O país moderno, livre, cosmopolita, atrevido, sacudido, descontraído, alegre, europeu, atlântico confunde-se com o Só-ares, o Bochecas, o Presidente. Eles são, os dois, uma nação que se ergueu das cinzas, depois de quase meio século de uma ditadura mesquinha, perversa e cobarde. Orgulhosamente só uma ova. Portugal sem mordaça ou modorra, Soares é fixe, mãos soltinhas, língua de fora, sorriso esperto, sesta imprevista, gargalhada grande, “ó sr. guarda, desapareça”.
Soares é o sapo engolido, é domador de tartarugas, o do “quem o avisa, seu amigo é”, o tal que levou porrada na Marinha Grande, quem beijou o anão e disse “calem-me esse filho da…”. Soares meio descalço em fotografia meia solene. Soares é história, a nossa história, é o animal político, é a política, o debate, a discussão, a provocação, o incómodo, a polémica, sempre até ao fim, mesmo na hora da morte. Soares não é defunto consensual, o tal da longa, penosa e bocejante hagiografia. Nem traidor do país ao serviço do comunismo, nem vendilhão ao serviço da CIA. Nem herói da pátria nem coveiro da revolução. Não é santo é homem, carne e coração, pecado e perdão.
Bom vencedor, mas melhor perdedor (veja-se a electricidade com que, aos 82 anos, reagiu à pesada derrota que teve nas presidenciais de 2006), racionalmente positivo - “já perdeu quem desiste de lutar” -, pouco dado à nostalgia, esperançoso, volitivo, transformador, do Fórum Porto Alegre à Aula Magna, morreu como viveu, lutando, fértil, cintilante, inquietante. A gerar discussão, reflexão, pensamento. Como se nunca acabasse. Talvez não acabe.
Na verdade, foi dos primeiros democratas e o primeiro que se pode odiar. Viveu e liderou tempo suficiente para isso, fez escolhas, bateu-se por alternativas, tomou decisões. Nada de neutralidades, molezas, nem sim nem sopas, assim-assim mais ou menos. Sobretudo, Soares foi o oposto da rigidez, certeza, pensamento único, terminal, círculo infernal do Estado Novo que nos faz ficar velhos, como dizia o outro.
Mas não só. Também antípodas da burocracia, cerimónia, austeridade, do bom aluno, penteadinho, bife grelhado, eurocrata, fruta normalizada, directiva 576, doutor, professor doutor, excelentíssimo. Mário Soares foi o estadista cidadão do mundo, desinibido e à vontadinha que tirou o português do pequeno defeso pelo protocolo e secretaria, do medo, do pobre e bem-agradecido, pobre mas honrado, lavadinho, e o atirou para a grande festim dos cravos, da democracia, da cultura, da curiosidade, da descoberta e experimentação.
Mário Alberto Nobre Lopes Soares é infantil, é sabidão, energia sem fim, manha, sede, fome, vida. Futuro, sempre o futuro e menos fado. O presidente de todos os portugueses. Da parte boa dos portugueses, líder, optimista e empática. Do melhor de nós. A maioria nunca mais conhecerá outro desta dimensão. Soares diria que isso é um disparate, “claro que conhecerão”. A sua partida fecha uma época na nossa história. Soares diria que a seguinte será muito melhor.
Obrigada. Muito obrigada.
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