Em Portugal, tal como em Espanha, a direita política esperou 40 anos, após 1974, para se apresentar sem complexos nem surdinas, com discurso grosso, agressivo, nada dado a subtilezas ou consensos.
Naqueles anos seguintes ao 25 de Abril, a direita portuguesa quis dizer-se de centro. Não estava na moda ser conservador. O CDS foi fundado por Diogo Freitas do Amaral (que liderou o partido até 1992) com o centro no nome.
Nos primeiros parlamentos da democracia portuguesa ninguém se assumia de direita.
Francisco Sá Carneiro quis o PPD social-democrata, em plena correspondência com o ideal político dele, e esta identidade foi mantida pelos líderes seguintes. Sobretudo Balsemão, Mota Pinto, Cavaco, Nogueira, Durão, Ferreira Leite, desenvolveram aquela matriz, embora reposicionando-a no lugar amplo que Marcelo assume agora como “direita social”.
No CDS, a transição, em 92, de Freitas para Manuel Monteiro, introduziu a deslocação do partido do espaço conservador da democracia-cristã para o da direita, e esse reposicionamento passou pela identificação do partido que, ao passar a Partido Popular, renunciou ao Centro Democrático Social – que a liderança de Paulo Portas, numa estratégia de abrangência, viria mais tarde a recuperar, embora com destaque apenas para as iniciais CDS.
PSD e CDS-PP, juntos, representaram todo o espaço da direita quer na AD (1979-83), que também juntou PPM e Reformadores (António Barreto, Medeiros Ferreira, Francisco Sousa Tavares), quer nos governos de Durão Barroso (2002-04) e de Santana Lopes (2004-05). Também no governo de Passos Coelho (2011-15) que, no entanto, largou a anterior âncora ideológica no centro-direita para escolher a prática de direita-liberal, depois abandonada por Rui Rio, que recentrou o PSD. Alguma direita mais à direita viu em Passos uma aproximação ao líder forte que deseja.
É já no final do tempo de governo Passos que aparece, estridente na televisão em guerrilhas da bola, um tal André Ventura.
Já tinha sido autor de um livro sobre um ciclista espanhol (Montenegro) que foi apanhado pela SIDA, e um outro de ficção salpicada por personalidades reais, sobre uma alegada conspiração “que matou Yasser Arafat e o Islão”. A editora deixou cair este livro pelo “potencial incendiário” das referências ao Profeta Maomé.
Ventura, em 2015, mexeu-se para ser candidato pelo PSD à Câmara de Sintra. Não conseguiu. Cultivou notoriedade mediática através do futebol falado na CMTV como muito aguerrida voz do Benfica. Conseguiu ser candidato pelo PSD, em 2017, à câmara de Loures. Ficou em terceiro lugar, com 18.177 votos (21,5%), suplantado pela CDU (28.701 votos, 32,7% para a lista encabeçada por Bernardino Soares) e pelo PS (24.737 votos, 28,2% para a lista Sónia Paixão).
Beneficiado pela notoriedade que lhe deu o estilo belicoso no Pé em Riste na CMTV, Ventura apostou na separação do PSD, invocando choque com o modelo Rui Rio, e lançou-se para a criação de um partido, o Chega, que encabeçou. Levou com ele alguns amigos dele no PSD e tratou de se lançar à captação de gente descontente. Conseguiu ser eleito deputado nas eleições de 6 de outubro de 2019, quando recebeu 67.826 votos (1,29%). Quinze meses depois, nestas presidenciais de 2021, Ventura consegue 496.583 votos, correspondentes a 11,9% dos votantes.
A expansão do Chega é comparável com a do Vox em Espanha. O Vox também nasce de gente que saiu de um partido de poder. O cabeça de cartaz é Santiago Abascal, ex-PP. Nas legislativas espanholas de 2015, o Vox recebeu 58.114 votos, apenas 0,23% do eleitorado espanhol. Subiu para 2.688.092 votos (10,2%) nas legislativas de abril de 2019 e, após sete meses de impasses partidários, subiu para 3.656.979 (15,1%) na repetição eleitoral em novembro de 2019. O crescimento do Vox fez-se à custa, primeiro, do PP, depois, do Ciudadanos. Também a recolher transferências diretas da esquerda operária e ex-comunista.
Até 2015, manteve-se firme o dique dos Pirenéus, que conteve o avanço da onda nacional-populista sobre a Península Ibérica. Às primeiras brechas seguiu-se a rede espalhada por Steve Bannon dentro da engrenagem trumpista.
Sabia-se que Espanha sempre teve os “ultras”, não apenas nostálgicos do franquismo. Esperavam, em estado latente, camuflados dentro do PP, a oportunidade que o Vox lhes deu.
O Vox começou a dar nas vistas e a captar apoios eleitorais na Espanha mais pobre e mais deixada na margem pelo poder político central. Foi na Andaluzia, onde nas eleições autonómicas de 2018, ao recolher 306 mil votos (10,9%), se tornou parceiro vital para a direita arrebatar a hegemonia aos socialistas, sempre o partido mais votado na região.
Naquele final de 2018, em Espanha, o PP deixou de ser a fórmula eleitoral multiusos para que diferentes famílias políticas se juntassem no poder: neofranquistas, neo liberais, democratas-cristãos e até algumas correntes da social-democracia que José Maria Aznar soube agregar com mão de ferro. Na Andaluzia, em 2018, as direitas separaram-se em três frentes: PP, Ciudadanos e Vox.
O PP que tinha sido eficaz máquina eleitoral, no entanto não tinha nem ideias nem, sobretudo, princípios. Partiu-se. O PP foi o primeiro a sofrer dano eleitoral, depois o Ciudadanos.
A Andaluzia funcionou para o Vox tal como os Açores para o Chega. Abriu-lhes o acesso ao sistema democrático. Abascal e Ventura eram nos partidos originários figuras de quinta fila. São ambos hábeis na oratória simplista a pescar em tudo o que possa ser banco de descontentamento popular.
O reitor Miguel Castro, da Universidade de Sevilha, perante o crescimento do Vox, lançou duas perguntas que remetem para o essencial: 1. O que é que está a ser feito de sério para atenuar a desigualdade entre regiões e classes sociais? 2. Agora que estão prometidos grandes apoios de fundos europeus, está cuidado que toda a gente vai poder ver com transparência e imediatez que cada euro que vem vai para onde deve ir?
Estas perguntas deveriam ser consideradas também em Portugal. São base para o combate pela defesa da democracia e combate político ao populismo de movimentos como o Chega.
O que é o Chega? Extrema-direita? Direita radical? Direita populista e nacionalista? Cas Mudde, um dos grandes analistas do populismo, publicou preciosa análise no livro
The Far Right Today, em que se debruça sobre o recente crescendo de partidos de direita fora do sistema. Faz uma oportuna aclaração concetual entre extrema-direita e direita radical: a extrema-direita rejeita a essência da democracia, enquanto a direita radical se fica pela resistência a valores liberais como os direitos das minorias, o Estado de direito e a separação de poderes.
Cas Mudde vê nos partidos europeus de direita radical o denominador do populismo, como ideologia que se opõe aos valores liberais que são transversais à generalidade dos partidos tradicionais. Têm como terreno comum as alusões contrárias aos migrantes, que associam a atos de violência e delinquência sobre “o bom povo local”.
Parece consensual que nos últimos anos houve crescimento, alimentado pelas redes sociais, de movimentos populistas anti establishment, onde se encontra quem considere que a democracia não é o melhor regime político.
As presidenciais portuguesas de 2021 têm o valor de alertar os dirigentes políticos e outros impulsionadores da sociedade portuguesa para que sejam tomadas as decisões devidas para cuidar as raízes de descontentamentos e, assim, conseguir o efeito de vacina contra estes populismos.
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