1. É raro eu perder tempo com o CDS. Os cães ladram, a caravana passa. Contudo, eles ainda ocupam espaço no parlamento, nos media, na campanha eleitoral. Já não sei se em deputados estão do tamanho de uma carrinha, um táxi ou uma trotinete. Seja como for, ainda estão, a líder Assunção Cristas faz por fazer barulho para estar, que é o que lhe sobra, à falta de mais substância. E esta semana a coisa passou um bocadinho disso, porque integra o próximo programa eleitoral do CDS, que estará a ser feito por um grupo liderado por Adolfo Mesquita Nunes.
Para quem não anda a par, Cristas vai propor que estudantes excluídos pelos “numerus clausus” possam pagar uma universidade pública “a preços de mercado”. Como aconteceria isso? Criando-se “vagas adicionais”, a que esses estudantes poderiam “aceder”, segundo Cristas.
Nas palavras da própria: “Não faz sentido que uma família portuguesa, cujo filho não se classificou para entrada no curso ou na escola da sua preferência, dado o ‘numerus clausus’, não possa escolher aceder a essa vaga, pagando o seu custo real, tal como pode escolher uma universidade privada ou uma universidade estrangeira.” E tal como — argumenta o CDS — acontece a estudantes estrangeiros que “pagam preço de mercado” em universidades públicas portuguesas.
2. Só que não. Começando pelo fim: “Para os estudantes internacionais, as instituições procuram também os melhores estudantes e analisam os respectivos percursos (matérias seguidas e classificações)”, veio esclarecer ao Expresso João Guerreiro, presidente da Comissão Nacional de Acesso ao Ensino Superior (CNAES). “E há candidatos que são rejeitados por não reunirem as condições estabelecidas pelas instituições.”
Isto, por um lado. Por outro, esses estudantes estrangeiros, não estiveram, nem podiam estar, claro, no mesmo quadro de circunstâncias ao longo do ensino secundário em que os estudantes portugueses estiveram, e segundo o qual concorrem. É demagogia, disparate usar isso como argumento. Além de que, como aponta Guerreiro, mesmo em relação aos estrangeiros não se trata apenas de “pagar preço de mercado”.
Em suma, treta do CDS.
3. Mas o primeiro e principal problema é moral, ético, político, tem a ver com as bases da própria democracia, tal como a tentamos construir em Portugal. É o problema de minar a ideia de ensino superior público. Quando Cristas fala em “mais oferta para quem não fica colocado” à primeira, é disso que estamos a falar, não menos. E reparem bem no vocabulário: “oferta”, “pagar preço de mercado”. Não é possível que um estudante pobre que não entre por um triz (e acontece a milhares) fique de fora enquanto um estudante rico, com média muito mais baixa possa simplesmente comprar uma vaga. No dia em que isto acontecer, todo o edifício do ensino público, já com tanta mossa, fica em risco.
4. Não vi, entre os responsáveis do sector, alguém acolher a proposta de Cristas. “A meritocracia que está, no nosso caso, associada às classificações do ensino secundário, fica submetida à capacidade financeira das famílias”, observou João Guerreiro. “Não é um bom princípio.”
“Pode criar dois tipos de estudantes consoante o rendimento familiar”, resumiu por seu lado ao semanário o presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, Fontaínhas Fernandes, ressalvando falar a título pessoal, ainda. Pedro Dominguinhos, presidente do Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos, lembrou no mesmo artigo que as regras de acesso ao ensino superior estão “estabilizadas” e uma alteração assim não só não promovia a “equidade no acesso”, como criava uma “parte privada dentro do sistema público”, difícil de aplicar e de aceitar.
5. Está disposto a pagar pelo esforço, ou as notas, que não teve? O mercado tem a solução para si. Não o Estado. O Estado é para outras coisas. E existe ensino privado a rodos, para pagar a vários “preços de mercado”. Bom lembrar, porque ouvindo Cristas, até parece que não. Ela fala como se falasse em nome dos espoliados, esses pobres alunos ricos que não têm acesso a ser doutores, porque o Estado Social tem a mania. Porque a democracia portuguesa, vejam lá, tem o compromisso da democratização do ensino superior. Artigo 76 da Constituição: “O regime de acesso à Universidade e às demais instituições do ensino superior garante a igualdade de oportunidades e a democratização do sistema de ensino, devendo ter em conta as necessidades em quadros qualificados e a elevação do nível educativo, cultural e científico do país.”
6. Mas não é só a ideia de ensino público que Cristas insulta. É também a inteligência. Ao mesmo tempo que quer privatizar parte do ensino superior público, passa um atestado de inferioridade ao ensino privado. Pois se tanto acredita no privado, pago “a preço de mercado”, porque será que esse privado afinal não serve para os pobres alunos ricos? Porque hão-de querer esses pobres alunos ricos, afinal, comprar vagas no público? Será que é porque o público tem, apesar de tudo o que o ameaça, um compromisso de qualidade não refém do “preço de mercado”? E não será isso que Cristas, justamente, atinge com o seu último disparate?
Na verdade, ela tanto atinge o ensino público, ao querer miná-lo, como o privado, ao ficar implícito que é mauzito. Pelo menos tão mauzito que os pobres alunos ricos têm o direito de comprar o público. Têm direito à sua oportunidade, além do mérito!
7. E aqui entramos naquele assunto de que a direita gosta pelas razões erradas. A meritocracia. Para esta direita com crista, que quer pagar o que não tem mérito para ter, o mérito é óptimo quando se trata de manter negros, ciganos e sabe-se lá que mais, quiçá tudo junto, e ainda muçulmano, afastados das quotas. Mérito para a direita é dentro do mercado, e com regras para os mais ricos continuarem com mais oportunidades.
O acesso à universidade em Portugal assenta, sim, numa base de mérito: entra quem tem melhores notas. Há excepções e razões para questionar esta base. Quotas para corrigir desigualdades, ou seja, para democratizar mais, são uma dessas excepções. Se o compromisso, declarado, da nossa democracia, é democratizar o ensino, então as quotas devem sobrepôr-se à meritocracia, sim. Basta ver o extraordinário resultado que têm tido no Brasil.
O que certamente não se sobrepõe ao mérito é o dinheiro. Como qualquer democrata devia entender, incluindo os democratas-cristãos.
Disparate, privataria, vale-tudo: nada que surpreenda, a mim e à esmagadora maioria dos eleitores, que nunca, jamais, em tempo algum votariam em Cristas. Mas se eu fosse democrata-cristã, de facto cristã, teria vergonha. Leio aliás, que a oposição interna do CDS a acusa de “autismo”, “pouca democraticidade”, “autoritarismo”, e “desconsideração” pelo próprio Conselho Nacional do CDS na elaboração das listas de deputados para as próximas eleições. Eita, está forte (mas tirem lá o autismo dessa lista, que não serve como adjectivo).
Que bem melhor estaríamos se Cristas fosse ler os Evangelhos, estudar um bocadinho mais o que significa ser cristã, ter uma nota um bocadinho melhor. Porque está mazita nesse quesito, e nisso o mercado não a vai ajudar. Aliás, os eleitores de facto cristãos podem fazer algo: chumbá-la nas urnas.
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