Eu sei que pode parecer estranho, vindo de quem nunca olhaste olhos nos olhos, nem nunca privaste nem um segundo que seja. De certo, tens esses pedidos escritos nos estádios e é normal que já tenhas sido abordado, com idêntica ousadia, por parte de miúdos e outros graúdos como eu.

Tantas vezes entras pela televisão lá em casa, o teu nome é escutado vezes sem conta na rádio, vejo fotografias tuas nos jornais e leio sobre ti em papel ou online. Também te vejo ao vivo. E essa constante convivência, embora à distância e impessoal, quase que te transforma numa pessoa que vive no meu bairro. Ou num vizinho que frequenta as minhas quatro paredes. Uma proximidade “virtual” que dá legitimidade ao desejo e serve para justificar o trato.

O futebol tem destas “coisas”, eu sei. Mexe com o imaginário coletivo e aproxima-nos de pessoas que não conhecemos, mas com quem mantemos vínculos tão estreitos como os que temos com a nossa família ou grupo de amigos.

Conheço-te com a camisola do teu clube, o Sporting Clube de Portugal e com as cores da seleção nacional. E não é de hoje. Nem de ontem, nem do dia em que mostraste outra camisola. Uma camisola que escondia um sentimento no teu coração e que estava bem dentro da tua cabeça. As outras camisolas já todos nós conhecíamos. Naquela noite decidiste partilhar a outra com o mundo em forma de mensagem: Cu bo ti fim de mundo (Traduzido: estou contigo até ao fim de mundo).

Não foste o primeiro jogador a fazer. Não serás o último, garanto-te.

Estava programado em ti que a ias mostrar. Sabias que ias marcar um golo e já sabias que ias tirar a tua segunda pele para mostrar a primeira camada de que és feito.

Tinha e tem um destinatário. O teu amigo e “irmão” Rúben Semedo. Com quem privaste muitos sonhos, com quem superaste obstáculos, celebrastes vitórias e choraste derrotas. Alguém a quem nunca falhaste, nem deixaste de estar ao lado de. Nas horas boas e nos maus momentos.

Aquilo que escondias faz parte do teu ser, é genuíno em ti. E ainda bem que assim é. Ainda bem que és assim. É óbvio, que aos olhos dos crucificadores das redes socias, dos treinadores de bancada ou atletas de alta competição que nunca competiram nem ao berlinde, o momento foi visto como um ato pouco profissional, imaturo e indesculpável. Um gesto que te priva, fruto do segundo cartão amarelo e consequente expulsão, de marcares presença no clássico Porto-Sporting de sexta-feira.

Verdes e brancos inquietaram-se, azuis e brancos suspiraram de alivio, uns lamentam, outros “agradecem”. É a lei do futebol e é a vida da clubite vigente.

Para mim, não é nada disso. Para mim, Gelson, não marcaste só um golo que deu três pontos à tua equipa. Foste muito mais longe. Com o teu gesto, atitude, solidariedade e manifestação de amizade marcaste o golo do meu campeonato. O campeonato dos valores que estão acima de tudo o resto. De todos os três pontos possíveis.

Fica sabendo que elevaste a célebre frase “O futebol não é uma questão de vida ou de morte, é muito mais do que isso”, do jogador e treinador escocês do Liverpool, Bill Shankly, a uma nova dimensão.

Tu, que trazes de volta a demonstração de futebol de rua (embora com doses de tática que os teus treinadores foram injetando), que serpenteias por entre os onze cada vez mais robotizados e industrializados, mostraste a essência mais nobre que se pode ter no desporto: o valor da solidariedade e da amizade.

No final do jogo, as tuas lágrimas, a explosão de lamentação pela semana que viveste (e, calculo, por não fazeres aquilo que gostas durante os próximos 90 minutos), Gelson, dizem tudo. Dizem que és um ser humano. Com valores que fazem falta a este mundo futebolístico que vive amarrado a uma regra estúpida que impede a celebração do que há de mais bonito no futebol: o golo.

E isso, Gelson, vale muito. E, para mim, ficará para sempre na história do jogo da bola. E estou certo, que serás mais recordado por esse gesto para com Semedo do que fizeste antes ou farás depois. Não duvides.

Por isso, termino com um novo pedido e um desejo. Dá-me não uma, mas as duas camisolas. A que tem o número 77 e a que tem a mensagem para o teu “irmão”. De preferência autografadas. E talvez um dia possamos, eu, tu e o Rúben Semedo brincar um bocadinho ao futebol ou assistir a um jogo numa bancada qualquer.