1. Este 15 de Maio foi uma jornada histórica no Brasil. A maior saída às ruas desde 2013, quando o país explodiu em protestos. Estes protestos agora, com um milhão por todo o país, não foram explosivos. Foram espertos, divertidos, imaginativos, cheios de cartazes contundentes, quase no espanto de afinal o clima ser tão para cima. Quatro meses e meio depois do choque da eleição de Bolsonaro, o Brasil retomou a palavra, e a rua. E quem está na rua, neste primeiro grande levante contra o governo Bolsonaro, também é uma nova geração.
2. Foram mais de 200 cidades por todo o Brasil, 26 estados, e choveu bastante. No Rio de Janeiro, quando avancei de guarda-chuva pela mega avenida Presidente Vargas rumo à Igreja da Candelária, onde seria a concentração, o asfalto brilhava de água e poças gigantes, manifestantes voltejando nas capas impermeáveis. Carioca não gosta de chuva. Mas 250 mil cariocas enfrentaram mesmo a ameaça de se molharem, e ao anoitecer a chuva estava cúmplice, aguentando para não cair.
Quando consegui furar até um murinho, e subir para cima dele, era impressionante o panorama. Já estive ali, ou nas redondezas, em várias manifestações, a última há pouco mais de dois meses, dia da mulher. Mas desta vez, para trás, para a frente, para as laterais, tudo estava cheio, compacto. E eram mães, avós, filhas, netas, bebés, professores, estudantes, universitários, adolescentes de escola pública, muitos, muitos. Milhares e milhares de jovens que não têm 18 anos. Aqueles muitos que nos últimos anos se têm multiplicado na luta pela educação secundária pública. Estes meninos e meninas eram crianças em 2013. Não é exactamente o mesmo povo nas ruas. É parte do povo que vi nos protestos de 2013, antes das forças mais negras terem capturado esse levante. Mas vai além desse povo.
E, de forma mais expressiva, cada vez com mais força, mais visibilidade, a geração de mulheres, de negros, de pobres, de periféricos, que pela primeira vez chegou à universidade, aos espaços públicos com as políticas igualitárias, de quotas dos governos Lula-Dilma. Os anos Lula-Dilma geraram vários problemas. Mas ainda não acabámos de ver todos os bons frutos desses anos. Muitos acompanhados dos avós: “Jovem de 1968 apoiando jovens de 2019”, dizia o cartaz de um avô ao lado do cartaz de uma neta: “Tem tanta coisa errada que não cabe num cartaz”.
3. Enquanto isso, o inimigo nº1 estava em Dallas a passar mais vergonhas, a aumentar a sua quota criminosa, além de gastar dinheiro dos contribuintes com uma deslocação sem programa, totalmente absurda. É tão abaixo de qualquer noção, tão mal-educado em todos os sentidos, que insultou quem estava na rua no país que ele é suposto governar: quem lutava por esse bem comum que é a educação. O presidente do Brasil simplesmente chamou “idiotas inúteis” aos cidadãos na rua, que se manifestavam de forma totalmente pacífica. Resumiu aquelas multidões em todas as cidades mais importantes do país como “massa de manobra”. Zero de visão, de raciocínio. Grau zero da política. Boçalnaro é o fundo do poço da incapacidade social, mesmo. O líder de como não vivermos uns com os outros.
4. As ruas reagiram rápidas, com cartazes no momento: “Os idiotas úteis contra um governo idiota inútil” ou: “Sem educação já basta o presidente”. E vi livros no lugar de armas, cartazes com livros, cartazes onde as multidões eram lápis, cartazes de quem pela primeira vez na família chegou à universidade e não quer que seja a última. Livros mesmo, na mão, apesar da chuva. Aos meus pés, vista do cimo do murinho, por exemplo uma mulher levantando “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector. Um mar de gente em volta da Candelária, igreja onde para sempre é impossível não pensar nos massacrados, nos abandonados à violência, desde que um grupo de jovens ali foi chacinado por milicianos, e onde hoje continuam a dormir tantos à porta, ao deus-dará. Um mar de gente Presidente Vargas fora, e ainda se erguem livros em 2019. Alguém traz para a manifestação uma Clarice Lispector. No mesmo país onde o presidente corteja as milícias mais criminosas.
5. Estou há semanas em périplo pelo Brasil, estive em várias grandes universidades públicas, Campinas e Brasília, Salvador e Rio de Janeiro, onde uma boa parte, senão a maioria dos estudantes, tem pele escura. Estive na universidade católica de Porto Alegre, privada, onde a esmagadora maioria dos estudantes de pós-graduação não paga nada, e em parte recebe, porque é bolsista, e isso quer dizer que muitos deles são pobres e negros. Vi como os professores lutam contra todas as dificuldades, como é difícil para os estudantes muitas vezes terem até dinheiro para a passagem de ônibus. E mesmo assim, fazem-se coisas incríveis nas universidades brasileiras, muitas delas com uma abertura à criação contemporânea, um fluxo interior-exterior de que não tenho notícia nas faculdades de letras portuguesas.
6. A energia da insatisfação de 2013 foi capturada pelas forças mais negras, as que levaram Bolsonaro ao poder. Isso também foi um fracasso da esquerda, tal como foi um fracasso da esquerda o abandono das periferias, hoje tão tomadas por igrejas neo-pentecostais obscuras e obscurantistas, algumas com verdadeiros projectos de poder.
Está na frente do Brasil, na nossa frente, retomar essa energia em 2019. O que os mais jovens mostram agora é que há sangue novo para essa luta. Eles serão o abre-alas do Brasil.
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