1. Grande parte do mundo corre para o fim do mundo. Mas há ideias que o adiam, pessoas que resistem há séculos. Algumas acabam de atravessar o Atlântico, trazendo o que só elas dizem. São indígenas de diferentes lugares do Brasil, realizadores, activistas, gente que tomou a imagem e tomou a palavra. Hoje, última sexta-feira do Inverno, coincidiram com a histórica greve dos jovens pelo clima: pelo futuro. E este crochê cósmico não fica por aqui.
2. Os povos ameríndios conhecem o apocalipse. Viveram-no em 1500, quando os brancos chegaram, com doenças e armas. Se alguém está preparado para o fim do mundo tal como o conhecemos, são eles, costuma lembrar o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, um dos mais influentes pensadores brasileiros. Os índios resistiram (ou re-existiram) à chegada mortal dos brancos e saberão viver com a natureza. Já para os brancos, difícil imaginar a vida sem bateria.
Há três semanas, Viveiros veio abrir um ciclo dedicado ao Pensamento Ameríndio, no Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG), dirigido por Nuno Faria. A palestra dele, totalmente lotada num sábado de sol, foi transmitida em streaming, e pode ser recuperada online. E as fotografias que Viveiros tirou ao longo de décadas com povos indígenas continuam lá, na vasta mostra “Variações do Corpo Selvagem”, com curadoria de Veronica Stigger e Eduardo Sterzi. Em diálogo com três outras exposições, articuladas por Nuno Faria, “Carõ — Multidões da Floresta”, de João Salaviza e Renée Nader Messora; “Clareira”, de Manuel Rosa; e “A Morte de Ubu”, de João Louro. A que se acrescenta uma mostra de cinema dias 20- 21 de Março, e um par de conferências até Abril. Tudo em Guimarães.
A propósito de Salaviza e Messora, “Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos”, o filme que eles fizeram com os krahô do cerrado brasileiro (e sobre o qual escrevi antes da estreia em Cannes), está desde ontem em exibição nas salas portuguesas, depois de um extenso périplo mundial, com vários prémios pelo caminho.
3. Entretanto, em Lisboa começou quarta-feira a mostra de cinema “Ameríndia”, organizada por um colectivo transatlântico que se foi juntando desde 2016. Filmes feitos por homens e mulheres indígenas do Brasil, para ver e debater na Gulbenkian. Coube a Ailton Krenak, um dos grandes líderes indígenas, também co-curador da mostra, anteceder as sessões com uma palestra no ICS intitulada “Ideias para adiar o fim do mundo”. Uma dessas ideias, bem indígena, será brincar, e Krenak aplicou-a, desde subverter o título como a primeira coisa que lhe viera à cabeça, à sua própria situação ali, rodeado de pesquisadores, na antiga sede do poder colonial.
Nascido na região do Rio Doce, em Minas Gerais, onde a mineração criminosa da Vale continua a exterminar gente, bichos, plantas e rio, Krenak é uma referência da Aliança dos Povos da Floresta, que na década de 1980 juntou não apenas indígenas como comunidades ribeirinhas em geral, mestiços, caboclos, mistura de índio com branco ou negro. Já na corrente década, Krenak foi uma das figuras da Aldeia SP, bienal de cinema indígena em São Paulo, fruto de projectos como Vídeo nas Aldeias, em que a câmara se tornou um importante recurso indígena. Povos que não são da escrita, que por isso não estão na História com a sua própria versão, e que encontram no cinema um instrumento potenciador, espalhando fala e imagem, como a luz ao bater num espelho. Assim estava Krenak diante da plateia, terça-feira no ICS, pequeno espelho oval ao peito.
Resistiu anos a vir cá, por exemplo quando o convidaram para os “500 anos da travessia do Cabral”. Seria “uma festa para celebrar a invasão”, pensou. “Mas não transformei isso numa rixa.” Em 2017, tal como Viveiros de Castro, falou no Teatro Maria Matos no contexto de Lisboa Capital Iberoamericana da Cultura, sessões que para muita gente foram uma revelação. Portal de outro pensamento, retomado agora por Krenak.
“Vivemos num planeta em permanente estado de choque”, disse no ICS. Nós, os humanos, aquilo a que chamamos Humanidade, “quando não estamos ocupados em predar uns aos outros, estamos a predar o planeta”. Então que Humanidade é essa? “Será que essa ideia não está na base de muitas escolhas erradas? Por exemplo, a de que os homens brancos tinham o direito de sair colonizando, de trazer os obscurecidos para uma luz incrível, que é o buraco que agora estamos fazendo?” Como se existisse um jeito certo, “uma verdade de estar aqui na terra”, um modo civilizador. “Hoje podemos pôr em questão essa Humanidade.” Questionar a “disposição para a servidão voluntária”, o domínio das corporações, as estruturas que tentam substituir “os estados-nação falidos”. “As corporações conseguiram comprar uma narrativa de que não tem mais História.” Isto, “quando boa parte da Humanidade não tem direito sequer a beber água limpa”, se multiplicam as imagens de “campos de refugiados com pacotes de ração”, tanta gente passou “da floresta para as favelas, para ser mão-de obra”, “jogada nesse liquidificador de fazer doidos que é ‘a Humanidade’”.
Como viver então nesse mundo “sem ser transformado em zombie”? Implica questionar, por exemplo, “o mito da sustentabilidade”, “inventado pelas corporações para sustentar o assalto”, como se Humanidade e Ambiente fossem coisas separadas. “Fomos alienados da Terra. Tem a Terra e tem a Humanidade. E corporações espertalhonas tomam conta da Terra enquanto a gente vai viver em ambientes artificiais, uns kits, tomando muito remédio.” Ambientes “de Flash Gordon”, descolando a Humanidade da Terra. “E os únicos núcleos que sobram são as bordas esquecidas, índios, quilombolas, aborígenes, essa sub-Humanidade. Tem o pessoal legal, que é a Humanidade, e tem a sub-Humanidade, bruta, orgânica, que quer comer a Terra, dormir na Terra. Incomoda. Então as corporações separam essa gente da Terra.” Anulam a diversidade, estimulam “o mesmo figurino, se possível a mesma língua para todos”.
Neste cenário, quando a voz de um xamã indígena se ouve, e Krenak cita a do ianomami Davi Kopenawa, tem a “potência de mostrar como um complexo de povos é capaz ainda de habitar uma cosmovisão, em que tudo tem um sentido, em que as pessoas podem viver com a floresta”. Produção de “existência, por oposto à produção de ausência” contemporânea. “Um prazer de estar vivo”, que também incomoda. “Porque o tipo de Humanidade zombie não tem tolerância para tanto prazer, fica pregando o fim do mundo para a gente adiar os nossos sonhos.” É a lógica das igrejas neo-pentecostais. “Mas se a gente tiver possibilidade de contar mais uma história, a gente adia o fim do mundo. Uma experiência de fruição com o mundo, de gás para esticar a fronteira do fim do mundo. Quando o céu está ficando muito baixo, em cima de você, empurrar ele para cima, e respirar.”
Adiar o fim do mundo passa por isso, se “alimenta da criatividade, da resistência desses povos”, de recusar o que foi apresentado como civilizador. “A gente não quer essa roubada: toma Bíblia, toma escola, toma mineradora, toma porrada.”
Primeira pergunta da plateia: o que não é natureza? Resposta de Krenak: tudo é natureza. “A construção da ideia de natureza foi para nos separar de algo que somos nós. Cosmos é natureza, tudo o que consigo pensar, imaginar.” Microfone, mesa: “Isso não respira mas é madeira extraída, está à nossa disposição.” Conta a história de uma mulher que conversava com uma pedra como com a irmã dela. Porque a pedra é uma entidade, tal como a serra onde Krenak mora. “Tem um humor. Quando amanhece bem, esplêndida, o pessoal pode fazer tudo.” Então se tudo é natureza a ideia de parques naturais é absurda. “Começa como parque e termina como parking.” Tal como é absurdo, do ponto de vista indígena, ensinar crianças a não falar com estranhos, pedras, ou amigos imaginários. “Mas nós resistimos. A gente resistiu expandindo a nossa subjectividade, não aceitando que a gente é todos iguais. Tem 500 anos que os índios estão resistindo, estou preocupado é como vocês vão resistir.”
Para aprender, tem de querer. Por exemplo: “As plantas ensinam, mas você tem que querer aprender. Um monte de gente vai à Amazônia, pega bolsa e não aprende nada mesmo.”
4. No dia seguinte, Krenak foi uma das pessoas no quadrado transatlântico em que se transformou o palco da Sala Polivalente, no ex-CAM da Fundação Gulbenkian. Era o debate de abertura da mostra de cinema indígena, e em vez de os participantes estarem sentados a uma mesa diante da plateia houve a magnífica ideia de desenhar esse grande quadrado, como o pátio de uma casa colectiva, ou o terreiro no centro de uma aldeia. Três lados de cadeiras misturando público, organizadores, convidados, e a primeira fila da plateia a completar o desenho.
O colectivo que organiza a mostra reúne historiadores, antropólogos, pesquisadores, artistas, estudantes, curadores, de diferentes instituições, gerações e áreas em Portugal, como Pedro Cardim, Susana Matos Viegas, Inês Beleza Barreiros, Rodrigo Lacerda, Rita Natálio, Miguel Ribeiro, Joana Gusmão, Catarina Letria, mas também o brasileiro Fred Maia, que há muito trabalha com cinema indígena, e o seu velho amigo Ailton Krenak. E foi a Maia que coube apresentar Krenak, lembrando a sessão histórica no Congresso Nacional, em Brasília, em 1988, quando um jovem Ailton Krenak, de fato branco, interpelou poderosamente os deputados contra as agressões aos povos indígenas, enquanto pintava o rosto de preto, com jenipapo.
À plateia na Gulbenkian, Krenak falou então desse acontecimento tão recente, com “10, 15 anos”, que é a apropriação da câmara pelos indígenas, e a circulação destes filmes: “um encontro de visões”. “Cada um destes realizadores tem uma experiência singular de transformar isto numa ferramenta para seguir contando histórias. Mas não são artistas, estão dando continuidade a uma narrativa que tinha outras formas. Não é exactamente cinema, mas um campo de colaboração em que a realidade das populações lá no Brasil possa ser compartilhada aqui, potencialize a acção desses sujeitos colectivos. E uma demanda permanente de actualizar a nossa visão do mundo.” Se a relação com Portugal “é uma longa trajectória de afastamentos e aproximações”, que esta “acção possa ampliar os nossos horizontes”. Nos dois sentidos: Krenak dá o exemplo de como a experiência do Doc Lisboa, um dos parceiros envolvidos nesta mostra, a “enriqueceu muito”.
5. No grande quadrado do palco estavam sentadas duas mulheres realizadoras indígenas, que na noite de hoje, sexta-feira, vão mostrar filmes seus na Gulbenkian, Ayani Hunikuin e Patrícia Ferreira.
E quando Patrícia — uma guarani de São Miguel das Missões, Rio Grande do Sul, “sobrevivente da catequização pelos jesuítas” — começou a falar, foi como se amarrasse passado e presente, mal acabada de aterrar em Lisboa: “Vim pensando como Portugal parece tão longe, mas tão ligado. Aconteceu há tempo tempo. E como eu consegui chegar a de onde eles partiram…” De forma tão simples quanto emocionante, está aqui tudo o que é preciso entender, do lado português, sobre como o passado colonial é presente agora, é história viva, nada tem de anacrónico. A história está sempre pronta para ser retomada, relida, acrescentada. Estas pessoas nunca antes tinham contado a sua versão. Mas elas vivem em 2019, são jovens e fortes, e o que escolhem fazer quando tomam a câmara é ir em busca dos mais velhos, dos avós, das narrativas e rituais perdidos, para refazer um passado que lateja no corpo deles hoje.
O belo “Tava, A casa de Pedra”, filme que Patrícia co-dirigiu, é essa caminhada, literalmente para trás, pelas ruínas deixadas pelos jesuítas espanhóis e portugueses, mas erguidas por mãos indígenas, nas tremendas missões da Argentina, do Paraguai e do Brasil. Quem conheça um pouco desta história colonial sabe como as missões na selva eram espaços concentracionários para milhares de indígenas, de conversão forçada, e trabalho forçado, em que índio bom era o índio domado, convertido, e índio mau resistia, fugia. Perguntem a Patrícia se para ela, para os mbya-guaranis, isto é passado anacrónico. Chamar a isto passado anacrónico, como tem sido mantra dos defensores do Museu das Descobertas, é não querer ver, nem ouvir estas pessoas, vivas agora, herdeiros de muitos mortos para trás. O luto desses mortos nunca foi feito, algo que o chamado pensamento ocidental devia entender pelo menos desde a “Antígona”. O que nos diz a tragédia grega, base do que se convencionou ser a Europa? Que os mortos têm de ter sepultura, que ficar insepulto é a condenação eterna. Mas é isso que o Portugal dos Museus das Descobertas persiste em fazer: o passado é top 2019 para os monumentos em Belém, mas anacrónico quando se trata de genocídio indígena, tráfico de escravizados e demais violências.
O primeiro gesto destes jovens indígenas com uma câmara nas mãos foi dar sepultura a mortos antigos, os da colonização. Ir à raiz do que é a vida deles agora. Recuperar o que a colonização destruiu, apagou. O cinema como um transporte entre os vários tempos.
Excerto do filme:
“— Os brancos chegaram em 1500, 1498, não sei bem — diz um mais-velho. — Quando chegaram já tinha gente em todos os lugares. No Perú, na Bolívia, por ali, já tinha gente lá. Estavam ali e faziam suas casas de pedra. Os padres faziam livros em guarani. Faziam livros como os que os padres usam ainda hoje. Os padres fizeram isso para se passar por Jesus, para que os índios adorassem o deus dos brancos
— Eles nos enganaram — diz uma jovem.
— Enganaram mesmo — diz o homem — Eles não eram deuses.
— Os brancos?
— Sim, não eram filhos de Deus. Eles se chamavam de jesuítas, mas eram só brancos mesmo. […] E quando eles nos enganaram, os que acreditaram foram escravizados. Mas muitos outros fugiram.”
Mais adiante alguém diz : “Sim, eles vieram e nos enganaram, até hoje tentam nos enganar.”
E outro alguém diz: “Pois até agora, nós, os netos, continuamos vivos.”
É isso. Todos continuamos vivos. Incluindo os mortos que nunca tiveram quem falasse por eles, os enterrasse. Seguem vivos dentro dos vivos.
Enquanto não incorporar isto, Portugal não se transformará.
“Esta mostra também é uma forma de contribuir para um pensamento mais crítico sobre o passado colonial”, fez questão de sublinhar Pedro Cardim, no fim da sessão. “Somos facilitadores. Trata-se de criar condições para ter aqui estes nossos amigos. Portugal não pode assobiar para o lado. Está muito ligado também ao que se passa no Brasil hoje.”
6. Ainda durante o debate inaugural, Krenak contou aquela história de quando o antropólogo mais célebre do século XX, Lévi Strauss, conversou com o embaixador brasileiro em Paris. Porque o senhor está interessado em ir à Amazônia?, perguntou o diplomata. Quero encontrar os índios, respondeu Strauss. Mas lá não tem mais índio!, contestou o diplomata. Isto aconteceu há menos de cem anos. O Brasil branqueado à força, herdeiro do racismo escravocrata, ignorava os seus próprios indígenas. Povos sujeitos a uma sucessão de violências ao longo dos séculos, em que aos colonos e aos missionários sucedeu a escravatura da borracha, as mineradoras, o agro-negócio. Muitos ficaram extintos: gente, mitos, narrativas. Mas uma parte resistiu e hoje existem 300 povos indígenas com mais de 280 línguas, lembrou Krenak.
No filme que se seguiu, “Já Me Transformei em Imagem”, de Zezinho Yube, os indígenas falam em cinco tempos: o tempo das malocas (antes da colonização), das correrias (fuga, deslocação forçada), do cativeiro (por missionários e pela borracha), dos direitos (quando a democracia trouxe enfim a demarcação de terras, e outras conquistas) e o presente.
Um dos outros actores/realizadores presentes, Alberto Alvares, começara a sua intervenção com uma fala em guarani, antes de explicar o que o levou para o cinema: “Sempre digo que não sou actor, sou atormentado. Toda a vez que o cinema vai para a nossa aldeia, sempre quer mostrar o índio congelado, como se a gente não avançasse. Como se quisesse colocar o índio no passado, como se tudo se passasse 500 anos atrás. Mas estamos aqui, resistindo, com nossas armas, nossas árvores.” O cinema guarda, defende. “Guarda a memória, guarda o sonho para poder contar. E tem essa questão do ataque dos fazendeiros também. Quando a gente mostra a imagem, as pessoas acreditam.” Sempre numa lógica de parceria, e de chegar no outro, para ser mais. “O nosso pensamento é esse, de não ficar só na gente.”
7. Tudo isto coincide ainda com a estadia em Portugal da activista indígena Daiara Tukano, que daqui segue para um “tour” internacional. Os tucanos são um povo do Rio Negro (Amazonas), a milhares de quilómetros, pois, dos guaranis, no sul do Brasil, ou dos krahô, no centro. Toda uma diversidade.
Esta noite, Daiara estará na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa para um encontro com estudantes, depois da inédita greve mundial que nesta sexta-feira encheu as ruas com jovens, inspirados por Greta Thunberg (a menina sueca agora com 16 anos, que acaba de ser nomeada para o Nobel da Paz). E amanhã, às 11h, no Jardim Amália Rodrigues, Daiara participa na acção BOI-COTE, que propõe o boicote da importação de carne brasileira, produzida à custa da destruição de grandes pedaços da Amazônia e de terra indígena.
Os filmes da mostra “Ameríndia”, na Gulbenkian, seguem até domingo.
Muitas ideias para adiar o fim do mundo.
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