A muito poucas vozes da música feita em Portugal se poderá colar o rótulo de “sobrevivente”, mesmo que este seja, grosso modo, um estratagema heurístico comummente utilizado no jornalismo cultural sempre que um ou uma artista ultrapassam ou ultrapassaram uma qualquer dificuldade mais ou menos inominável nas suas vidas. Porém, nem este cinismo poderá apagar esse adjetivo da carreira, do corpo ou da alma de Simone de Oliveira. Ela, que sempre disse tanto amar a vida, é de facto uma sobrevivente: do primeiro casamento, manchado pela monstruosidade da violência doméstica; do regime salazarista e de alguns exageros da Revolução de Abril, que a acusaram de simpatia pelo fascismo e lhe partiram os discos; dos problemas de saúde que a atormentaram, primeiro no final da década de 60, quando perde a voz e é obrigada a abandonar, por dois anos, o seu percurso enquanto cantora, e depois em 1988 e novamente em 2007, vencendo por duas vezes um cancro da mama; e sobretudo do esquecimento, num mundo onde – e não é um problema exclusivamente português – quem foi outrora estrela depressa perde o seu brilho para as gerações mais novas.
Foi talvez o destino que lhe deu a longevidade, o mesmo destino que fez com que, de forma a abater uma depressão, Simone entrasse pela primeira vez no Centro de Preparação de Artistas da Emissora Nacional, em 1957. À altura, uma carreira artística não lhe estava de todo no pensamento. Mas bastou-lhe cantar uma única vez, embasbacando de imediato os presentes, para dar início a um percurso que nos anos seguintes lhe rendeu a coroa máxima no Festival da Canção por duas vezes: primeiro em 1965, com 'Sol de Inverno', e depois em 1969, com 'Desfolhada', a mesma do verso que só num Portugal cinzento poderia ser polémico. Quem faz um filho, fá-lo por gosto. E quem cantou como Simone o fez, durante 65 anos, também só o poderia fazer por gosto.
No Coliseu dos Recreios ouvimo-la cantar a 'Desfolhada' por duas vezes, já no final, já depois de um espetáculo de despedida mais curto que o que se preveria, com Simone de Oliveira a mostrar-se em palco – acompanhada pelos seus músicos, evidentemente – durante pouco mais de uma hora. Talvez para alguns isso tenha sabido a pouco; para outros, só o simples facto de ela estar ali à sua frente já foi motivo mais que suficiente para a aplaudir de pé, como se verificou por mais que uma mão cheia de vezes. Quase esgotado, o Coliseu foi por uma noite casa sobretudo para as gerações que a acompanharam desde o início (e que, quem sabe, se despediram também desta coisa que é ir a concertos ao vivo com ela). Mas também se vislumbravam, aqui e ali, alguns rostos já nascidos neste século. Um deles, ao abandonar a sala pela Rua das Portas de Santo Antão, descreveu-a com uma simples palavra: “rainha”.
À porta, um aviso bastante simples: «neste espetáculo os artistas fumam em palco». O rosto que adornava os cartazes publicitários, o seu, vinha acoplado do sempre solitário cigarro na boca, símbolo da mulher que nasceu livre – e sobre isso «não há nada a fazer», conforme explicou ao “Gerador”. Apesar das indicações, não se viu Simone fumar em palco; a cigarrilha lá estava, como parte do cenário, mas permaneceu intocável. O fumo, no entanto, saiu-lhe pela boca em formato de palavra. Se eu quiser fumar, eu fumo / Se eu quiser beber, eu bebo... Com estes versos de 'Preconceito', a artista deu início à sua despedida dos palcos. Lidos de um teleponto, ou talvez apenas “ponto”, já que nos referimos a alguém que também teve o «privilégio» (palavra sua) de fazer teatro, assim como fez cinema e televisão.
De facto, saímos do Coliseu dos Recreios a pensar que este não foi um mero concerto musical, onde o erro e o improviso são por vezes melhor que o seu todo, mas sim uma peça ensaiada ao mais ínfimo pormenor, onde cada deixa foi dada sem rodeios. Tanto, que não se inibiu de agradecer a presença do excelentíssimo Presidente da República, que naquele momento se encontrava a 300 quilómetros de distância, celebrando com os jogadores da Seleção Nacional a presença na fase final do Campeonato Mundial de Futebol. Tanto, que ao “Público” admitiu que não houve ensaios nem nervos, o que se notou na primeira metade do espetáculo. No fundo isso pouco importou. Mesmo lidas e não contadas ou cantadas, as palavras que disse logo depois continuam a conter o seu quê de verdade: «Termino a minha carreira nos termos que eu quis e quero».
Foi evidente, durante essa primeira metade, que a voz de Simone de Oliveira, aos 84 anos, já não é o que era. Às pessoas que são grandes, e sobretudo às pessoas que brincam com os gritos de és grande! com um imediato «já fui maior, quando usava saltos...», podemos perdoar-lhes muita coisa. Até porque a sensação é a de que quem ali estava, estava sobretudo para a ver, antes que as portas e as janelas de sua casa se fechem para sempre. Esses perdoam-lhe a rouquidão inicial, abatida com 'No Teu Poema', onde a emotividade foi arrancada à força das suas cordas vocais, e 'Degrau a Degrau', canção dona de um ritmo de crime de faca por acontecer, o perdão do último verso gritado de forma quase sarcástica. Mesmo que não tenham perdoado a DJ Kamala uma remistura esforçadíssima da 'Desfolhada' com declarações de Simone, qual rave geriátrica. Mas esse momento fez parte do jogo. Quando é reinventado, o artista renasce, explicou a artista ao público. «Só espero que continuem».
Foi essa ideia de renascimento – que naturalmente implica que um artista nunca morra verdadeiramente – que levou outros vultos da cultura nacional a marcar presença, como colaboradores, ao longo do espetáculo. Carlão, que foi fazer um rap kitsch em 'Não é Verdade' com o maior dos sorrisos, foi um deles. Juntaram-se-lhe ainda Edmundo Inácio, numa prestação estrondosa de 'Sol de Inverno', que não destoaria numa qualquer Eurovisão (a própria Simone concordará, já que afirmou que «se eu tivesse cantado assim não tinha ficado em 12º», numa referência à sua prestação na edição de 1965 desse festival). E, em formato flash mob – ou seja, cantando desde a plateia –, vimos Henrique Feist, Ruben Madureira, FF, Sissi, Marisa Liz e Áurea interpretar quadras de 'Apenas o Meu Povo', naquele que foi o grande momento da noite, e que muito enlouqueceu o Coliseu. As novas gerações a abraçar Simone, para que não se apague a sua chama «rebelde, contestatária e opinista».
Sobretudo para que não se apaguem canções como 'Desfolhada', que só poderia mesmo merecer um bis. O verso, aquele, ainda é cantado por alguns dos presentes com um sussurro, uma vergonha, como se mesmo depois de tanto tempo e tantas revoluções ainda seja tabu pensar sequer em fazer filhos por gosto. «Somos um país de brandos costumes em que o mal fica atrás da cortina», explicou Simone ao “Público”, e «eu fiz sempre tudo à frente da cortina». Tanto o fez que deu ao cançonetismo nacional algo capaz de rivalizar com o Neruda do quero fazer contigo o que a Primavera faz com as cerejeiras. Tanto o fez, que a cortina de palco se viu obrigada a travar a sua marcha com tamanhos gritos de Simone!, Simone!, que ainda deixou uma réstia de esperança, corrigindo um «obrigado e até sempre» para «até já». As despedidas, sabemo-lo bem, são difíceis, mas podemos invalidá-las. Basta existir vontade.
Comentários