A Bairrada está literalmente implementada no eixo Lisboa-Porto. E aqui já existe a A1, a principal autoestrada do país, há ainda a estrada nacional 1, a linha ferroviária do norte e, obviamente, habitações. “Havendo então uma decisão do Governo em avançar com este traçado, seremos nós, os produtores de vinho, a ser os mais afetados. As vinhas vão perder para as casas”, começou por dizer ao SAPO24 Carlos Venâncio, um pequeno produtor da Bairrada, que não tem dúvidas na hora das escolhas finais.

“Entre destruir casas e vinhas, penso que não há dúvidas. Mas o importante era mesmo perceber se o TGV é mesmo uma necessidade. Muitos produtores vão perder muito. Talvez ainda não se oiçam, porque não há um traçado final, mas vão ouvir-se certamente. Neste momento, ou se destrói vinhas ou casas, é isto que está em cima da mesa”, considerou o produtor que terá o seu trabalho afetado.

“Por tudo o que já vi, e li, certamente serei prejudicado, tal como muitos colegas e amigos. Já ouvi que isto são os sinais dos tempos, da evolução, mas que raio de evolução é esta que destrói economias locais? E empregos? Não consigo entender, sinceramente. Estamos constantemente a ser prejudicados. O setor já vive tempos complicados e agora vai ser pior ainda”, salientou, referindo depois o que antevê para o futuro próximo: “Um desinvestimento na região, claramente. Seja de fora, seja localmente, muitos produtores vão pensar duas vezes no futuro. Os que possam, certamente, irão procurar outros locais, os outros, porventura, até poderão pensar encerrar.”.

"Entre destruir casas e vinhas, penso que não há dúvidas. Mas o importante era mesmo perceber se o TGV é mesmo uma necessidade. Muitos produtores vão perder muito"Carlos Venâncio, produtor

Foram, também, já muitos os autarcas que abordaram este assunto. António Franco, presidente da Câmara da Mealhada, já salientou que dificilmente o traçado não passará por aquela zona do país, assumindo que "muitas vinhas vão ser afetadas". A sua homóloga da Anadia, Teresa Cardoso, também referiu que a “ linha irá sobrepor-se a uma das maiores manchas vitivinícolas da região, rasando mesmo projectos enoturísticos de excelência já existentes”, ao passo que Duarte Novo, autarca de Oliveira do Bairro, tem dúvidas sobre a "importância" desta linha para a comunidade, dados os prejuízos com a construção da mesma.

Ou seja, há críticas à linha de alta velocidade. A Comissão Vitivinícola da Bairrada é outra que se junta ao rol, através do seu presidente José Pedro Soares, que não poupa nas palavras ao Governo.

“Criticamos a falta de diálogo do Governo. Apesar de a Região Demarcada da Bairrada ser uma das condicionantes referidas na documentação, a Comissão Vitivinícola da Bairrada não foi formalmente contactada. Estivemos presentes em duas reuniões, a convite da Sra. Presidente da Câmara Municipal de Anadia, tendo em conta o impacto específico que o setor vitivinícola sofrerá no concelho de Anadia”, salientou ao SAPO24, destacando depois a importância económica deste setor na região.

“Temos realizado um esforço significativo de valorização da Marca Bairrada, do seu território e do seu enoturismo. O próprio Turismo de Portugal definiu este setor como estratégico. A maior parte dos traçados propostos destroem um dos cartões-postais da nossa Região e uma das manchas de vinha de maior valor nas vertentes produtiva, mas também do turismo. É sem dúvida um golpe duro que, a acontecer, impedirá mais investimentos, alguns deles previstos, no enoturismo da Região”, referiu.

Comboios de alta velocidade da linha Shinkansen
Comboios de alta velocidade da linha Shinkansen Os comboios de alta velocidade começarão a fazer o trajeto Lisboa-Porto, e vice-versa, a partir de 2029 Rsa, licença CC-SA 3.0
"Criticamos a falta de diálogo do Governo. Apesar de a Região Demarcada da Bairrada ser uma das condicionantes referidas na documentação, a Comissão Vitivinícola da Bairrada não foi formalmente contactada"José Pedro Soares, presidente da Comissão Vitivinícola da Bairrada

Apesar de acusarem o Governo de falta de diálogo, a Comissão ainda espera vir a ser contactada para que os prejuízos sejam menores.

“Submetemos a nossa posição no processo de consulta pública que decorreu até ao final de Julho e temos esperança de ser contactados para estudar, caso a caso, medidas que possam minimizar o impacte para a região. No caso de o projeto avançar é necessário estudar caso a caso as soluções propostas, como viadutos, túneis, etc. Perceber o que serve melhor o setor e as populações locais”, diz José Pedro Soares, salientando ser “difícil entender, de forma genérica, a curva do traçado entre Oiã e Soure que faz com que a linha atravesse a Região da Bairrada”.

No meio desta estupefação pelo traçado idealizado, o presidente da Comissão dá mesmo uma alternativa. “Porque não a linha poder acompanhar o traçado da A17 ?

Indemnizações? Claro, mas o dinheiro não é tudo

Se o traçado vier mesmo a afetar os muitos quilómetros de vinha, evidentemente que os produtores e proprietários serão compensados financeiramente. Contudo, o dinheiro não irá impedir que o terroir seja afetado no futuro.

“Existem valores referencia para expropriações . É, no entanto, necessário perceber que existem prejuízos indiretos individuais e coletivos. Coletivos, pois, porque é toda a região que perde, independentemente de ser a 'vinha do A', ou a 'adega do B'. A Região vai sofrer uma alteração profunda numa das maiores manchas de vinha existentes. Os solos, as águas, no fundo todo o ecossistema e a a paisagem natural será irremediavelmente afetada”, diz o presidente, concluindo depois com uma explicação para o que este traçado definitivamente afetará a região vitivinícola.

Existe mais do que um traçado que atravessa a Região. É por isso difícil definir desde já o número de hectares que venham a ser destruídos. No entanto, não podemos esquecer que os hectares destruídos não serão apenas os que forem expropriados. Devemos considerar toda a área envolvente que terá que lidar com uma nova realidade. Por último, é necessário perceber que uma vinha não se refaz, depende do seu solo, da sua exposição solar, etc. Mais do que o património edificado, adegas, etc, uma vinha é muitas vezes um património que não é possível reproduzir. Muitos produtores colocam o nome das suas vinhas nos rótulos como a sua marca. Perdendo a vinha perdem a marca. No caso de avançar, o projeto será extremamente penalizador para a Bairrada, para as a suas gentes, para a sua marca coletiva, quer do ponto de vista material, quer do ponto de vista imaterial”, afirmou.