Nem a febre moderada me afastou das urnas nem, curiosamente, a febre muito alta me afastou dos pareceres sobre urnas. No primeiro Domingo de Outubro, data de eleições autárquicas, arrastei-me até às mesas de voto para aplacar as minhas convicções cívicas (mas votei sem qualquer convicção) e nos dias seguintes, já com a testa semelhante a uma placa de indução, escrevi meia dúzia de apontamentos sobre o referendo catalão (para a crónica que acabou por nunca se concretizar). Agora, misturando rescaldo e recobro, vou perceber se os apontamentos febris se cruzam com as minhas considerações presentes. Ou, ao jeito dos Mythbusters, vou testar a máxima de que “com a cabeça quente não se deve falar de política”.
No mesmo dia em que os antipiréticos pareciam não funcionar, em que tive sonhos delirantes passados na Coreia do Norte e em que, desfasado da realidade, chamei “mamã” pela primeira vez àquela que é minha mulher há 14 anos, nem tudo foi confuso e inconsciente. Catalães idosos debaixo de cargas policiais - ora aí está uma imagem tão grave que não se confunde com alucinações febris; uma imagem que me deixou tão chocado e opinativo quanto o resto do mundo saudável.
A estratégia violenta de Madrid pareceu-me, mais do que qualquer resultado de referendo, o selar da independência da Catalunha. Quem poderia imaginar, numa Espanha moderna, que bastões e viseiras de polícia de choque coexistissem com a pacata banalidade de famílias barcelonesas? A agudizar a incivilidade da carga, esteve a secura imperturbável nas declarações de Rajoy, e logo depois a aquiescência do rei. A intolerância espanhola para com a ilegalidade daquele referendo pareceu-me, para além do excesso grotesco, uma verdadeira cisão com a relação institucional que há muito se faz de concessões, excepções e transigências. Não era só a Catalunha a tentar libertar-se, era a Espanha a prender cabelos com uma mão e a cavar um fosso com a outra.
A cartada da força policial foi prematuramente jogada. É impensável que se repita, seja qual for a ordem que urge manter. Por muito que o enfraquecimento político do Governo não se viesse a sentir internamente - com uma Espanha esmagadoramente obstinada em manter a coesão do território – a União Europeia não iria ter estômago para tornar a ver cidadãos atirados ao chão, nem para estados de sítio e leis marciais num dos seus mais dilectos membros. A Madrid restariam bloqueios institucionais e enconómicos, correspondidos com outros tantos bloqueios por parte da Catalunha. O Generalitat a ser apertado e a apertar de volta, num braço de ferro em que se entorpecem dedos - tão entorpecidos que a Espanha teria de abrir a mão.
Terminavam algures por aqui os meus apontamentos febris. Não é que sejam desprovidos de completo tino, mas percebo por lá certo defeito corriqueiro: querer dar razão a uma facção só pela má prática da outra facção. É exactamente como nas discussões entre duas pessoas, pois assim que uma descai para a violência dizemos que perdeu a razão; só que a perda de razão dum indivíduo não confere razão ao outro com o qual contendia, e muitas vezes somos ludibriados por essa falácia. A minha motivação para ver legitimada a independência catalã não partiu de quaisquer virtudes do lado separatista, mas sim pelo facto de Madrid ter estado mal no dia do referendo. Quer o termómetro marque 40 ou 36 graus, fico igualmente chocado com imagens de polícias a arrastarem mulheres pelos cabelos. Mas, pelos vistos, com a febre alta tenho muito menos consideração por uma Constituição. Deliro, portanto.
A descentralização na Espanha moderna é notável. Essa repartição de poderes não pode ser vista apenas como uma concessão às particularidades históricas de cada região; ela é também o reflexo duma democracia pela qual muito se penou, mas muito bem se forjou. A descentralização espanhola é a prova de algo extraordinariamente bem feito, pois por um lado reconhece e cultiva a riqueza multicultural dum povo só, e por outro tem facilitado essa irritante prosperidade desses irritantes ibéricos mais bem sucedidos que nós. A descentralização espanhola é ainda o espelho de uma Constituição feliz, tão feliz que em 1978 foi aprovada por acima de 95% dos catalães – a mais esmagadora aprovação em toda a Espanha continental.
Chocou-nos ver pessoas varridas pela polícia. E, admitamos, chocou ainda mais por se tratar de gente com aspecto pacato, informado, emancipado e pacífico. Mas é impossível ignorar que esse aspecto pacato, informado, emancipado e pacífico é, também ele, o reflexo daquilo que uma Constituição civilizada permite e promove – a mesma Constituição que aquela gente ignorava de forma ilegal. Ordeira ou não, a consulta popular foi ilegítima; todos os nobres valores cívicos e democráticos que ali se alardearam não esconderam o deficit cívico e democrático dum atropelar da Constituição. Recordo a vigência desse documento que, há quase 40 anos, mais de 95% dos catalães aprovou. É uma Constituição funcional que não deve ser marginalizada por qualquer capricho unilateral. As razões independentistas podem afigurar-se as mais válidas do mundo, que isso não legaliza um referendo feito sem entendimento com o Governo Espanhol.
Contrário à independência não só há o argumento legal - com Puigdemont e seus camaradas a ignorarem acordos e decisões de tribunais - como há até a flagrante incerteza do apoio da maioria dos catalães. Se o resultado do referendo é inequívoco, já os números da participação podem evidenciar toda uma outra consulta popular: milhares de catalães ficaram em casa a agir como espanhóis em casa. Dúvidas houvesse, a manifestação unionista do passado Domingo provou que Puigdemont não pecou só na ilegalidade, pecou ainda na discriminação de uma massa considerável de catalães que se sentem espanhóis.
Há um engano, a roçar a parvoíce, que tomou conta de muitas opiniões que li sobre este assunto, e que chegou a toldar a minha em tempos de febre: criou-se a imagem do Governo Espanhol como uma mão controladora e distante a tentar meter o bedelho de forma indesejada na vida dos catalães. Essa ideia absurda faz esquecer que os catalães participaram na eleição do Governo, que democraticamente os catalães conferiram ao Governo tanta autoridade como qualquer outra região espanhola lhe conferiu, e que essa autoridade concedida é centralizada e unionista. O Governo não é um regulador externo de nenhuma comunidade autónoma, é o Governo dum país democrático, extraordinariamente democrático.
Entretanto declarou-se uma independência suspensa. Não descortinei se é uma jogada política brilhante se um bluff nervoso ou se uma rábula a lembrar o Principado da Pontinha. Alguém que ponha uma compressa fria na testa da Catalunha, se faz favor.
SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO
Unamuno, o filósofo que só no nome soa a unionismo.
E um pouco de humor, que nem sequer sabe que é humor.
And now for something completely different. Embora traga uma notícia de Março, nesta altura consigo confirmar a qualidade deste reboot das “Ducktales”. Não se perdeu o espírito aventureiro e divertido da série original, mas acrescentou-se mais humor e inteligência na escrita, típicas do bom momento que a animação televisiva vive. Esta não é uma menção saudosista da minha parte, é uma genuína recomendação de qualidade para miúdos, e os graúdos não têm de fazer qualquer frete para assistir.
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