"O pior que pode acontecer a um escritor é o jornalista que se senta e diz: 'Peço desculpa, mas não li o seu livro'", disse recentemente ao 'Público' José Eduardo Agualusa, o homem que não tem intenção de morrer. Este preâmbulo foi mais ou menos o mesmo que abriu a conversa com Carlos Pimenta, que idealizou uma transformação de Tchékhov no Teatro Carlos Alberto (TeCA), no Porto.

Entrevistado pelo telefone à distância que separa a mui antiga, nobre, sempre leal e invicta cidade do Norte da também nobre e leal Lisboa, nesta conversa romperam-se os pactos e o jornalista não viu nem ensaios, nem récitas, que chegam esta sexta-feira ao fim.

A horas de um novo confinamento, que atira a cultura mais uma vez para um definhar dolente, parte-se, então, para o desmembrar da história, para a abstração dos formatos em que ocorre no palco do Carlos Alberto, como forma de encontrar a remissão do pecado.

O TeCA arranca assim 2021. Ainda antes da incerteza, As Três Irmãs, do dramaturgo russo Anton Tchékhov, reconstrói-se, explorando os "sons recorrentes de Tchéckhov" para "descrever uma dramaturgia sonora que convoca o imaginário do público", lê-se numa nota enviada à imprensa.

O mesmo documento aponta para os laços entre "o teatro, o tempo e o acontecimento". A peça é desfigurada: Carlos Pimenta pegou na tradução de António Pescada e reconfigurou os seus sentidos cénicos, nesta co-produção Ensemble - Sociedade de Atores e o Teatro Nacional São João, com sonoplastia e desenho de som de Francisco Leal e música de Ricardo Pinto.

Com a dramaturgia assinada por Rui Lage, As Três Irmãs é interpretada por Emília Silvestre, Isabel Queirós, Bárbara Pais, Daniel Silva, Margarida Carvalho, Paulo Freixinho, João Cravo Cardoso, José Eduardo Silva, Jorge Mota, João Castro, Clara Nogueira e António Afonso Parra.

Pimenta montou, assim, um "'teatro radiofónico' que propõe um confronto entre a sonoplastia e as palavras de Tchékhov", convocando o próprio espectador para um papel ativo no desenho das situações e ambientes num universo imaginário (tema, aliás, recorrente no teatro contemporâneo, que recentemente tornou possível a estreia em Portugal de Lorenzaccio, que Musset escreveu há dois séculos, pela mão de Rogério de Carvalho, no Teatro do Bolhão).

Prestar atenção à escuta obriga a "ouver" a dramaturgia, a ter em conta as nuances em busca da clarividência narrativa. Este confronto do ouvir e ver, que a jornalista Rita Colaço, da Antena 1, fundiu em "ouver", teve também por estes dias uma transmutação: a rádio que se tornou visível para se fazer acessível a quem não ouve (e arranca com a história de Marco, estudante universitário que não tinha como aprender).

Em vésperas de confinamento, é difícil afirmar com certeza até quando e em que circunstâncias a peça estará em cena. António Costa anunciou na tarde desta quarta-feira que os espaços culturais ficam fora das exceções às restrições impostas a partir da meia-noite do dia 15 de janeiro. As últimas informações do TeCA ao SAPO24 apontavam para que houvesse récitas até ao próximo dia 16. Durante a semana às 19 horas, e no sábado às 10:30. Os bilhetes custam 10 euros.

O que é ouvir?

Pergunta difícil. Ouvir é prestar atenção. Esta resposta pode parecer um pouco estranha, porque também prestamos atenção às imagens, mas diria que isto é semelhante à oposição do Saramago entre o ver e o olhar — olhar é olhar e ver é sentir que se vê.

Talvez pelo facto de o som ser menos presente que a imagem — porque a imagem é de tal forma dominante nas nossas sociedades —, consigamos ter maior capacidade de prestar atenção do ouvir e não do ver.

Numa sociedade em que as imagens são tão presentes e tão dominantes, a audição ganha outro valor. É um pouco como quando vamos numa rua e de repente no meio do ruído da cidade alguém está a tocar e nos sentimos atraídos por aquela música, ficamos concentrados naquilo enquanto ao lado tudo continua a girar — e se calhar tem a ver com isso, com o nível de atenção a que dedicamos mais tempo.

E como é que se constrói uma cena, abdicando de todos os sentidos exceto de um?

No caso de As Três Irmãs, privilegiamos um sentido — a audição —, mas há algo de performativo, de físico a acontecer em frente aos espectadores: os atores estão lá, há uma série de objetos e de acontecimentos como se fosse um estúdio de gravação; há o chamado folley, há também painéis, microfones... Apesar de tudo, há ali qualquer coisa.

Porém, se o espectador fechasse os olhos, o espetáculo estava todo lá no som e seria totalmente perceptível no som — porque nós desenhamos o espetáculo para o som.

Agora, não fomos aí a uma versão tão radical que é pôr tudo negro, sem se ver nada e apenas para ouvir. Não o quisemos fazer, procurámos trabalhar esta questão de possibilitar um outro nível de experiência, um nível a que  o espectador está menos habituado no teatro, porque o teatro apesar de tudo é a imagem, cujo ecrã é um palco que me dá sobretudo imagens.

Aqui quisemos que a imagem passasse para segundo ou terceiro plano: logo anunciando algo que tem a ver com o som, o espectador já vai desperto para receber esse som, receber mais o som que a imagem. Chamamos o som para um nível de experiência face ao poder das imagens — não nos podemos esquecer de que o século XX é o século das imagens, do cinema.

Mesmo hoje, passámos da geração do leitor de MP3 para a geração do smartphone, passámos da geração da escuta para a do olhar para o ecrã.

João Tuna / Teatro Nacional São João

Significa que estamos perante uma espécie de manifesto iconoclasta, uma revolta contra a imagem?

Não, não muito. Não tenho nada contra as imagens — curiosamente, acabei agora de dar uma aula, por Zoom, de Cultura Visual e Contemporaneidade. Acho é que há outros níveis de perceção e o som tem sido negligenciado em todas as áreas: por exemplo, falamos da paisagem visual, mas esquecemos da paisagem sonora, que é muito importante. O som é descurado em muitos aspetos.

Isto é no fundo ativar um outro sentido que existe e é determinante na dimensão humana, mas a que deixámos de prestar atenção.

Faço desaparecer qualquer coisa para que outra surja.

Acho que o público contemporâneo, até por causa das tecnologias  de comunicação e de partilha, está cada vez mais interessado em diversos níveis de experiências interativas, imersivas, seja o que for. Assim, quisemos também apresentar um outro nível de experiência. Como a imagem é tão forte e impositiva, achamos interessante acentuar o som, porque sabemos que a imagem é extraordinariamente dominante.

Estava agora a lembrar-me de um espetáculo que fiz há alguns anos com a Mónica Calle e a Luciana Fina, o Senso, do [Camillo] Boito, no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. No palco tínhamos a cara da Mónica Calle num ecrã de três metros por três — uma coisa filmada no Teatro La Fenice [em Veneza], onde a história se passa —, e depois aparecia  a Mónica atriz: mas a Mónica atriz ao lado daquela imagem desaparecia completamente. A imagem era tão poderosa — está a imaginar um rosto de 3 x 3 metros num palco, com a cara da Mónica Calle? Não compete com a Mónica Calle fisicamente, ela não consegue competir com aquilo, nem ela nem ninguém.

Tínhamos um problema. Andámos ali quinze dias sem saber como o resolver: "o que é que a gente faz? Não podemos pôr a Mónica Calle ao lado desta imagem porque ninguém vai olhar para a Mónica a falar, toda a gente vai olhar para a cara no ecrã porque tem 3 x 3 metros e a Mónica tem 1,70 metros — não há hipótese".

Então, acabámos por fazer desaparecer a Mónica Calle, escondemo-la na zona das flanelas pretas e ouvia-se apenas a voz dela — e assim já era compatível.

Talvez este espetáculo tenha também um bocadinho a ver com isso: faço desaparecer qualquer coisa para que outra surja. Aquilo que fazemos  desaparecer é a possibilidade de as pessoas terem uma imagem conclusiva. Elas têm imagens, mas as imagens não são conclusivas, as pessoas têm de as construir.

Isto é um pouco como quando estamos a ler um livro, não é? Vamos lendo e construindo as nossas próprias imagens; as pessoas constroem imagens diferentes. Exceto se for um livro ilustrado, numa banda desenhada as imagens são iguais para todos.

O exercício aqui é, através do som, dar a possibilidade de construção de uma imagem — ou mesmo apresentar: há situações onde há um certo hibridismo entre o teatro e a rádio; apresentamos a imagem, mas não a construímos totalmente, deixar ao espectador a possibilidade de ele a continuar.

Nós procuramos alertar o espectador para que não se deixe embalar, que seja racional na análise.

A mensagem sai afetada deste exercício — ou, por outro lado, a dramaturgia é reforçada?

As três irmãs estão lá todas. Introduzimos aqui um outro elemento: há uma pequena personagem, o Ferapont, que tem cinco ou seis falas, com quem o Rui Lage, que faz a dramaturgia, fez um trabalho fantástico, colocando essa personagem como uma espécie de comentador/narrador/Tchékhov, se quisermos, mas hoje — o Ferapont faz hoje um comentário dos 120 anos em que a peça foi representada. Porque de cada vez que a peça é representada há informação acrescida.

Mas é um pouco também aquilo que o Tchékhov fez também na altura. Esta é a primeira peça que ele escreve para o Teatro de Arte de Moscovo, assistiu aos ensaios e foi modificando coisas à medida que ouvia os atores a falar e foi eventualmente conjeturando sobre determinadas cenas — "isto aqui faz sentido, aquilo não faz, que disparate esta personagem dizer aquilo" —, e o Rui Lage fez esse trabalho de uma certa leitura crítica da peça, possibilitando, em simultâneo, o distanciamento do espectador da ação.

Nós procuramos alertar o espectador para que não se deixe embalar, que seja racional na análise, ou seja, crítico a analisar isto — um pouco com o Brecht fazia com o efeito de distanciação ou distanciamento.

João Tuna / Teatro Nacional São João

Mas que história nos é contada neste espetáculo?

Bom, isto são três irmãs — e um irmão, a peça chama-se As Três Irmãs, mas eles são quatro — que vivem numa cidade da província, todas elas nasceram em Moscovo e viveram em Moscovo, e têm como sonho ir para Moscovo, porque são de uma família educada e não encontram naquela cidade com um sistema algo provinciano motivos de interesse, que as completem e as façam felizes.

Aparece a determinado momento naquela cidade um regimento, que ali se instala, e aparecem pessoas de Moscovo e cada vez mais elas procuram, através dessas pessoas, essa ida para Moscovo. Mas não fazem grande coisa para ir, porque se calhar bastava meterem-se na carruagem de um comboio — há aqui uma certa inação, um certo ócio, uma incapacidade de indecisão.

Depois, Moscovo, embora seja algo que elas sabem que eventualmente pode modificar as suas vidas, não deixa de ser sempre um ideal não concretizado, é como se lhe chegasse apenas o facto de dizerem que vão para Moscovo.

Há uma frase muito bonita na dramaturgia do Rui Lage na peça em que diz "a felicidade é um horizonte que recua" — ou seja, nós procuramos sempre a felicidade, mas parece que ela está cada vez mais longe. A determinado, através deste Ferapont, o Rui Lage escreve também "mas se nós encontrarmos a felicidade, será que a reconhecemos?" — e isso é verdade. Estas irmãs procuram uma felicidade que não sabem bem o que é.

É casar? Ter um marido de quem gostam? Viver numa sociedade com pessoas ao nível cultural delas? É terem uma afirmação de felicidade pelo trabalho? É o quê? Elas próprias não sabem, só sabem que aquela vida se calhar não lhes interessa muito.

Isto enquanto, curiosamente, entre estes militares, o comandante da bateria, o Verchinin, vem de Moscovo e quer exatamente o contrário: ser viver numa casa com flores do campo porque Moscovo é uma cidade que não lhe interessa nada.

Há sempre este desejo do inalcançável, do ideal, que não sabemos bem quando encontrar, onde é que ele está.

O espetáculo estreou na semana passada. Como foi recebido, já lhe chegaram alguns comentários, algum feedback?

Já tive algum feedback, foi muito bem recebido. Não costumo ser juiz em causa própria, mas posso dizer que as pessoas dizem que é uma proposta bastante inovadora relativamente à forma de apresentar Tchékhov.

Esse também foi um objetivo: não a inovação pela inovação, mas eu sou um entusiasta de Tchékhov há muitos anos e quando pensei em fazer Tchékhov pensei: vou fazer mais um ou vou fazer algo em que possa experimentar outras formas. E quisemos arriscar noutro tipo de conceitos.

As pessoas receberam bem nesse aspeto de ser uma proposta inovadora. Estando lá também a peça toda, toda a gente disse que era compreensível, não havia um trabalho conceptual, uma chacina que desvirtuasse um pouco ou que transformasse a história noutra coisa qualquer.

Acho que a receção foi ótima — mas [risos] não me compete a mim julgar.

Faria sentido apresentar esta peça exclusivamente na rádio?

Ah, mas completamente, totalmente, totalmente. Sou um grande fã do teatro radiofónico — aliás, há um realizador com quem tive a sorte de trabalhar e que fez muitas peças na rádio, o Eduardo Street, que tem um livro sobre teatro radiofónico, e que tem uma expressão lindíssima para designar o que isto é: "teatro imaginado", que eu acho muito, muito bonita.

João Tuna / Teatro Nacional São João

Há espaço hoje para ter teatro radiofónico, as radionovelas, nas grandes rádios portuguesas?

Há. Curiosamente, a minha tese de doutoramento foi sobre teatro e tecnologia e tem lá partes até sobre o teatro radiofónico, mas eu acho que há um espaço muito interessante, que tem a ver mais com a produção de sons e o contar as histórias do que com a ideia de teatro radiofónico que temos dos tempos áureos deste formato, nos anos 1960, 70, 80.

A produção de sons que o Teatro Nacional São João fez de uma forma muito interessante aqui há uns anos com uma série chamada "Os sons, menina!", uma série de CDs que foram produzidos com sonorizações de textos dramáticos — e é um trabalho muito interessante, muito inovador e que gosto imenso de ouvir, sobretudo à noite, quando estou mais tranquilo e tenho mais capacidade de escuta, quando consigo estar mais concentrado na escuta.

Então, acho que haver espaço há: sei é que depois há outro tipo de questões, não é? Mas artisticamente gosto imenso, embora depois seja difícil em termos financeiros e de produção.

Quais são os planos para o futuro desta peça?

Pois... Isto com a situação da pandemia estamos todos com o futuro assim um bocadinho condicionado. Mas a peça está aqui [no TeCA] até dia 16 e depois vamos ver se a conseguimos apresentar pelo menos em Lisboa, há muita gente que me tem dito para levar lá a peça, mas vamos ver — nem sabemos o que vai acontecer para a semana. Não sabemos.