1. A última vez que dormi no Porto fiquei na Rua do Gólgota. Era Fevereiro, mês de magnólias em flor, e o Gólgota tem-nas incríveis. Céu florido, chão florido, medieval, de torcer tornozelos. Um Porto de aldeia, inclinado, degraus, muros, ervas, o Douro lá em baixo. De noite, o granito a cintilar como estrelas.
Aqui morou e escreveu por décadas Agustina Bessa-Luís.
Por isso, vinte anos antes, eu fora ao Gólgota entrevistá-la. Era Outono, mas a braseira já estava acesa. Uma longuíssima conversa ao entardecer, com braseira, gato, vinho do Porto, lá fora jardim, rio. Conversa-esgrima, sempre no espanto do que aquela criatura dizia, de onde viria.
Então, vinte anos depois, impossível não lembrar Agustina mal cheguei ao cimo do Gólgota. Assim se chamava a colina onde Jesus foi crucificado, nos limites de Jerusalém. O Porto não deixou a sua por menos, ali nas imediações do Campo Alegre. Eu procurara alojamento na zona, sim, mas não especificamente naquela rua. Calhara em absoluto. E a tarde estava invulgarmente amena, transparente, como se o Inverno tivesse suspendido a respiração. Mas qual seria a casa de Agustina? Esta cor-de-rosa? Aquela em frente? A da grande magnólia do lado de lá do muro? Ou mais abaixo?
Não consegui decidir. Sabia, no entanto, que Agustina estava ali. Ela estava ali algures, em silêncio desde 2006. Ou em silêncio para o mundo, talvez não para os próximos. E saber isso, que ela ainda estava ali, na sua incógnita matéria, ligada às origens, como um meteorito, mudava tudo. Era parte da promessa dessa tarde, suspensa. Ainda estávamos vivos ao mesmo tempo que Agustina. Isso ainda era verdade, então algo ainda não era impossível. Algo que agora já não está cá.
Essa ida ao Porto teve motivos concretos, e até chegar a esta frase nunca tinha pensado nisso, mas agora penso que fui à rua do Gólgota despedir-me.
2. Todos os que escrevemos, em Portugal, perdemos esta semana. Quem lê, tem os livros de Agustina, que eram o que mais lhe importava. Ela terminou o 67º a dizer “Pronto!”, e retirou-se da vida pública, preservando a escrita de qualquer diminuição. O AVC ficou limitado ao que nela era mortal. Então temos 67 livros, milhares e milhares de frases em que ela extrai o humano das palavras como quem está de fora. Porque estava, um pé cá, outro não.
Quem a lê, ganhará para sempre. Mas para quem escreve, em Portugal, a morte de Agustina tem a melancolia de um quarto de repente vazio. Ela estava com 96 anos, escreveu muito, viveu com a alegria do mundo de quem não é exactamente deste mundo. A sua morte não é triste. Mas algo mudou para quem escreve aqui, depois de a ter lido, ainda que há tempos não a lesse.
3. Há longo tempo que eu não a lia, até hoje ir buscar os meus livros dela que sobreviveram a mudanças e empréstimos. Assim acontece com a amiga de infância que não vemos durante anos, e com quem a conversa se retoma do nada. Agustina será sempre uma íntima de quem por ela foi hipnotizado, e escreve. De resto, talvez a natureza da relação entre ela e os seus leitores em geral fosse essa, hipnotismo. Como não ficar hipnotizado pelo monstro que ela era a criar o monstro humano?
Nisso, apesar dos abismos que os separam, Agustina tem um parentesco com Nelson Rodrigues. Ambos foram monstros por nós. Médicos & monstros. Não por acaso ela se considerava “absolutamente crente”. Escrevendo-nos da sua colina do Gólgota.
4. Usei a expressão conversa-esgrima para aquela tarde de Outono em 1999, quando Agustina me recebeu em sua casa, porque é a memória que tenho, e porque é o que ressalta, ao reler a entrevista. Ela protestando contra as perguntas sobre a omnipresença do sexo nos seus livros, mas rindo. Eu insistindo, porque os romances dela estão de facto cheios dessa força furtiva, sempre à espreita, por trás das acções humanas. “O sexo é a única matéria inteligente”, declarava Agustina, com o seu dom único para o anti-cliché. Ela, que tanto escreveu sobre crentes, pátria e família, tinha a blasfémia sem esforço dos verdadeiramente livres. Atravessava-nos como só um trans-humano poderia fazer. Dentro e fora, antes e além, entre tempos. Era uma espécie de pré-moderna do futuro, constantemente anacrónica, sempre na falha tectónica, deslocando-nos do lugar comum. Ser de espanto, também por isso. E um deus genético poupou-lhe a beleza que consome tempo, e se consome.
5. Várias passagens dessa entrevista, a primeira e mais longa que lhe fiz, soam estranhas em 2019, já muito distantes dos protocolos actuais. O que Agustina diz sobre gays e transexuais, por exemplo. Mas parte da grande liberdade dela era a contradição. Muito se contradisse ao longo dos anos, e se contradizia ao longo de uma hora. Certamente hoje teria novas coisas desconcertantes a dizer sobre esse, e todos os temas.
Disse, escreveu o impensável, algumas vezes por divertimento, e às vezes ela mesma se parecia espantar, como se de facto um diabrete, no mínimo, a tomasse. Compaixão não era a sua praia de cristã. Muito menos o activismo. Estava tão preocupada com o êxito como com paladinos: nada. Os livros deixavam de lhe interessar no momento em que acabava de os manuscrever, sempre em pouco tempo. Raro emendava, não revia, não deixava marinar, seguia para o próximo. Alberto Luís, seu marido, cúmplice na vida e para a literatura, era quem tratava de tudo o resto. E de muita da pesquisa pelo meio.
6. As circunstâncias em que viveu, com desafogo económico, desde cedo admirada, numa família fonte de inspirações, foram propícias à escrita contínua, prolixa de Agustina Bessa-Luís. Não teve obstáculos exteriores a ser quem era, e isso também é parte do que foi. Mas, claro, não o foi por causa disso. Como poucos, Agustina sempre pareceu saber exactamente quem era. E ter sido exactamente o que quis. Sorte nossa.
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