Como um dos moderadores dos painéis onde Brittany Kaiser esteve presente referiu, há duas pessoas que associamos às denúncias de resultaram no escândalo da Cambridge Analytica: “o do cabelo cor de rosa [Christopher Wiley] e a do chapéu”. É a do chapéu de quem falamos neste artigo — chapéu esse que usa no documentário e que, curiosamente, hoje envergava.

A ex-diretora da empresa Cambridge Analytica esteve em Lisboa, por ocasião da Web Summit, e há dois temas transversais a todas as suas intervenções: dados e privacidade.

Mas já lá vamos. Comecemos por onde a conhecemos. Brittany Kaiser é uma das principais denunciantes do escândalo de acesso ilegal pela Cambridge Analytica aos dados de milhões de utilizadores do Facebook, para uso na campanha eleitoral de Donald Trump, em 2016.

Por isso, talvez a pergunta de Mark Di Stefano, jornalista do BuzzFeed e moderador do painel “Combating the weaponisation of data”, e a resposta de Brittany Kaiser sejam um bom ponto de partida para perceber por que é que estamos a ouvir falar (ou a ler) sobre ela:

- "Afirma que nos queremos proteger das pessoas com quem esteve num 'ninho de cobras'. Não acha que haverá quem não confie em si?"

"Provavelmente, e sempre será assim. Mas essas não são as pessoas que estarão interessadas no facto de que estou a ser, neste momento, parte da solução. Dei uma volta muito grande no que toca à minha compreensão da indústria de dados", respondeu a texana de 32 anos.

"Quando comecei a trabalhar nesta indústria, em 2007, e me juntei à campanha do Obama, recolhíamos dados para entendermos o que fazia com que as pessoas se interessassem pela política. O que inspirava os jovens a registarem-se para votar pela primeira vez. E, de repente, começámos a usar dados de forma a que as pessoas se tornassem mais ativas politicamente".

Kaiser conta que começou a trabalhar na Cambridge Analytica quando estava no terceiro ano do seu doutoramento, que tinha áreas de estudo problemáticas, como por exemplo sobre a forma como poderíamos "usar grandes sistemas de dados de forma a evitar guerras".

E foi na empresa com sede em Londres que diz que aprendeu "mais sobre dados do que o que desejaria". "Vi o quão mau era o lado mau de tudo isto", resume.

Agora, "voltei a ser ativista, mas de tópicos ligeiramente diferentes daqueles de que costumava falar". É nesta nova fase da sua vida que está em Lisboa, a falar.

Dados, uma indústria que vale “três mil milhões de dólares”

Horas antes, logo na abertura do palco "Future Societes", na conferência "Can anything be private anymore?", Kaiser falou mais em detalhe sobre a problemática.

"As pessoas não compreendem a quantidade de dados que produzem diariamente, a quantidade de dados que é recolhida sobre si, e que é depois comprada e vendida e trocada por todo o mundo, tanto por organizações privadas como públicas. Não existe transparência nem forma de escapar a isto, e não há hipótese de consentir ou não à forma como os nossos dados são usados assim que estão fora das nossas mãos".

Quando falamos em dados, do que falamos? Ora, não há resposta fechada. Podemos estar a falar de idade, nacionalidade, idioma, clube, religião, marca de iogurte favorita, local mais visitado, grau académico, livro favorito, último disco comprado. Apenas para dar alguns exemplos, porque a lista é longa e podemos falar de centenas ou milhares de parâmetros.

É por essa razão que Kaiser deixa a nota: "Lamento dizer-vos, mas se tiverem criado um perfil de Facebook antes de abril de 2015, não podem ter a vossa privacidade de volta".

"Não há forma de fugir aos milhões de bases de dados onde eles se encontram, não podem recuperá-los. A quantidade de dados que produzimos desde que nascemos, a quantidade de empresas que os detêm... Não temos o direito de os apagar, de os recuperar".

Mas devíamos, diz. E se não podemos recuperar os do passado, é preciso trabalhar para que possamos ter os do futuro protegidos: "serão mais valiosos que tudo o que produzimos no passado".

créditos: PATRICIA DE MELO MOREIRA / AFP

"Quando eu falo sobre proteção de dados, falo sobre os dados que produzirei agora e no futuro, os dados que os meus filhos e netos produzirão. Não podemos recuperar a nossa privacidade do passado. Mas os dados mais valiosos dizem respeito ao agora, são novos dados".

É por isso, conta Brittany Kaiser, "que trabalho duramente em novas leis e regulações, em aconselhar as empresas tecnológicas que estão a solucionar estes problemas".

Literacia digital, a solução

Por falar em soluções, Kaiser apresenta três "que precisam de ser implementadas de forma conjunta": educação, legislação e ética. Sobre a questão da educação demora-se na argumentação, e aponta a falta de literacia digital como um dos principais fatores.

"Um dos maiores problemas em relação à segmentação de dados é que não temos literacia digital. Muitos não entendem os tipos de tecnologias de que precisamos para nos protegermos. Não sabemos como identificar a desinformação. As crianças não sabem como se proteger do ‘cyberbullying’. As pessoas não entendem como seria um código ético, ao interagir com outras pessoas ‘online’”.


As imagens do 3.º dia da Web Summit


Voltando a referir-se a políticas de proteção de dados, pede um compromisso: "vocês têm de chamar a atenção aos vossos legisladores".

"Eles não fazem ideia da quantidade de apoiantes da proteção de dados e da privacidade de dados que existe. Se quiserem realmente ser donos dos vossos dados como de qualquer outra propriedade vossa, serem capazes de os monetizar vocês mesmos, e obter transparência, precisam de os chamar à atenção".

Como? "É muito fácil", diz. "Enviem-lhes um e-mail. Não é preciso esperarem por uma resposta. Basta que eles o vejam na sua caixa de entrada, que percebam que as pessoas se preocupam com estas questões".

Relativamente ao recente debate sobre a suspensão de anúncios políticos nas redes sociais — o Twitter  já anunciou que vai rejeitar qualquer publicidade política —, Kaiser diz ser a "favor de uma suspensão temporária".

"Porque, infelizmente, existem demasiadas empresas como a Cambridge Analytica. Irão usá-los no Reino Unido nas próximas eleições, e, no próximo ano, teremos que lidar com isto antes da reeleição, ou não, de Donald Trump".

É por essa razão que diz que apoia a proposta da Senadora Elizabeth Warren, candidata democrata às presidenciais norte-americanas. "[Ela propõe] uma Lei de Responsabilidade para executivos de grandes empresas; isto significa que, se empresas como o Facebook ou a Equifax permitirem o acesso aos dados privados das pessoas, tal será encarado como um crime de negligência - e os executivos irão para a cadeia. Lamento, mas é disto que precisamos".

Para terminar, mais uma pergunta de Mark Di Stefano e respetiva resposta de Kaiser.

- "Sob essas regras, estaria na prisão?"

- "Eu nunca quebrei nenhuma lei, então, tudo bem."