Bastaram os primeiros acordes de 'People = Shit' para que a Altice Arena entrasse em ebulição, formando circle pits aqui e ali, saltando, pisando cadeiras e destruindo copos, atirando camisolas pelo ar, perdendo carteiras e sapatilhas, relembrando adolescências ou vivendo-as na sua plenitude. Durante pouco mais de uma hora e meia, ninguém pensou nos problemas que assolaram a edição deste ano do VOA – Heavy Rock Festival; ninguém pensou que, em termos de acústica, o que brotava do palco não chegava ao público nas melhores condições; ninguém pensou que o dia seguinte era de trabalho, que voltar para casa poderia ser bastante complicado, que as dores nas pernas e nos braços e a falta de sono impediriam o bom funcionamento dos processos cognitivos.
A culpa foi dos Slipknot, que regressaram a Portugal uma década depois, para encabeçar o primeiro dia de um festival dedicado ao heavy metal naquele que foi um concerto em modo aquecimento: em agosto virá novo álbum e nova digressão, e a promessa até foi feita pelo vocalista Corey Taylor, ainda em palco: “vocês hão-de ver os Slipknot outra vez”. Após tamanha demonstração de força, de agressividade, e de pujança, as expetativas já estão outra vez no alto. Que nos poderão trazer os norte-americanos da próxima vez que os encontrarmos? A resposta é simples: um novo disco, um novo espetáculo, uma nova sessão de pancadaria. E novamente a sensação de que ser-se fã dos Slipknot é como pertencer a uma clique distinta, a um grupo mais ou menos mafioso que, mais que se colocar às margens da sociedade, se está borrifando para essa mesma sociedade.
Está tudo nos versos de 'Surfacing', canção presente no primeiro álbum “à séria” dos Slipknot (editado em 1999 e o sucessor de “Mate. Feed. Kill. Repeat.”, disco de tendência avant-garde lançado originalmente em 1996 e que hoje é tido pelo grupo como uma mera maqueta), e que foi descrita por Taylor como “o hino nacional” antes de terminar o concerto na Altice Arena com chave de ouro. Espera, chave de ouro? Nah, talvez mais uma soqueira. Riffs metálicos, efeitos resgatados ao hip-hop, graves e percussão a baterem-nos no rosto como um bulldozer. E a percussão é ao mesmo tempo música e espetáculo: é vê-los, em palco, a espancar bidões metálicos com tacos de basebol em chamas e a pensar caramba!, ora aí está um grupo de malta com o qual não gostaríamos de nos cruzar à noite em locais descampados.
Os Slipknot são, muito provavelmente, uma das expressões máximas – ou pelo menos das mais violentas – do ennui neurótico e juvenil, daqueles períodos na nossa vida nos quais todos estamos certos e as outras pessoas são apenas lixo. Mais de 20 anos de carreira apoiados nesta simples expressão: “We Are Not Your Kind”, que se pode livremente traduzir como “não somos da vossa raça”, discurso agressivo, separação das águas entre o “nós” e o “resto”, título do sexto álbum de estúdio dos norte-americanos, a ser lançado no próximo dia 9 de agosto. É impossível não ver este título como uma espécie de resumo da carreira dos Slipknot: um grupo de gente enraivecida, de música crua, que não cede nem pede cedência.
Jim Root, guitarrista da banda desde 1999, parece concordar com esta ideia. “A sociedade está a mudar, e não sei como é que os Slipknot se enquadram nela”, diz-nos, nos bastidores da Altice Arena, poucos minutos antes do concerto e sem a máscara que o caracteriza em palco (sendo que todos os membros dos Slipknot se mascaram para os seus espetáculos, de forma a preservar algum anonimato e também alguma pureza na sua música, colocando o foco na mesma e não nos seus rostos). “Sempre nos posicionámos contra a indústria musical, e contra aquilo que a sociedade acha que é normal. Agora há uma espécie de mentalidade coletiva, por causa das redes sociais. As pessoas não sabem aquilo por que lutam, lutam por causas sobre as quais não receberam qualquer tipo de educação... Os Slipknot são o que são desde há 20 anos”.
Cresçam, malta. Isto é Slipknot! É assim que o mundo funciona. Estragas as minhas coisas, eu estrago as tuasJim Root
Root, que também fez parte dos Stone Sour (onde Corey Taylor também é vocalista) até 2014, apresenta-se-nos como um gigante gentil (quase dois metros de altura e músculos a dar com um pau) de discurso solto, mas com a aura de quem seria capaz de nos partir ao meio se estivéssemos dispostos a espicaçar o seu lado menos simpático. E o próprio confirma-o, contando-nos uma curta estória de forma a comprovar o seu ponto de vista: “O nosso novo percussionista [cuja identidade não foi ainda revelada] deu-me cabo da pedaleira e fez-me falhar uma canção. Ao bom jeito dos Slipknot, rasguei-lhe as peles dos bombos. Deixei-lhe só algumas para que pudesse terminar o concerto. Tê-lo-ia feito ao Chris [Fehn, percussionista despedido este ano da banda], ao 'Clown' [Shawn Crahan, percussionista e fundador da banda], ao Mick [Thomson, guitarrista], ao Sid [Wilson, turntablist e teclista]... Se alguém me lixar as coisas, eu vou lixar as deles. Vale tudo. Deram-me um bocado na cabeça, disseram-me que lhe estava a fazer bullying... Cresçam, malta. Isto é Slipknot! É assim que o mundo funciona. Estragas as minhas coisas, eu estrago as tuas”.
Olho por olho, dente por dente, muito resumidamente. Diz-nos o guitarrista que “We Are Not Your Kind” vai de encontro ao que já era dito em 'Surfacing': fuck it all, fuck this world, fuck everything that you stand for..., que é melhor deixar sem tradução. Porém, tudo isto também tem a ver, para Jim Root, com falhas na comunicação entre seres humanos: “Há muita gente que pensa da mesma forma e que não o sabe, porque não comunica com as outras pessoas. Se conseguirmos quebrar estas barreiras, ultrapassar todos estes rótulos e conversar, descobriríamos que não somos assim tão diferentes”.
A diferença, ou a autoproclamação de diferença, encheu a Altice Arena após o VOA – Heavy Rock Festival se ter para lá deslocado, devido a um problema de segurança na estrutura do palco que já havia sido montado no Estádio do Restelo. O mosh e o crowdsurfing eram proibidos, mas não foram evitados pela segurança do espaço. Num alinhamento que foi uma espécie de best of dos Slipknot, uma das canções mais celebradas pelos fãs ficou de fora: 'Wait and Bleed'. “Foi o que o Corey escolheu, e toda a gente concordou mais ou menos com isso”, explica-nos Root, que admite “não ser bom a escolher alinhamentos de concertos ou discos”.
A atual digressão dos Slipknot serve, mais que para apresentar já os temas do álbum novo, para ir testando as águas. “Estamos apenas a começar. Vamos, provavelmente, andar na estrada uns dois anos e meio. Vamos voltar, dar concertos em nome próprio, aumentar o alinhamento dos concertos... Estamos a aprender. Chegámos a um ponto em que temos um catálogo tão grande que é difícil incluir tudo”, afirma. “Temos de pensar no que andamos a tocar, naquilo que tocámos quando visitámos um local específico... Temos de ver aquilo de que as pessoas irão gostar mais [em 'We Are Not Your Kind'] e ajustar-nos”.
Vamos voltar, dar concertos em nome próprio, aumentar o alinhamento dos concertos... Estamos a aprenderJim Root
O álbum começou a ser preparado ainda durante a digressão em torno de “.5: The Gray Chapter”, lançado em 2014 e que foi o primeiro dos Slipknot sem dois dos seus membros fundadores, o baixista Paul Gray [falecido em 2010, devido a uma sobredose de drogas] e o baterista Joey Jordison [abandonou em 2013, devido a doença]. “Algumas das maquetas [de 'We Are Not Your Kind'] têm um ou dois anos”, revela o guitarrista. “E algumas são ideias que andámos a ruminar durante o 'The Gray Chapter', mas nas quais nunca trabalhámos muito tempo”. Numa banda que conta, na sua totalidade, com nove elementos, pode ser difícil juntar toda a gente na mesma sala de um mesmo estúdio. “No 'The Grey Chapter' e no 'All Hope Is Gone' [álbum de 2008] tocámos todos separadamente. Com algumas exceções, como a 'Sarcastrophe'. Neste disco, assim que as maquetas ficaram do nosso agrado, tocámo-las enquanto banda, deixámos que tomassem forma enquanto banda. Já não fazíamos isso desde o 'Vol. 3: (The Subliminal Verses)' [de 2004]. É algo que temos mesmo de fazer sempre que fazemos um disco, creio. É muito mais orgânico, sentes o pulso à banda, para onde ela vai e vem”.
Na antevisão de “We Are Not Your Kind”, Jim Root descreveu-o como “uma experiência de álbum completa”. Num mundo musical cada vez mais dado ao streaming e aos singles, como nos anos 50 e 60, ouvir um disco do princípio ao fim está a tornar-se, cada vez mais, um processo anacrónico. “O 'Clown' teve uma visão acerca deste disco: não é, de todo, algo conceptual, mas há uma razão específica para haver uma passagem entre duas canções, para que as mesmas tenham a ordem que têm. Tem a ver com numerologia, com o que retiramos de cada canção, até com os compassos”, afirma. “Se vais lançar uma obra de arte com essa duração, tem de captar a atenção das pessoas. Senão, perde-se neste mundo digital do streaming, onde as pessoas só querem ouvir esta ou aquela canção, e querem pô-la numa playlist com outras canções que não são necessariamente da mesma banda”.
O 'Clown' teve uma visão acerca deste disco: não é, de todo, algo conceptual, mas há uma razão específica para haver uma passagem entre duas canções, para que as mesmas tenham a ordem que têmJim Root
Olhamos para a quantidade de festivais que grassam pelo mundo inteiro, e somos tentados a responder que o público de hoje trocou a experiência que tinha com os LPs por aquela que tem com os concertos ao vivo. É por isso que, por entre os fãs portugueses dos Slipknot, não existe quem não saiba a história do mítico festival da Ilha do Ermal, em 2002, onde a banda atuou no mesmo cartaz que uns tais de... Nickelback, que foram prontamente corridos à pedrada. “Não me lembro bem do que aconteceu, mas... Ups!”, ri-se Jim Root. “Deus abençoe os Nickelback por terem o sucesso que têm, é muito difícil consegui-lo. Mas eu também não os quereria ouvir. Não sei se chegaria ao ponto de atirar pedras, talvez me fosse só embora”...
Embora, e para bem longe, foi também a oportunidade de Jim Root vir a tocar a mesma Fender Stratocaster com a qual David Gilmour gravou clássicos como 'Money' e 'Comfortably Numb', e que foi recentemente arrematada num leilão por mais de 3,5 milhões de euros. Root, que tem no ex-Pink Floyd um dos seus maiores heróis da guitarra, não esconde algum desânimo. “Eu sabia que essa guitarra iria ser vendida por mais dinheiro do que alguma vez ganharia na vida, por isso tirei a ideia da cabeça”, lamenta, entre sorrisos. “Nem sei o que faria com ela. Por um lado, tens um artefacto histórico que é preciso preservar; por outro, é uma guitarra! Precisa de ser tocada! Quase choro ao pensar nisso... Espero que esteja em boas mãos, bem cuidada, e que o dono me deixe tocá-la um dia destes”, remata. Quem sabe? Talvez, um dia, os Slipknot consigam incluí-la numa das suas canções. É que futuro, à banda, não falta.
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