultura na equipa. O Dongfeng foi também nessa abordagem de não ser tudo francês. Um trajeto tão longo, há pontos fortes em todos.
Um facto curioso. A tua mulher faz parte da equipa e continua?
A minha mulher entrou agora no Chile e está a fazer o transporte, sim (do barco até à localidade costeira brasileira, no Estado de Santa Catarina).
Fizeste a parte difícil e ela faz a parte fácil?
(Risos) Fácil não é. A última vez que me enviou uma mensagem, há dois ou três dias, dizia que tinha vestido tudo o que tinha levado. Por causa do frio. Estava completamente gelada. Andavam perto dos glaciares. Não sei se viram algum ou não. Ali supostamente vê-se, passam perto dos glaciares (ao largo do Chile).
Vais reencontrar a tua mulher no Brasil?
Vou lá estar. Chego antes de o barco chegar. Vai ser um bocado à pressa.
E o barco segue para Newport (Estados Unidos da América)?
Sim, sim. Independentemente de chegarmos a tempo da regata (que parte do Brasil), o barco segue para Newport.
E tu vais dentro do barco?
Sim, temos que ir em velocidade de regata para chegar em tempo útil.
Não estás cansado de participar na VOR?
(Risos) A seguir ao acidente estava bastante, estava. Mas agora já passou. Já deu para descansar. Não muito... agora até julho é pouco descanso.
E já está definido as etapas que farás? Todas as restantes?
Em princípios tentaremos mudar o mínino possível. Até EUA é mais ou menos. A outra é mais difícil. Para Cardiff (País de Gales). É dura também.
Porquê? Qual o grau de dificuldade?
Depende da meteorologia e do trajeto. Mas pode ser das mais duras. Já o foi no passado.
Em que sentido?
Também vamos a águas muito frias. Geladas. E as baixas pressões quando passam ali são muito fortes. Há uns anos – quando saíram de Lisboa, foram aos Açores e dai para França, o Groupama apanhou uma tempestade grande. Vamos estar mais ou menos na mesma zona. Talvez mais a norte, o que é ainda pior. Mais frio.
E depois desta VOR?
Descanso. Só (risos).
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