Tem o dobro do sangue dos outros, porque tem o coração perto da boca e é imensa. Pode armar-se em diva se quiser, sabe como o fazer, mas é uma pessoa fácil, gosta de uma boa conversa, dos seus amigos, dos filhos, dos netos, das memórias boas do que viveu. Não temos como lhe ser indiferentes.
Herman José disse um dia: “Amem-na ou deixem-na voar”. Ela nunca se deixou prender.
Simone de Oliveira despediu-se dos palcos. Tem 84 anos de idade. Na segunda-feira, ao telemóvel, disse-lhe: “Vai correr bem”. E ela respondeu: “Vai, vai, olha, vai lá tu”. A pisar as tábuas de tantos palcos há 65 anos, o nervosismo ainda subsiste.
É uma cantora, uma actriz como poucas. “Aguentar deve ser o verbo da minha vida”, confidenciou-me em 2013 para a biografia que escrevi intitulada “Força de Viver” (edição Matéria Prima).
Podemos simplificar e aceitar o que diz: “Sou a Simone e canto cantigas”. Mas é muito mais do que isso. É uma força da natureza, pioneira em tantas coisas, livre como poucas mulheres da sua geração. A vida não lhe foi fácil.
Muito se escreveu sobre a Simone que está longe de ser verdade. Até a mataram antes do tempo. Aguentou tudo. Sobreviveu a dois cancros. Escreveu sobre o cancro da mama e deu a cara para que as mulheres entendam a importância de ouvir os sinais do corpo. Perdeu o amor ainda cedo na vida. Varela da Silva, que a criticava com exigência, era também quem a incentivava mais. Dizia-lhe, depois de um bom espectáculo: “Sabes o que fizeste?” E ela, perfeitamente consciente de ter cantado bem, de ter feito uso de uma segunda voz que lhe veio depois de um período sem cantar, respondia com um sorriso: “Cantei”.
Entrevistar a Simone para escrever a sua vida foi uma das experiências mais maravilhosas da minha carreira de jornalista. Lembro-me de estarmos na sua casa, o seu pombal, como lhe chama, e de fumarmos cigarros, comermos chocolates, rirmos e chorarmos. Não ficámos amigas, não era esse o propósito, mas creio que cumpri com o objetivo. Quem ler este livro tem a voz dela, as histórias dela e aquele sangue em dobro que faz com muitas pessoas considerem que é altiva, quando na verdade é apenas uma mulher com uma capacidade de empatia fora do normal.
Simone põe, em cada gesto, em cada palavra, todo o peso daquilo que traz consigo, o bom e o mal, quem é e quem foi. Não esconde nada e, sendo plural, é de uma transparência quase perturbadora. Talvez seja a questão da ausência de “papas na língua”.
Varela da Silva explicou-a num programa de televisão dizendo: “A Simone é moderadamente violenta. Encontra-se melhor com a sua violência, violência que, como mulher inteligente, sabe controlar, sabe dominar, sabe orientar, mas, no entanto, a violência dela - para ela - é a sua arma. A violência a gostar, a violência a não gostar. Parece uma mulher um bocadinho extremada, quando gosta, ama. Quando não gosta, odeia, mas felizmente tem uma boa articulação intelectual de dar o tom certo às suas paixões”.
Simone vive intensamente e talvez seja essa a violência de que falava o marido.
Ontem, terça-feira, o Coliseu em peso aplaudiu esta mulher enorme. Novas e velhas gerações juntas, a cantar, a chorar, a perceber que ali, no palco, está uma mulher livre, única, um pedaço da nossa História.
Obrigada, Simone.
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