Uma cassete do Allen Halloween deu a volta ao teu bairro e um dia chegou a ti...
O “bairro”. Sítio delimitado por fronteiras físicas e sociais, cidade-estado abstrata dentro da metrópole opressiva, onde a justiça não é cega nem carrega uma balança. Um dos seus braços permanece caído, pesado, o outro apontando para bem longe do círculo, para o que existe para além da derrota a que se condenam os seus habitantes à nascença. O bairro, o subúrbio, incute em quem lá mora essa primeira regra primordial, a de um jogo sem resultados do qual poucos conseguem contar a história. Existe ali liberdade, dentro de (e paradoxalmente) uma prisão consagrada. Cresce-se no bairro para se ter nome dentro do bairro. Não num contexto de vida, mas de sobrevivência.
Allen Pires Sanhá foi um dos que lhes sobreviveu, ao bairro e ao jogo, para a poder contar, à história. De forma crua, sem rodeios nem rodriguinhos, apenas com a caneta e com recurso àquilo que os seus olhos viram, que as suas mãos fizeram. Impor-lhe uma moral, às suas canções, às suas letras, é não entender nem o jogo nem o bairro; esse é um conceito que não existe dentro deles. Ninguém lhes pertence para além de quem já lá está. Nem a moral, nem a justiça. Nem Deus, nem o Diabo.
Recorremos às figuras de Deus e do Diabo e, por arrasto, a essa eterna dicotomia entre o bem e o mal porque, mesmo não os tendo ao seu lado dentro do bairro, Allen deixou quase sempre nos seus temas um sinal para que Um, ou o Outro, o procurassem. “Bairro”, sobretudo a Quinta do Barruncho, em Odivelas, onde Allen cumpriu a adolescência. “Cumpriu”, como alguém cumpre o serviço militar, cujo equivalente no bairro é precisamente a idade onde se é mais suscetível às influências dos mais velhos. Nem “boas”, nem “más” influências. São o que são.
Vinte anos após ter fundado o seu próprio coletivo, a Youth Kriminals, Allen Pires Sanhá – vulgo Allen Halloween – anunciou a sua retirada da música. Tanto procurou que encontrou, no final ganhando apenas um: Deus, Jeová, a Salvação. No Facebook, explicou a sua decisão escrevendo que “não consegue fazer nada pela metade”. “Entendi que nenhum escravo pode servir a dois senhores ao mesmo tempo; ele acabará sempre por apegar-se mais a um e desprezar o outro. Tenho vindo a desprezar o meu Pai há muito tempo e não o farei mais”, pode ler-se.
Geração de interesseiros, mentirosos, idiotas, vocês vendem tudo, a vossa língua é uma nota
Durante esses vinte anos, expostos em quatro álbuns e mais uns quantos temas e colaborações com outros rappers, Allen Halloween nunca vendeu, de facto, o seu produto, a sua música. Não porque não a soubesse vender, mas porque não quis. Não lhe faltavam compradores, das grandes editoras aos miúdos do seu bairro. Do seu, e de todos os outros bairros que, de um momento para o outro, encontraram nas suas palavras não um refúgio, não uma salvação, uma filosofia, um conselho, mas uma realidade. Um noticiário, quase. O olhar que a comunicação social não expõe, preferindo a manchete sanguinária que alimenta a incompreensão.
Allen Halloween só pode de facto ser compreendido por quem, como ele, está ou esteve por dentro de toda a movimentação dos subúrbios, longe das riquezas, económicas e culturais, do centro. Por quem fez milhares de viagens de comboio, por linhas infetadas com o medo e o crime, para trabalhar horas absurdas por salários ainda mais absurdos. Por quem viu as drogas levar amigos para a prisão ou a morte. Por quem sentiu, no corpo e na alma, a humilhação suprema por parte de um polícia menos dado à sensatez. Por quem na escola escondia a vergonha dentro de um carapuço negro. Por quem viu mães a desesperar para alimentar os filhos, ou para lhes dar um teto onde se pudessem abrigar, o melhor que pudessem, da chuva e do frio. Por quem nem sequer chegou a ver algo semelhante a um pai, que com os anos se vai tornando palavra tosca em dicionário, e não sinónimo de carinho, de amor, de ensino.
Boa parte disto foi a sua vida. Halloween nasceu Pires Sanhá na Guiné-Bissau, nos anos 80, no seio de uma família com posses suficientes para ter uma vivenda com dois andares e dez empregados, conforme explicado em 2014 ao jornalista João de Almeida Dias — num trabalho republicado por estes dias no Observador. Na infância, o pai abandonou a família para emigrar rumo à Alemanha de Leste, onde estudaria Economia. Seguir-se-ia outra fuga, a da mãe com os dois filhos, entre os quais o próprio Allen, para Lisboa. O luxo de uma vivenda trocado pela lata e pela madeira do barracão onde morou, no Casal da Paradela, também em Odivelas. O Barruncho veio depois, para lhe tatuar os versos de violência.
Rap não é violência, rap é realidade e a realidade é violência deste lado da cidade
O primeiro confronto com essa realidade deu-se em 2006. “Projecto Mary Witch”, o primeiro álbum de estúdio, foi editado sem grande preocupação com bons níveis de produção, a estética lo-fi ajudando a(s) palavra(s), degredo sonoro porque assim é também a sobrevivência no subúrbio. O que Allen Halloween versa não vem acoplado de vaidade ou glamour, como muito do hip-hop lecionado na escola norte-americana. Carros bons, mulheres melhores, dinheiro da droga ou do roubo não são material de orgulho; são factos, conscientemente e despudoradamente narrados, lado a lado com a agonia de quem se sente perdido e por todos abandonado. “Projecto Mary Witch” é, também, a “casa” de um dos melhores temas alguma vez produzidos por cá: 'Dia De Um Dread De 16 Anos', espécie de autobiografia que se vai tornando cada vez mais opressiva a cada minuto que passa até culminar no feedback das guitarras e no lamento último de um suicida cobarde — o género de suicida que, mais que querer morrer, parece querer que o matem: estou farto desta vida, que safoda!
O rapper nunca quis que o emulassem – não desperdices tanto tempo a andar atrás dos meus velhos All Star, canta em 'Drunfos', tema presente em “A Árvore Kriminal”, de 2011. Quis, isso sim, mostrar ao mundo as histórias e os confrontos que o formaram enquanto ser humano. Sem apêndices, sem cortes. Sem metáforas, alegorias, figuras de estilo que atribuíssem à verdade um toque mágico de poesia. O gandulo não precisa de um poeta para se expressar: fala. Gangster, palavra estrangeira tornada medalha de honra por tantos outros rappers, é ali profissão e condição em Allen Halloween e não virtude. Até porque, para um gangster, a solução final é a prisão ou a cova – e o que Allen quer é (sobre)viver.
Talvez tenha sido essa crueza e essa dureza que fizeram dele um caso sério de popularidade fora da cena hip-hop portuguesa. Aliás, são mais os inimigos que Allen Halloween tem dentro dela, do que fora dela. Enquanto rapper, Allen quis sempre devolver o género às ruas, em vez de o ter nos grandes canais de comunicação – MTV, jornais e quejandos. Devolvê-lo à sua condição podre, de subúrbio, e não de banda-sonora em festas de brancos endinheirados. Tanto quis marcar a diferença que, em 2007, lança 'Fuck Y'all Yo', uma saraivada de balas contra figuras praticamente intocáveis do hip-hop nacional. Sam the Kid, Valete, Boss AC, NBC, Nigga Poison ou Tekilla estão entre os contemplados (e responderiam, alguns deles, em canções próprias, mas nenhuma com a acutilância ou o humor de 'Fuck Y'all Yo').
Intocáveis, mas não para Allen, que nem é figura nem é intocável; é um cometa à parte, capaz de arder do Algarve ao Minho, capaz de encontrar o seu espaço em festivais como o Santa Maria Summer Fest (rodeado por nomes fortes do metal extremo) ou o NOS Primavera Sound (rodeado por ícones do indie), capaz de ir buscar, na construção das suas canções (e Allen Halloween, sob o nome Maradox Primeiro, produziu muito do seu próprio material), bandas como os Rammstein em vez dos “tradicionais” discos soul ou funk que mais rapidamente se associam a uma identidade musical negra. Capaz de, naquela voz cavernosa, demoníaca, narcótica nos seus melhores sussurros, conter mais peso que muita boa banda rock que se preze – o que explica o fascínio que muitos amantes das guitarras têm por Allen.
Nunca mais, eu nunca mais voltarei aqui
Ya, rapaz, já nada faz sentido para mim
Jah mostrou-me o meu caminho, eu vou até ao fim
Esses amantes e os outros amantes encararam a notícia do fim de Allen Halloween como uma bomba. Porque nada o fazia prever: a meio do mês, editou “Unplugueto”, quarto – e há muito prometido álbum – onde interpreta versões acústicas de alguns dos seus temas antigos, lado a lado com versões de Sérgio Godinho e Zeca Afonso e canções novas (apresentadas, algumas, nos concertos que foi dando nos últimos anos). Juntamente com esse trabalho lançou “Livre-Arbítrio”, livro que reúne todos os versos que já escreveu. O futuro, mais que ser risonho ou deprimente, existia.
Existia para o Allen Halloween músico, mas não para o Allen Pires Sanhá humano, temente a Deus. A sua carreira musical interpôs-se no meio da sua devoção. Quando chegou a altura de escolher, escolheu Jeová, sem qualquer espécie de amargura. “O Halloween morreu”, declarou, na supracitada publicação no Facebook. “Tornar-me-ei um homem simples e humilde, com um emprego humilde e guardarei todo o meu tempo para pescar almas para o meu Senhor. Que ninguém fique triste, porque eu estou feliz”.
À hora a que este artigo é redigido, essa publicação já conta com quase 5 mil partilhas e mais de 3 mil comentários, a grande maioria de respeito pelo que Allen fez e pelo que irá fazer a partir de agora. Minutos após ter sido colocada na rede, multiplicavam-se os posts e as partilhas das suas canções via YouTube, e mesmo o seu pedido não chegou para esconder alguma tristeza (que não pode ser confundida com falta de respeito). Sobra sobretudo isso: o respeito por alguém que ajudou a derrubar quaisquer preconceitos que se pudessem ter em relação ao rap português, sobretudo por entre os acolitos do rock n' roll. Allen Halloween foi essa porta de entrada para muitas outras coisas, ligadas ao rap, ajudando a destruir os muros que pudessem existir entre o gosto e a discriminação.
A década que se encontra prestes a findar teria sido muito diferente sem Allen. Depois dele, surgiram muitos outros projetos ligados ao hip-hop mas também a outras sonoridades fora das “músicas negras”. Foi Allen a chave, o elo que faltava para que o hip-hop pudesse voltar a respirar, em Portugal, como o hip-hop respirou nos primórdios: de mãos dadas com o punk e com a música eletrónica, sem cliques, sem subculturas em guerra. Do fim da sua carreira, retiramos duas ilações: a primeira, a de que não voltará a existir em Portugal um rapper como ele. A segunda, a de que se até ele consegue encontrar a salvação, há esperança para quem reside no “bairro”. Por mais que esta pareça nula.
Comentários