PRÓLOGO

Depois de entrarem no complexo industrial, os dois homens esperaram pelo sinal escondidos atrás do contentor de entulho, onde a câmara de vigilância não conseguia filmá-los. Do outro lado da estrada, por entre as árvores que formavam uma densa mancha até ao rio, uma lanterna piscou três vezes, avisando que o alvo estava a sair do bloco de escritórios e a dirigir-se para o carro. No instante em que se sentou no lugar do condutor, um dos homens entrou pela porta de trás e tapou-lhe a boca, enquanto o segundo surgiu do lado do pendura e lhe apontou uma pistola à cabeça. Como previsto, não houve qualquer resistência. O dono da fábrica foi algemado, amordaçado, e saiu do carro obedientemente, seguindo o caminho que lhe foi indicado.

Ainda que a lua estivesse cheia, o seu reflexo não se espelhava na água como prata. Ali, qualquer brilho era absorvido por uma espuma acastanhada, opaca e quase estática, como um campo de neve suja a cobrir toda a superfície do rio. Apavorado, as mãos presas atrás das costas, o homem fitava o manto de espuma e nem reparou que aos dois raptores se tinha juntado um novo elemento, carregando umas caneleiras de pesos, como as que se usam nos ginásios. Era difícil perceber a diferença entre os três, já que todos tinham o cabelo rapado, vestiam fatos-macaco verdes e usavam botas pretas cardadas, mas a estatura do novo elemento, assim como a delicadeza com que lhe prendera as caneleiras de pesos à volta das pernas, deixavam adivinhar que se tratava de uma mulher. «Anda», ordenou uma voz feminina, cravando-lhe o cano de um revólver na nuca. Não sabia como obedecer, já que, se andasse mais um metro que fosse, entraria no rio. Foi nesse instante que percebeu que aquilo não era um assalto.

Os olhos do dono da fábrica encheram-se de lágrimas de angústia e de incompreensão. Não fazia ideia de quem eram aquelas pessoas, nem porque queriam matá-lo. Tentou falar, mas a mordaça impedia que os sons que soltava fossem per- ceptíveis. Tentou olhar para trás, suplicar pela vida, mas, ao mínimo gesto, o cano do revólver cravava-se-lhe mais contra a pele. Sabia que o rio não era muito profundo, dificilmente ficaria com a cabeça submersa, por isso, provavelmente iam estourar-lhe os miolos e deixar o corpo desaparecer na corrente. Mas porquê? Se fosse por dinheiro, teriam ficado com o relógio ou com a carteira. Talvez fosse um homicídio encomendado. Um ex-sócio? A sua mulher? As lágrimas corriam-lhe pela cara enquanto tentava gritar, esforço inútil. «Continua a andar!», gritou ela assim que se deu conta da sua hesitação. A água do rio dava-lhe agora pela cintura e a espuma aproximava-se do peito. Não ia continuar. Preferia levar um tiro na cabeça. Em desespero, tentou correr para trás, só que o peso das caneleiras fez com se enterrasse cada vez mais no fundo lodoso e deixasse de ver o que quer que fosse, como se, de um momento para o outro, tivesse sido engolido por um ser das profundezas do rio. A espuma ultrapassava a sua altura e entrava-lhe pelos olhos, pela garganta, pelo nariz, impedindo-o de respirar. Por mais que agitasse o corpo para tentar soltar-se, por mais que tentasse gritar, sabia que ia morrer.

Sérgio Godinho junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 20 de junho, uma quinta-feira, pelas 21h00. Consigo traz o seu romance "Vida e Morte nas Cidades Geminadas", editado pela Quetzal.

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Laura deixou-se ficar com o revólver apontado em direcção ao monte de espuma até este parar de oscilar, enquanto um dos seus companheiros acabava de cravar um símbolo numa árvore com um pequeno canivete. Quando a espuma ficou estática, ocultando por completo o corpo do homem, baixou os braços, embora o olhar permanecesse fixado no vazio. «Vamos embora», exclamou Frank, mas ela não conseguia mover-se. «Vá, toca a andar, o espectáculo acabou», insistiu ele, puxando-a pelo braço para que saísse daquele torpor. Caminhou em silêncio atrás dos dois companheiros até ao local onde tinham escondido as bicicletas. Montaram-se nelas e começaram a pedalar, as luzes apagadas, sempre junto à berma, por atalhos longe da estrada principal. Laura só queria chegar a casa. E vomitar.

Aquilo a que Laura chamava casa era um esconderijo num antigo armazém de uma quinta abandonada, base das operações há vários meses, separado em duas áreas distintas: a maior, onde se espalhavam mesas com computadores e servidores próprios, dois sofás e uma cozinha improvisada com algumas tábuas e um fogão de campismo; e uma menor, com vários beliches e um acesso à latrina exterior. A luz era parca, as paredes nuas, e sentia-se no ar um intenso cheiro a humidade.

Laura, Frank e Erik foram recebidos como heróis. Mal abriram o portão enferrujado, os vivas, os abraços de alívio e os cânticos de vitória entoados pelo resto da equipa contrastavam com o que ela sentia. Tentou sorrir, aceitou a cerveja que lhe puseram nas mãos, mas, pouco depois, desculpou-se com o cansaço e fugiu para a sua pequena cama junto à parede da camarata, onde imaginava que estavam coladas fotografias de momentos felizes e outras coisas que nunca poderia exibir. O frio no pescoço e nas orelhas era uma novidade a que ainda não se habituara, procurando em vão os longos cabelos ruivos que já não tinha. Fitou a parede sem tinta, na esperança de que a textura do cimento afastasse a imagem da espuma a engolir o dono da fábrica. Procurava formas nas irregularidades, como se faz com as nuvens quando olhamos o céu. Formas bonitas, que a levassem para longe.
Paolo apareceu pouco depois. Chamou pelo seu nome, mas Laura não se moveu. Sabia que ela não tinha adormecido (ninguém adormece tão depressa após a primeira execução), por isso, sentou-se na beira da cama a olhá-la com ternura. «Laura», chamou de novo, baixinho, e como ela não respondia, deitou-se a seu lado, abraçando-a por trás. Ao sentir-se envolvida pelos braços de Paolo, Laura não conseguiu conter todas as lágrimas que estavam presas desde a margem do rio e começou a chorar compulsivamente. Paolo limitou-se a apertá-la com mais força e a sussurrar repetidamente ao seu ouvido, «vais ficar bem». Quando Laura não tinha mais lágrimas para soltar, ele estendeu-lhe um lenço e beijou-lhe o pescoço.

— Já tenho saudades dos teus cabelos — disse com carinho.

— Vais ter saudades por muito tempo — respondeu Laura, sentando-se na cama para se assoar e limpar o rosto.

— Estás melhor?

— Estou. Foi só a descompressão.

— Laura, falámos sobre isto durante muito tempo. O que hoje começou não pode ser parado. Não há espaço para dúvidas, arrependimentos e, muito menos, sentimentos de culpa.

— Eu sei...

— Amanhã há outro. E depois outro, e depois outro — lembrou Paolo.

— Certo — respondeu com prontidão, como um soldado que acaba de anuir ao seu comandante.

— Nenhum de nós pode fugir um milímetro que seja do plano. Todos contamos com todos.

Ela sabia. A execução do plano era como uma coreografia ensaiada com precisão até os pés criarem bolhas. Cada passo tinha um tempo, uma sequência, um porquê. Primeiro, identificar empresários sem escrúpulos, juízes corruptos, políticos inconsequentes, e eliminá-los de forma poética, conforme o crime cometido. Depois, bombardear as redes sociais com propaganda que demonstrasse inequivocamente que as Brigadas Verdes eram a única alternativa a um governo medíocre e sem uma estratégia eficaz para atingir as metas necessárias à sobrevivência do seu povo. Um governo que tardava a encontrar resposta para os milhões de desalojados das zonas costeiras em perigo e das zonas rurais onde a água há muito não chegava. Um governo que falava em transição energética, mas que aprovava a construção de novos oleodutos. Os ataques seguintes já estavam em marcha. Cada célula sabia o que tinha de ser feito e estava disposta a tudo para o fazer.

— Podem contar comigo. Só preciso de aprender a encaixar o homicídio na lista de coisas que nunca tinha imaginado fazer...

— Não foi um homicídio.

— Sim, tenho de mudar o chip. Autodefesa, matar ou morrer.

— Precisamente. E quando tiveres dificuldade em fazê-lo, pensa nos teus oito mil coalas.

— Os meus oito mil coalas — lembrou Laura, sorrindo.

— Ah, agora sim, um sorriso! — exclamou Paolo, beijando-lhe os lábios. Depois, olhou-a com um misto de entusiasmo e admiração. — Conseguiste, Laura!

— Conseguimos, Paolo. Nada nos vai parar.

Beijaram-se apaixonadamente, as mãos a deslizarem pelo corpo um do outro, as línguas a percorrerem os pescoços, os fatos-macaco verdes despidos com urgência, sexo selvagem, como se fosse a última vez, agora que cada vez poderia mesmo sê-lo. Nem se preocuparam em trancar a porta. Os outros sabiam quando não entrar.

Mais tarde, sem conseguir pregar olho, fixando novamente a parede cinzenta, Laura recordou como surgira a ideia que os levara até ali. Conseguia ver a sala insonorizada de um estúdio de gravação abandonado, onde decorrera mais uma reunião clandestina para preparar os ataques, a primeira para ela, a enésima para os restantes. Estavam lá o Paolo, o Frank, o Erik, mas também o Luc, a Maria, o Carlos, a Karen e o Miguel. Lembrava-se vivamente de se ter sentido alarmada quando soube que Luc fora membro da Frente de Libertação da Terra, um grupo considerado terrorista, responsável por inúmeros ataques e actos de sabotagem. Ou de ouvir Maria assumir bem alto que, pela sua experiência enquanto ex-membro das secretas, considerava que Laura não tinha perfil para o que estavam a preparar e que iria ceder assim que fosse interrogada pela primeira vez. Ou de ter achado Carlos demasiado imaturo para liderar a célula dos explosivos. Lembrava-se vivamente de ter ido à casa de banho do estúdio molhar a cara com água fria e de se ter perguntado se seria assim que os soldados se sentiam quando partiam para a guerra. Tinha de ter uma confiança cega nas pessoas que estariam ao seu lado, todavia, não as conhecia e, para algumas delas, parecia que não era bem-vinda. Como saber se cumpririam o seu papel? Como saber se todos estavam realmente dispostos a dar a vida pela causa, mas também uns pelos outros?

Livro: "Admirável Mundo Verde"

Autor: Filipa Fonseca da Silva

Editora: Suma

Data de Lançamento: 10 de junho de 2024

Preço: € 16,65

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Lembrava-se ainda de saltar entre o orgulho de fazer parte de algo nobre e a culpa de matar alguém. Sim, várias vidas seriam ceifadas sem dó nem piedade durante a Revolução, e Laura questionava-se, então como agora, se a vida humana seria mais valiosa do que a vida de qualquer outra espécie aniquilada diariamente devido às acções dos homens. Na altura, decidira que não. Decidira que chegava de desculpas e adia- mentos, acordos e conferências onde os intervenientes falavam e falavam, mas não levavam a cabo as mudanças concretas e necessárias para a salvação de milhões de vidas. Chegava de petições, marchas, invasões de conselhos de ministros, vandalização de obras de arte, greves de fome e cadeados em fábricas. Decidira ficar com o grupo contra a hipocrisia de quem se dizia preocupado com o assunto, mas não se desviava um milímetro de um estilo de vida consumista e suicida, mesmo perante as notícias diárias de secas históricas, furacões descontrolados e incêndios selvagens, como aquele que, na Austrália, tinha dizimado oito mil coalas e outros cento e quarenta milhões de animais. Cento e quarenta milhões! Não havia outra maneira. Chegara a hora de matar os culpados, todos eles, um por um, por mais poderosos que pudessem parecer, até que se desse uma verdadeira mudança. Até que todos os governos percebessem que não havia tempo para adaptações lentas que não incomodassem os lobbies. A mudança era urgente. A mudança era agora. Porque a única civilização possível é aquela que vive em comunhão com a Natureza.

Ensaiou mentalmente o discurso que iria gravar dentro de dias, o qual seria divulgado em todas as emissoras de televisão, rádio e redes sociais quando chegassem à sétima execução. O objectivo era incitar o povo a marchar nas ruas, exigindo a queda imediata do governo.

(Olhos na câmara, doces, mas assertivos.) Caros concidadãos, mais um criminoso perdeu a vida hoje devido aos seus atentados contra o nosso planeta. Um assassino que, todos os dias, desprezando os pedidos desesperados da população, arriscava a vida de todos em nome do capital. Não restam dúvidas de que foi justamente castigado. (Pausa e gesto de prece.) Este foi o sétimo acto de libertação das Brigadas Verdes, um movimento revolucionário pela salvação do povo e da Natureza. Muito tem sido divulgado nas redes sociais acerca da nossa origem e propósito, mas estou aqui para vos dizer que não nos move uma ideologia, religião ou interesse económico. Não somos financiados por nenhuma corporação. Somos um grupo de cidadãos em luta pela sobrevivência da nossa espécie e de todas as outras, que partilham connosco este maravilhoso planeta em agonia e das quais também dependemos. (Pausa e leve sorriso.) Iniciámos um caminho sem retorno, matar quem nos mata, com perfeita consciência de que é uma guerra. Uma guerra pela vida, por mais paradoxal que possa parecer. Como em qualquer guerra, sabemos que há dois lados. Hoje podem escolher o vosso. (Pausa dramática.) Quem estiver connosco, a lutar pela vida e pelo futuro de todos, nada deve temer. Estará protegido, estará do lado do bem. (Sorriso tranquilizador.) Quem nos tentar deter com o intuito de perpetuar um modo de vida insustentável, em que a ganância e a corrupção se sobrepõem a tudo, vai continuar a ser perseguido, torturado e morto sem misericórdia, até não restar nenhum de vós. Isto não é um aviso. A guerra já começou. (Olhar confiante para a câmara. Abertura de plano revelando Paolo e o Luc ao meu lado. Fim de emissão.)

Relembrar cada uma destas palavras ajudou-a, por fim, a adormecer. A angústia fora substituída por um enorme orgulho de fazer parte do lado bom da história. Sonhou que estava com Billie e Max na Casa do Lago.

Três anos depois

Quando era mais nova, a minha mãe ficava enervadíssima por me ver sempre agarrada ao tablet. Estava constantemente a olhar por cima do meu ombro e a criticar o que quer que fosse que eu estivesse a fazer: jogar, ver vídeos parvos ou deslizar o dedo pelas redes sociais. Dizia que a minha geração ia ser uma geração de inúteis, com sérios distúrbios de aprendizagem e pouca desenvoltura para lidar com o mundo real. Que não iríamos saber mudar uma lâmpada, desentupir um cano, fazer uma bainha ou plantar qualquer coisa que nos valesse, se um dia precisássemos de comer. Que iríamos perder a capacidade de sonhar, de conversar, de criar brincadeiras com um pau e uma pedra, como ela fazia no seu tempo. Volta e meia, dava-lhe uma fúria e tirava-me mesmo o aparelho das mãos. «Pronto, acabou-se», afirmava num tom decidido, indiferente aos meus protestos. E eu, em lágrimas, a perguntar o que queria que fizesse o dia inteiro em casa sem um tablet. Vivíamos num prédio, mas eu não conhecia bem os meus vizinhos, e as crianças, naquele tempo, já não brincavam na rua. Aliás, nessa altura eu não era assim tão criança. Perdera a capacidade de me deslumbrar com uma borboleta ou de me divertir a perseguir um carreiro de formigas, e, além disso, já estava demasiado crescida para trepar às árvores ou andar de baloiço. Respondia-me, então, que inventasse. Que fosse para a janela observar o mundo, contar carros, contar pessoas, ver as nuvens a desfazer-se devagarinho, como algodão doce na língua. «O mundo real está lá fora, observa-o bem», dizia. Quem me dera poder mostrar-lhe que, agora, é isso que faço a maior parte do tempo.

Amuada no quarto, conversava comigo própria. Construía diálogos com outra parte de mim, queixando-me da mãe tirana que me calhara em sorte e da injustiça que era privar-me de falar com os meus amigos através daquela janela electrónica onde estava todo o meu mundo; aquele que me importava, não aqueloutro, chato e cinzento, dos adultos. Além disso, no meu mundo, poderia chamar alguém para mudar a lâmpada, desentupir o cano ou fazer uma bainha com um só clique, continuando a construir o meu avatar, que saltava de jogo em jogo em infinitas possibilidades. Como era demasiado preguiçosa para escrever todos os diálogos, argumentos e divagações que me ocorriam enquanto estava fechada no quarto, agarrava no diário que ela me oferecera e escrevia apenas: «Querido diário, a minha mãe é uma seca e assim que puder saio de casa para nunca mais voltar.» Deixava-o sem cadeado na mesa-de-cabeceira, na esperança de que o lesse. Não sei se alguma vez o fez.

Agora, apetecia-me ter nas mãos esse diário de capa verde e folhas perfumadas, ou outro qualquer, com ou sem cadeado, onde pudesse escrever sem me preocupar com as palavras ou em poupar cada bocadinho de papel para algo mais importante. Agora que quase não há papel...

Tenho direito a um caderno A4 por ano, o qual posso usar para escrever recados, desenhar, enviar cartas, enfim, tudo o que for estritamente necessário e que não possa ser feito de forma digital. No próximo ano, quando quiser levantar um caderno novo, devo levar o que tenho agora, provando que está todo preenchido. Nem uma folha em branco. Só então me darão outro. Desperdício zero. Privacidade zero também. É por isso que os contentores de reciclagem raramente ficam cheios. As pessoas depressa aprenderam a reutilizar cada caixa de cereais, cada saco de mercearia gasto, cada verso de cada folha, e eu não vou gastar o meu único caderno com divagações estúpidas acerca da minha solidão e das horas que passo a olhar pela janela. Prefiro usá-lo para anotar citações dos muitos livros que leio e continuar a falar comigo mesma, como aprendi a fazer naquelas tardes de tédio, naquela outra vida, deixando que as palavras se soltem e percam em diálogos imaginários e inconsequentes. Realmente, que interesse teria descrever este vazio? A mesma rua limpa e florida, as mesmas pessoas ensimesma- das, o chilrear intenso dos pássaros, o tinido das bicicletas, os cascos dos cavalos. Sons de aldeia numa cidade. E, no entanto, ao contrário do que acontecia nas aldeias, aqui ninguém se conhece nem partilha a sua intimidade. Por detrás de cada sorriso que nos lançam, há sempre alguma desconfiança. Nas parcas oportunidades que temos de iniciar uma conversa, ninguém pergunta de onde viemos nem o que fazíamos antes. Não interessa. Foi-nos sugerido que fizéssemos tábua rasa, neste novo paradigma que estamos a criar, juntos e unidos.

Quem escolheu ficar sabe que a única coisa que importa é sermos todos cidadãos cumpridores, cada um dando o seu contributo para um mundo melhor, provando que é possível viver no século XXI com várias comodidades e tecnologias, mas nenhumas extravagâncias ou desperdício. À hora de estender a roupa, trocam-se dicas para branquear uma peça com bicarbonato de sódio; na fila do Armazém Comunitário, discute-se a época adequada para semear determinado legume; nas salas de espera, aprendem-se diferentes pontos de malha. As profissões artesanais são cada vez mais valorizadas: carpintaria, costura, arranjos de electrodomésticos, transformação de resíduos, jardinagem, ao passo que as industriais estão a desaparecer. Ou a «transformar-se», como eles gostam de lembrar. O lema é fazer em vez de comprar, inventar soluções ecológicas em vez de esperar que as coisas nos caiam no colo embaladas em caixas coloridas e envoltas numa fina película de plástico. Também as lojas de antiguidades e de coisas em segunda mão destronaram as das novidades constantes. As grandes marcas só podem abrir portas em versão outlet e a maioria já saiu do país. O mais incrível é que toda a gente está feliz com estas mudanças e, sobretudo, predisposta a ensinar os outros a fazer coisas com as mãos e a esticar cada recurso que lhes chega. Admirável mundo verde!

Sim, a generosidade entre desconhecidos tem sido surpreendente. Excepto no que diz respeito aos afectos, claro. Estou cá há seis meses e não fiz um único amigo nem me dou com ninguém. Quando alguém mete conversa comigo, invariavelmente é para perguntar o que faço. É natural. Todos procuram alargar a sua lista de recursos. Alfarrabista? Oh, que interessante, sei perfeitamente onde é a sua loja, uma loja muito bonita, hei-de lá passar um dia destes, tenho uma pilha de livros em casa de que já não preciso, então adeusinho, prazer em conhecê-la, até um dia destes. Não se consegue ir para lá disto. Conversas de circunstância, troca de informa- ções importantes, mas inócuas. A verdade é que qualquer pessoa pode ser uma Mosca e ninguém quer arriscar. Eu cá sei que não quero. Além disso, já me habituei a estar por minha conta. «Nenhum homem é uma ilha», escreveu John Donne no século XVII. «Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é um pedaço do continente, uma parte do todo.» Pois aqui, caro John, já não há um continente, apenas um arquipélago feito de milhões de ilhas num mar intransponível.

Regressei à cidade em Novembro passado e já não assisti às purgas. De vez em quando, aparece um Morcego para levar alguém, mas é cada vez menos frequente. Parece que nos primeiros meses a razia foi tal que não deve ter sobrado nenhum dissidente ou, se sobrou, nunca mais terá coragem para abrir a boca. Nos dias que correm, quando um Morcego aparece, é porque houve uma denúncia anónima em jeito de vingança pessoal, ou então é trabalho das Moscas. Aconteceu há uns dias aqui no prédio.

Acordei de madrugada com gritos no andar de cima. A voz de uma mulher a implorar, «por favor, não, por favor, não»; por trás, o choro de uma criança. Foram os passos fortes e sincronizados a bater no soalho que me fizeram perceber que a minha vizinha recebera a visita das Brigadas. Fiquei à escuta durante algum tempo, escondida entre os lençóis, tentando adivinhar o motivo de tal invasão a meio da noite. Seria um aviso ou iam levá-la? Às vezes, eles aparecem só para intimidar, se o crime não for grave. Por entre a escuridão, esgueirei-me até à janela e vi um Morcego estacionado do outro lado da rua. Iam levá-la, sim. Continuei à espreita até ver a mulher ser arrastada por dois homens vestidos de verde, tentando olhar para trás, para a janela por cima da minha, onde provavelmente estaria a criança a chorar nos braços do pai. As luzes azuis do Morcego acenderam-se e a sirene começou a soar, sem consideração pela hora. Eles gostam que as pessoas vejam quando alguém é levado. Serve de aviso para que se mantenham na linha. Voltei para a cama, angustiada com a memória viva da mulher ainda nessa mesma manhã, no átrio do prédio, a acariciar a barriga enquanto abria a caixa do correio.

Não fui eu quem a denunciou, juro, mas eles vão achar que sim. Nunca irão perdoar-me. Eu, que até gostava deles. Não éramos amigos, claro, já disse que não tenho amigos por aqui, mas conversávamos sempre que nos cruzávamos nas escadas, mesmo que fosse sobre trivialidades, como faziam os vizinhos de antigamente. Chegámos a trocar receitas e dicas para sermos mais eficientes a lavar a roupa nas poucas horas em que corre água nas torneiras. Um vislumbre de normalidade. Cheguei também a ficar com a criança duas vezes, para eles saírem só os dois. Por que raio deixara ela que aquilo acontecesse? Em que momento achara que teria o bebé sem que ninguém reparasse? Não se consegue esconder uma barriga de grávida muito tempo. Planearia fugir? Como, se as fronteiras estão fechadas e os sessenta e seis quilómetros e meio de muro quase todos erguidos? Teria sido mais fácil livrar-se daquilo logo que soube, como uma boa cidadã, com todas as despesas pagas. Agora vai para a carnificina, sem anestesia, sem antibióticos. Que insensatez... Naquela madrugada, com essa imagem terrível na cabeça, não consegui pregar olho. Rebolei na cama, olhei para o relógio várias vezes e acabei por voltar para a janela, deixando-me ficar a olhar a rua mal iluminada onde não passava ninguém. Assisti ao céu a pintar-se de diversos tons de púrpura até ao despontar do primeiro raio de sol. Mais desperta do que nunca, decidi descer as escadas interiores que dão para a loja. A lei não permite que a porta abra antes das dez, mas pelo menos não estaria sozinha. As prateleiras estão bastante menos cheias do que no tempo do Sr. Joel, uma vez que as Brigadas Verdes levaram muitos dos livros que são agora proibidos, sobretudo os de Economia e Engenharia Industrial. Contudo, sobraram os meus preferidos: os romances, cujas personagens fazem as vezes dos amigos que não tenho.

Este alfarrabista e o pequeno estúdio por cima são a minha casa desde que regressei e dei com o apartamento onde vivia parcialmente destruído e ocupado por um bando de miúdos. Toquei à campainha, mas ignoraram-me. Toquei à dos vizinhos, mas já não eram os mesmos e, nos dias que correm, não se abre facilmente a porta a um desconhecido. Após muita insistência e explicações dadas pelo intercomunicador, os miúdos lá me deixaram entrar para que visse com os meus próprios olhos que não tinha sobrado nada da minha antiga vida. Quem por lá passara antes deles tinha levado tudo o que pudera. Todas as casas, lojas, armazéns e quintais cujos donos tivessem desaparecido, foram saqueados sem pudor durante a Revolução e nas semanas que se sucederam, até a ordem ser restabelecida. Qualquer objecto podia vir a ser precioso numa troca-por-troca ou para fazer dinheiro no mercado paralelo, numa altura em que ninguém sabia muito bem o que aconteceria a seguir. Louças, roupas, brinquedos, quadros, almofadas, cortinados, talheres, bibelôs, detergentes, medicamentos, escovas de cabelo, alfinetes, canetas, tudo. Teria sido instinto de sobrevivência, medo ou histeria? Provavelmente um pouco de cada. Encontrei, ainda assim, três objectos que para aqueles miúdos eram lixo, mas que para mim eram tudo: uma caneca lascada dos Estudantes Pelo Planeta, um vasinho com uma suculenta que continuava no minúsculo parapeito da casa de banho e o saco de rede que a Laura usava para ir à praça, mas que ninguém queria, precisamente porque, entre os buracos, caíam as coisas mais miúdas. Deixei-lhes o meu cachecol em troca daquelas coisas inúteis. No chão da varanda, a fazer de cama para um cão velho e magro, muito suja e coçada, estava a manta polar na qual a Laura se enrolava quando se recusava a ligar o aquecimento.

Por momentos, vi-a saltitando pela casa para se aquecer. O apartamento não era particularmente frio, mas, em certos dias de Inverno, ficávamos a bater o dente, porque a Laura só nos deixava ligar o aquecimento quando a temperatura exterior estava abaixo dos dez graus. Nem eu nem o Max nos queixávamos. As regras haviam sido claras desde o primeiro dia. Aliás, quando cada um de nós respondeu ao anúncio que ela colocou na vitrine de recados da faculdade, já fazíamos uma pequena ideia do que nos esperava. «Activista ambiental procura almas gémeas para partilhar abrigo de forma sustentável.» Confesso que hesitei em responder. Embora, na altura, as questões ambientais já estivessem no topo das minhas prioridades, o termo «activista ambiental» remetia-me para uma neo-hippie com rastas na cabeça, vestida com aquelas roupas largas que parecem pijamas, que não toma banho e é contra a depilação. No entanto, quando a porta se abriu para a visita ao imóvel, recebeu-me uma miúda de calças de ganga e top branco imaculado, debaixo do qual havia um sutiã, e em cujas axilas não vislumbrei um único pêlo. O cabelo estava molhado e cheirava a alfazema. A sala estava limpa e não havia pósteres de Shiva nem incenso a queimar. A Laura era toda luz e a sua casa cheirava a lar.

Fomos submetidos a uma rigorosa entrevista sobre os nossos hábitos de consumo e estilo de vida, e tivemos de assinar um contracto onde estava estipulado que podíamos ser expulsos por coisas como usar garrafas de plástico ou colo- car produtos de origem animal no frigorífico. Excepto ovos. Podíamos comer ovos, desde que fossem biológicos. Eu não era vegetariana antes de me mudar para lá, mas a casa era tão boa, com um quarto para cada um, casa de banho com banheira e uma sala comum, que menti com quantos dentes tinha e saí de lá direita à biblioteca para descobrir tudo o que pudesse sobre vegetarianismo.

Todas as opções de alojamento que tinha visto até então ou eram cubículos de seis metros quadrados em casas onde havia muitos outros cubículos, ou era uma cama num beliche partilhado com um desconhecido. Em ambos os casos, apenas uma casa de banho, cujo cheiro dava náuseas e cuja base do chuveiro tinha uma camada de surro, e o usufruto de uma cozinha com azulejos outrora brancos, agora amarelos de gordura. A lista de espera para a residência universitária era infindável, e viver numa pensão estava a sugar todas as economias que os meus pais tinham feito para eu estudar na capital. Tornar-me vegetariana ou ter de andar enrolada em mantas durante o Inverno era um preço insignificante a pagar por aquele apartamento luminoso e alegre, onde a Laura e o seu sorriso também moravam. De resto, pensei eu na altura, podia comer carne fora de casa ou beber um café com leite na faculdade, às escondidas dela, coisa que fiz durante os primeiros meses.

Certo dia, acabei por encontrar o Max na fila do McDonald’s. Na altura, ainda não tínhamos falado muito um com o outro. Ele instalara-se no apartamento depois de mim e, normalmente, acordava quando eu já tinha saído e regressava quando eu me estava a deitar. Ficámos os dois a olhar um para o outro, em pânico, para logo percebermos que estávamos ali pela mesma razão e que mais valia juntarmo-nos a saborear os nossos hambúrgueres, como quem fuma às escondidas dos pais. Foi o nosso primeiro encontro e o nosso primeiro segredo. Um segredo que não foi preciso guardar por muito tempo, porque, semanas depois deste episódio, chegámos a casa e a Laura estava a ver um documentário sobre a indústria da carne, de tal forma violento que nunca mais tivemos vontade de comer um animal. Hoje tenho a certeza de que não foi coincidência. Ela deve ter encontrado um recibo do dito restaurante no meio da roupa para lavar e, em vez de nos confrontar por lhe termos mentido, preferiu dar-nos a ver aquele documentário brutal, onde apareciam vacas com as tetas cobertas de sangue e de pus, vitelos a mugir de dor ao serem separados das mães e animais doentes, mantidos vivos a antibióticos para renderem um bocadinho mais. Era assim que a Laura passava as suas mensagens. Não falava, agia. Não argumentava, dava o exemplo. E, por isso, era tão fácil segui-la. Nós seguimo-la sem hesitar, durante os três anos que antecederam o seu desaparecimento.

Foi desolador olhar para as paredes do apartamento que partilhámos, testemunhas de tantas histórias, despidas de tudo aquilo que me era familiar. Saí de lágrimas nos olhos, caminhei durante horas sem destino, até dar comigo em frente ao alfarrabista, cujas montras estavam protegidas pelas grades e, por isso, intactas, ao contrário de muitas outras pelas quais havia passado. Fachadas e fachadas cravejadas de balas, edifícios e edifícios quase a ruir. Era ali que estudávamos quando a biblioteca da faculdade estava cheia, e foi ali que me escondi com o Max no dia em que começou a Revolução. Lembrei-me de que o Sr. Joel costumava esconder uma chave suplente debaixo de uma pedra nas traseiras. Saltei o muro, procurei durante mais de meia hora e, quando estava quase a desistir, convencida de que teria de dormir ali mesmo, naquele quintal, encontrei-a. Foi assim que entrei neste santuário a que hoje chamo casa. Tenho a certeza de que, se um dia o Sr. Joel vier a saber que aqui estou, não se vai zangar comigo. Talvez até fique feliz por saber que sou eu quem está a cuidar dos seus preciosos livros.

Onde estará o Sr. Joel? Ainda na terra para onde partiu? E o Max? Fugido? Preso? Decerto morto.

Morreram milhares de pessoas naqueles dias, cujos corpos foram depois enterrados em valas comuns, como sucede numa guerra qualquer. Eu não vi nada, mas foi o que me contou a Salete quando me acolheu na sua quinta. Contou-me também que me encontrou ao seu portão, praticamente desmaiada depois de vários quilómetros a vaguear moribunda, sem esperança ou destino. Parece que estive vários dias a delirar, perante o seu vigilante cuidado, e que, quando finalmente acordei, perguntei por ele. Com calma, a Salete explicou-me que havia uma lista de desaparecidos, mortos e fugitivos, a qual podia consultar em qualquer computador, se bem que a ligação à Internet fosse muito má naquele lugar. O meu primeiro instinto foi dizer que sim, claro. Queria consultar a tal lista, o meu e-mail, as redes sociais, tudo! Saber o que tinha acontecido e quanto tempo passara desde que me tinham levado. Teria sido um mês? Teria sido um ano? Tudo era vago e disperso na minha memória. Mas depois lembrei-me do que o Max me dissera quando andámos escondidos naqueles primeiros dias de assombro, e como era importante não revelar a nossa identidade a ninguém. Acabei por mentir à Salete e dizer que me chamava Joana e que o Max era o meu cão que se tinha perdido. Ela fingiu acreditar e calou-me com uma canja de galinha que sabia a casa. Nunca tentei procurá-lo. Tinha medo de que, sei lá como, me localizassem e viessem buscar. Acima de tudo, tinha medo de ver o nome dele na lista fatal.

Quando recuperei as forças, perguntei à Salete se podia ficar com ela na quinta durante algum tempo, a ajudar nas colheitas de Verão como forma de agradecimento por me ter salvado. Ela aceitou, como depois aceitou muitos outros seres errantes que por ali passavam e aos quais dava sempre abrigo e uma malga de sopa sem fazer perguntas. As colheitas de Verão arrastaram-se até ao Inverno e, depois, ao novo ano e ainda a um outro. Durante todo esse tempo, a Salete nunca perguntou o que quer que fosse sobre o meu passado e tratou-me sempre com enorme carinho. Foi como uma mãe para mim. Na verdade, foi como uma mãe para todos os que por lá passaram. Devia ter perto dos sessenta anos, roliça, de modos rudes e sem medo de nada, ao contrário de mim, que tinha medo de tudo. Ainda tenho, passado tanto tempo. Não sei se ainda estarei a ser procurada. Estou sempre à espera de que alguém entre pela loja e me leve. Pessoas do antigo regime ou do novo, que me queiram castigar por ter contado alguma coisa no tempo em que estive presa ou por algo que fiz depois, não faço ideia o quê, tal- vez viver sob uma identidade falsa. É tão fácil prender alguém nos dias que correm... Mas eu juro que não disse nada. Nem na altura, nem agora. O silêncio tem sido o meu mote. Se não lesse tanto, talvez até tivesse perdido o sentido das palavras...

Quando senti que era tempo de abandonar a quinta, cortei o cabelo, pus uns óculos de massa enormes que encontrei no sótão e decidi esquecer o passado. Todo o passado, menos a Salete, a quem ainda envio um postal virtual de Boas Festas. Agora sou a Joana, sobrinha-neta do Sr. Joel, que me deixou a tomar conta do alfarrabista quando fugiu para a terra durante a Revolução. J. Andrade, como consta no registo da empresa e nas contas que chegam para pagar. Ninguém faz perguntas.

Sou discreta e cumpridora. A Billie, amiga da Laura e do Max, para todos os efeitos morreu e está enterrada com todos os outros mortos numa vala comum.

Os meus dias passam ligeiros entre os livros que me rodeiam. Não costumo ir à rua. Prefiro apanhar ar no quintal das traseiras, à sombra da enorme figueira que me envolve com o seu aroma adocicado. Uma vez por semana, saio para deixar no Armazém Comunitário as compotas que faço com os seus figos ou com restos de fruta que recolho na mercearia, e levantar as senhas correspondentes. Todos temos de contribuir com algo feito por nós com materiais sustentáveis ou reutilizados, caso contrário cortam-nos o acesso às preciosas senhas, que podemos usar em qualquer lugar em substituição do dinheiro. Podemos fazer algo tão simples como uma pega em crochet ou raminhos de aromáticas plantadas na varanda, não interessa o valor da matéria-prima, interessa sim o número de itens que levamos. Um frasco de compota corresponde a uma senha e há senhas extras para quem se apresenta com produtos menos comuns. A ideia por detrás desta medida é obrigar as pessoas a produzir coisas com baixo impacto ambiental que possam usar no seu dia-a-dia e, simultaneamente, abastecer a comunidade, sem que se tenha de recorrer a produções de grande escala. Aposto que esta foi uma ideia da Laura. Ela sempre fez muita da sua roupa, assim como os presentes que nos oferecia. Velas feitas com óleo usado, mantas de retalhos, saquinhos com pot-pourri, colares de missangas, uma aguarela. Pintava muito bem.

O dinheiro, como o conhecemos antes, ainda circula, e muitas das coisas que existiam continuam por cá. Bancos, agências de seguros, cabeleireiros, cafés. Também é possível comprar uns ténis novos, desde que sejam feitos de materiais reciclados, ou um jornal diário, se bem que apenas em versão digital. Para a maioria das pessoas, parece que pouco mudou. Continuam a levar a sua vida para a frente, habituadas a que «eles» tomem decisões. «Eles», aquela entidade que desresponsabiliza e nos permite dormir sem o peso de ter de fazer seja o que for. «Eles», os que mandavam no antigo regime. «Eles», os que mandam no novo. Tanto faz. Ninguém se queixa, nem mesmo os que tiveram de se desfazer dos carros ou viram os seus empregos simplesmente desaparecer. Como quem trabalhava em gráficas, agora que são proibidos novos livros em papel. É por isso que a loja do Sr. Joel, que agora é minha, tem sempre clientes. Entram aqui pessoas para vender livros que encontraram por aí, e pessoas que querem comprar os últimos exemplares impressos. Já se habituaram à Joana, que responde com sorrisos sempre que pode, como se fosse também proibido desperdiçar palavras. Lançamentos de livros, só nas plataformas digitais. Não estou a par das novidades porque continuo sem querer aceder à Internet, a não ser para coisas burocráticas essenciais, mas suspeito que não sejam muitas. Quem quererá publicar sob o escrutínio do Mocho e da sua incessante busca por mensagens ocultas? Quem quererá escrever livros inócuos e unidimensionais? Dizem que ele consegue ler e bloquear e-mails e qualquer espécie de mensagens privadas. Tal como as pessoas, todos os dias desaparecem dezenas de contas de redes sociais sem deixar rasto. O potencial é infinito, quando toca a Inteligência Artificial. De qualquer forma, os livros novos não me fazem falta. Tenho ainda muitos dos clássicos para ler. Como disse Almada Negreiros, «não duro nem para metade de uma livraria». Mais uma frase que apontei no meu caderno.

Sou chamada à realidade pelo som de uma sirene que se aproxima. É o Morcego da noite anterior, que traz a minha vizinha de volta a casa. Vejo-a sair devagar e a porta a fechar-se com estrondo atrás de si. Parece um fantasma, pálida e hesitante, os olhos vazios cravados no chão. Conheço bem aquele olhar. O olhar de quem leva a alma quebrada, sem esperança de conseguir voltar a colá-la. Sinto um nó no estômago e, nos braços, os dedos grossos dos polícias que me arrastaram naquele dia e me atiraram para dentro da carrinha sem janelas, onde se amontoavam, amordaçados, outros jovens como eu.

É inevitável voltar a esse dia. A minha mente fá-lo constantemente, por mais que lhe diga que o passado já não existe e que só me devo preocupar com o agora. Sim, tenho lido também vários livros sobre como lidar com um trauma, de onde retiro estas frases-feitas, as quais, normalmente, até ajudam. Porém, volta e meia, acontece alguma coisa que me transporta até àquele momento e me faz revivê-lo uma e outra vez. Hoje foi a vizinha, esquálida, a regressar a casa, os passos trémulos e o som da porta do Morcego a fechar. Bam!